Chantal Akerman regressa a casa

Em Locarno, a cineasta belga homenageada pelo DocLisboa 2012 mostrou o seu filme mais pessoal e um excelente documentário sobre a sua carreira. Um momento perfeito para olhar para trás e falar de uma obra em permanente viagem que ganha agora uma nova ressonância

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I Don’t Belong Anywhere de Marianne Lambert é uma introdução ao universo de Akerman DR

É verdade que o cinema da belga Chantal Akerman esteve sempre longe de ser unânime. Bastará lembrar o seu clássico Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles (1975), três horas e meia acompanhando o quotidiano aparentemente banal de uma dona de casa de Bruxelas (interpretada por Delphine Seyrig), adaptações de Proust (A Cativa, 2000) ou Conrad (A Loucura de Almayer, 2012), o modo como a passagem do tempo é incrustada no próprio cinema em movimento constante que realiza, mesmo quando brinca com géneros mais populares (o musical com Golden Eighties, 1986; a comédia romântica com Um Divã em Nova Iorque, 1996)

Mas No Home Movie é bicho de outra natureza. No papel, é mais um dos seus documentários observacionais que exigem tempo e disponibilidade do espectador – e por isso pouco apropriados a qualquer competição na voragem de um festival de primeira categoria – mas há outra coisa a trabalhar neste filme. No Home Movie é mais pessoal e “rente ao osso” do que obras anteriores contudo criadas na primeira pessoa. Acompanha as últimas visitas de Akerman à sua mãe em Bruxelas antes do seu falecimento, e ao fazê-lo cria uma síntese do percurso criativo de uma das autoras mais irredutíveis do cinema contemporâneo, aliás homenageada com uma extensa retrospectiva pelo DocLisboa em 2012.

Paradoxalmente, este filme-síntese, que é também filme-memória da mãe, foi exibido em Locarno em simultaneidade com o documentário que Marianne Lambert, colaboradora pontual da cineasta, realizou a pedido da Cinemateca Belga sobre Akerman, I Don't Belong Anywhere. Se No Home Movie é um filme que só fará sentido para quem conhece bem a obra da realizadora, I Don't Belong Anywhere é uma introdução mais-que-perfeita ao seu universo muito pessoal – de algum modo, filmes gémeos que quase exigem serem discutidos em conjunto. Daí que a oportunidade de falar com Chantal Akerman e Marianne Lambert, aproveitando a presença de ambas em Locarno, tenha sido irresistível, numa longa conversa que, a partir dos dois novos filmes, versou sobre uma das carreiras mais singulares do cinema moderno.

Chantal, o seu filme chama-se No Home Movie embora seja impossível um filme mais “caseiro”, enquanto o filme de Marianne chama-se I Don't Belong Anywhere,“não pertenço a lugar nenhum”. Disse também, na conferência de imprensa, que No Home Movie é a história de uma mãe presa em casa e de uma filha que está sempre em viagem e nunca lá.
Chantal Akerman (CA) – A verdade está provavelmente entre as duas coisas... É verdade que, desde que a minha mãe morreu, sinto já não ter um centro. Que, de facto, tinha, mas sem sentir que o tinha.

Marianne, ao filmar Chantal em viagem, sentiu de facto que ela não pertence verdadeiramente a lado nenhum?
Marianne Lambert (ML) – Na verdade apropriei-me de uma frase que já a tinha ouvido dizer, “não pertenço a nada, não pertenço a lado nenhum, não sou de lado nenhum...” Mas é verdade que a Chantal esteve sempre em viagem.

Essa abertura à descoberta e à viagem remete também para outra cineasta belga sua contemporânea, Agnès Varda. Existe aí algo de especificamente belga?
ML – Sim, acho que sim. Ou pelo menos de belga francófono, não quero substituir-me à comunidade flamenga... Mas é verdade que tu própria, Chantal, o disseste uma vez: tinhas necessidade de viajar, de sair, não estar sempre em cima das coisas. Há um problema de pertença e de identidade, que é visível na Bélgica francófona. Penso que é muito belga essa ideia de viajar para outro lado e, através dessas viagens, compreender melhor onde é que pertencemos – ou onde é que não pertencemos.
CA – Além disso os meus dois pais eram judeus, e isso tem um papel muito grande. A minha mãe esteve nos campos [de concentração]. De algum modo, eu fui concebida para substituir a minha avó, que morreu nos campos e que se chamava Szifra, mas a minha mãe não me quis dar esse nome. “Não lhe vamos dar um nome judeu, e se um dia tudo recomeça?”. Então deram-me um nome o mais francês possível, Chantal, em plena consciência de que não fazíamos parte daquele mundo. Portanto, já então existia um tremor identitário.

