Tal pai, tal filho
A incompetência pode ser virtuosa. Pode ser instrumental e voluntária. No caso de Herman Koch, é só incompetência.
E a obra, curiosamente, nem começa muito mal, se exceptuarmos mais uma declinação do incipit de Anna Karenina e uma nossa temporã mas substantiva discordância com o narrador quando este logo afirma que “Se tivesse de definir felicidade, seria assim: a felicidade basta-se a si mesma, não precisa de testemunhas” (p. 13). A trivialidade técnica da história cedo se torna manifesta mas, tratando-se de uma narração na primeira pessoa feita pelo protagonista, decidimos não sobrecarregar o autor com tal responsabilidade, pois os truques para criar suspense são demasiado pueris e os cumes de sofisticação alcançados pela prosa têm este apuro: “Este é o lado sufocante da felicidade: estar tudo exposto como um livro aberto em cima de uma mesa” (p. 18).
Começa O Jantar por parecer uma sátira, temperada e simpaticamente mordaz, aos “valores” de uma classe média folgada, pretensiosa e ainda com tempo e com dinheiro para ser politicamente correcta. Os convivas são quatro: o narrador (ex-professor de História no secundário, saberemos mais tarde), a respectiva mulher (“O nome dela é Claire. Os pais tinham-na chamado Marie Claire, contudo, mais tarde, a Claire não quis ter o mesmo nome que uma revista.”), o irmão daquele (Serge Lohman, líder da oposição política e presuntivo primeiro-ministro) e respectiva consorte. O cenário é um restaurante muito trendy, muito fancy, muito lifestyle”, um daqueles restaurantes que ainda servem carne de animais, “mas de animais que ‘tinham levado uma vida boa’”. O candidato a primeiro-ministro é o bombo da festa (na eleição despeitada e inconsequentemente corrosiva do narrador): passou de sorvedor de coca-cola a requintado (creio que é a palavra) conhecedor de vinhos, capaz de identificar, por exemplo, o “‘sabor terroso’ dos vinhos portugueses oriundos do Alentejo” e levou a “correcção” (ou ambição) política até ao ponto de, tendo já dois filhos adolescentes, adoptar um terceiro, oriundo do Burkina Faso.
Servidos o “Aperitivo” e as “Entradas”, entramos no “Prato Principal” do romance: o assassínio violento, impulsivo e gratuito de uma mulher sem-abrigo que dormia numa “caixa multibanco”, perpetrado pelo filho único do narrador (Michel, de 16 anos) e pelo filho mais velho (também um adolescente) do político; obviamente, os exemplares rapazes registaram o feito com a câmara do telemóvel e as imagens foram parar ao Youtube (como é que adivinharam?); as imagens da videovigilância do ATM também já foram divulgadas pelas televisões mas, felizmente, só os pais das imprevidentes criaturas reconheceram nelas os respectivos rebentos; há que decidir o que fazer a seguir.
De suposta sátira, o romance de Koch começa a transformar-se numa espécie de frívola e provocadora farsa tarantiniana (justificando, aliás, a epígrafe que inaugura o romance); se Michel disse mata, os respectivos progenitores, politicamente incorrectíssimos, dizem agora esfola (e descobrimos, por exemplo, que o narrador fora convidado a deixar de leccionar por causa das suas “observações bastante desdenhosas” sobre as vítimas da Segunda Guerra Mundial, entre outras coisas). O pior é que o pior não tinha ainda chegado à mesa. E o que vale é que eu já tinha desistido de convocar Elfriede Jelineck para marinar a recensão numa comparação vistosa.
A incompetência pode ser virtuosa. Pode ser instrumental e voluntária. No caso deste romance, é só incompetência. Ou vontade de despachar o assunto. Depois de ter aguado a sátira que inicialmente começara a refogar, Koch deixou esturricar a farsa que entretanto metera no forno, ao fazer o narrador atribuir a origem do seu comportamento e das suas opiniões políticas e ideológicas a uma síndrome (ou desordem…) com “um nome que parecia alemão e que era o apelido do neurologista que tinha descoberto a doença” (p. 193). É o que se chama um golpe baixo. Nem carne nem peixe, este jantar de Koch é um cozinhado de fusão ao “estilo internacional” da indústria global de “best-sellers”, servido na baixela branca de uma linguagem que dispensa mastigação, com empratamento padronizado e toalha e guardanapos de papel. À sobremesa é-nos servido um balofo e fruste determinismo. Clínico, ainda por cima. Não podia haver final mais indigesto.