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Essa questão da identidade, da viagem, é constante em todos os seus filmes. No Home Movie é uma espécie de ponto de chegada, de regresso a casa?
CA - Sim, é isso. Concretiza-se. É verdadeiramente isso, como se fosse uma emulsão que se revela.

É também por isso que pontua os planos da sua mãe em casa com imagens das viagens que fez?
CA – São também os lugares onde ela não irá. Ela fica, e eu parto, e existe essa tensão entre os dois mundos, de algum modo.

As suas viagens são o seu modo de a homenagear, de a levar consigo?
CA – Não, era também para fugir dela [sorriso]. É verdade que quando era muito nova precisava de fugir de casa, e agora é a casa que me agarra porque ela me faz falta... Aos 18 anos fui-me embora, e passei o tempo a partir. Voltava sempre mas era para voltar a partir. Fugia sempre. Não era para a homenagear. Os meus filmes, fi-los, acreditei, para testemunhar em seu lugar, isso é certo. Mas será que é possível testemunhar no lugar alguém? Não sei. Pensei sempre que, como ela não tinha voz, devia ser eu a tê-la em seu lugar. E finalmente, no filme, percebemos que ela tem voz, e que sabe o que pensa, e que pode expressá-lo à sua maneira, mesmo que não fale imediatamente das coisas do coração. 

Houve uma vez em que ela foi comigo ao México visitar a minha irmã que mora lá, e enquanto lá estive apresentei o meu filme A Loucura de Almayer. Ela estava surda e não percebia nada do que lhe diziam mas, à saída, virou-se para mim e disse “já viste? Tiveste tudo isto e eu só tive Auschwitz.” E foi aí que compreendi que, através de tudo o que eu tinha feito, só lhe devolvia uma imagem dela degradante, porque ela ficava em casa, e ela teria talvez gostado de subir ao palco e de assumir um outro papel.

Essa questão do testemunho é algo de que só tomou consciência mais tarde?
CA – Certamente, sim, mais tarde. E a minha mãe era das pessoas que melhor compreendiam os meus filmes, calavam-lhe fundo sem precisar de um discurso intelectual. Ela sentia tudo imediatamente. Quando viu o meu filme sobre Pina Bausch [Un jour Pina m'a demandé, 1983], reparou num plano onde uma mulher estava a ser agredida por homens e torturada, e disse-me, “estás a ver, Chantal? Os campos eram isto. Podia-se fazer tudo”. E ninguém entre toda a gente que tinha visto o filme tinha reparado nisso. Só ela é que o viu. E mesmo D'Est [1993], sobre a Europa de Leste depois da queda da URSS, só ela é que sentiu a fundo o que o filme transportava. Portanto, éramos de algum modo quase irmãs siamesas...

Marianne, o seu documentário sobre a obra de Chantal acompanha também um pouco o processo de criação de No Home Movie...
ML – Na prática, a Chantal filmou durante bastante tempo sem verdadeiramente ter ideia de fazer este filme. E nós íamos com ela para começar a trabalhar no documentário, estávamos só a viajar com ela. Não posso dizer que acompanhei o processo.
CA – E é evidente que nessa altura não fazia ideia que ia fazer um filme sobre a minha mãe.
ML – Já tinha trabalhado com a Chantal noutros filmes noutros cargos, e tinha já uma ideia do modo como ela trabalhava. Mas aqui não estava definitivamente consciente que ela estava a fazer um filme, e penso que ela também não. Era tudo bastante familiar, até porque há alguma coisa que me é muito familiar no cinema dela. As coisas com ela acontecem de modo natural, muito simplesmente, mais do que muitas vezes se pensa. Ela disse-me que tinha de ir passar uns dias a Israel para um projecto pessoal, “porque é que não vens?” Fomos com o engenheiro de som e o director de fotografia e íamos atrás dela. “Hoje apetece-me ir ao deserto”, e íamos ao deserto.

No Home Movie é um filme muito depurado, muito justo.
CA – Como a imagem justa do Godard... Gosto imenso de ouvir isso, porque é a única coisa que sempre tentei fazer durante toda a minha carreira. (pausa) E estou sem dúvida cada vez mais à procura de algo que se desfaça de todos os floreados. Não há ornamentos nenhuns naquilo que faço. Vou ao essencial e à partir do momento em que sinto que é justo, é justo. Não tenho explicação a dar nem a quero ter, porque isso mataria o processo criativo. Este filme é o mais depurado que já fiz, mas tem também muito humor, graças à minha mãe.

No entanto, o documentário mostra muito bem o sentido de humor, e a joie de vivre de Chantal...
ML – Espero que sim, porque ela é assim. Divertimo-nos muito durante as rodagens. Quando partimos para Israel com a Chantal, não tínhamos nada de previsto ou pensado, mas havia um plano que eu queria absolutamente fazer, que é o último plano do documentário. Queria fazer uma piscadela de olhos ao final dos Tempos Modernos de Chaplin, vendo-a partir pela estrada fora.

São filmes que se iluminam mutuamente.
CA – Sim, sobrepõem-se um bocado... Mas foram feitos completamente separadamente.
ML– A certa altura tive necessidade de mostrar o filme à Chantal porque se ela me dissesse que não gostava eu desistia do projecto. Precisava de uma caução, de uma aprovação da parte dela.
CA – Na verdade não te disse muita coisa. A única coisa que me incomodou é que eu tinha uma borbulha que não queria que se visse (risos).

No documentário, a Chantal diz que quer que os espectadores sintam o filme. Emocionalmente?
ML – Sensorialmente.
CA – Exacto, de modo sensorial, físico. Usando os cinco sentidos.

Quer que o espectador sinta o tempo a correr durante a projecção.
CA – Sem dúvida! O tempo é tudo o que temos. Cinco minutos a mais numa vida são importantes, podem ser essenciais. O tempo, a duração... É uma das coisas mais importantes no mundo. O tempo passa. O que há mais?

Parece-me que há neste filme uma vulnerabilidade que não estava forçosamente presente nos seus filmes anteriores...
CA – É verdade. É um filme muito mais “rente ao osso”. Enquanto estávamos a trabalhar, eu não tinha consciência disso, mas ontem, na rádio, ouvi um pequeno excerto de som do filme e perturbou-me terrivelmente. É uma ferida aberta, quase a sangrar. E é muito difícil falar deste filme. Ontem, no encontro com os espectadores depois da projecção, quase não conseguia falar... Depois deste filme, não há praticamente mais nada a dizer. Cabe aos espectadores, e também aos jornalistas, fazer dele qualquer coisa para si próprios, sem mim. Sou talvez a pior pessoa para falar deste filme, porque é um filme para o outro, que pertence ao outro a partir do momento em que ele abrir os braços.

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E você abre-se ao outro de uma maneira muito exposta.
CA – E é isso que me deixa tão incomodada, claro!

Como é que é possível pegar num episódio tão doloroso da sua vida e sair dele com um filme?
CA – É a única maneira de sobreviver, para mim. Enquanto o montava, sentia que era apenas mais um filme. Agora, com o recuo, claro que não é, mas talvez fosse aqui que eu tinha de chegar sem o saber. Mas foi preciso fazer estas viagens todas e a minha mãe morrer. Às tantas digo-me que foi este filme que a matou (risos).

E ei-la em competição a Locarno...?
CA –
Pois, e é uma coisa que não me apetecia grandemente. Perguntei mesmo se não haveria outra secção onde o pudéssemos mostrar, e a agente que representa o filme disse-me que seria no concurso que o meu filme seria mais visto. A competição perturba-me, é algo de absurdo e irónico para um filme como este estar a concurso, qualquer que seja o festival. Sinto-me sempre mal numa competição. A começar porque já não tenho idade para estas coisas há muito tempo..

É o tipo do filme que precisa do tempo de digestão que um festival muitas vezes não permite.
CA – É um risco, mas tanto pior. Agora que fiz um filho ele tem de viajar sozinho, de andar por aí, e não vou dizer onde é que ele deve ou não deve ou pode ou não pode ir. Deixo-o andar.

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