Chantal Akerman, para memória futura

O novo filme da cineasta belga, No Home Movie, foi exibido a concurso enquadrado por um excelente documentário sobre o seu cinema, I Don't Belong Anywhere.

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No Home Movie de Chantal Akerman dr
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I Don't Belong Anywhere -The cinema of Chantal Akerman de Marianne Lambert

No documentário que Marianne Lambert dedica à realizadora, I Don't Belong Anywhere -The cinema of Chantal Akerman, Gus van Sant (ele de Elephant e O Bom Rebelde e Milk) explica como este cinema sempre a cavalo entre a narrativa mais tradicional e o experimentalismo mais vanguardista, e como sobretudo o lendário Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles (1975), influenciaram o seu próprio cinema. Por isso, ver o novo filme de Chantal Akerman, o documentário No Home Movie, estreado mundialmente a concurso em Locarno, receber um par de vaias é algo de estranho.

À saída, em conversas de circunstância, levanta-se a questão. Será que, à imagem de outros veteranos na competição deste ano (como Andrzej Zulawski, Otar Iosseliani e Hong Sang-soo), ou de Paul Vecchiali o ano passado, ou de tantos cineastas em tantos festivais, Chantal Akerman está aqui apenas por ser quem é, mais do que pelos méritos específicos deste filme recebido com alguma indiferença?

Não é um argumento despiciendo, mas é razoavelmente deitado abaixo pela “dobradinha” que No Home Movie faz com I Don't Belong Anywhere - The cinema of Chantal Akerman, exibido fora de competição. Porque este documentário de Marianne Lambert é, em primeiro lugar, uma excelente introdução à obra e ao método da realizadora, e, em segundo lugar, foi rodado durante o processo de produção de No Home Movie - filme onde Akerman vira directamente a câmara para a sua mãe, nas últimas visitas que lhe fez antes da sua morte.

Não vamos dizer que este será um filme mais “pessoal” do que outras obras suas. No documentário, a realizadora confessa que Jeanne Dielman, que acompanha quase “em tempo real” o dia banal de uma dona de casa de Bruxelas, se alimentava imenso do próprio quotidiano da sua mãe e de muitas mulheres daquela geração. E a própria cineasta se filmou regularmente a si própria, e publicou em 2013 um livro de memórias familiares, Ma mère rit. Mas é, certamente, um filme que tem uma dimensão mais íntima, mais individual, que levanta questões de exposição e vulnerabilidade, contidas nas múltiplas ironias e leituras do próprio título.

De facto, este é, em sentido estrito, um home movie da mãe Akerman – mas não o é, porque os home movies são geralmente registos de momentos felizes, e este, concentrando-se nos últimos meses da sua vida, não o é. E se entendermos que a mãe de Chantal foi desde sempre uma presença fortíssima na vida da filha, quase uma espécie de “lar” que não tem de ter uma existência física, então a sua morte - e este filme mostrado após a sua morte - são o fim do lar, o “não lar”, o no home. You can't go home again, não se pode voltar a casa, reza a frase. (O documentário, esse, diz no seu título que eu não pertenço a lugar nenhum, ou não fosse Akerman uma belga filha de judeus polacos que viveu em Nova Iorque e viaja por todo o mundo...)

Mas tudo isto são leituras. O filme, esse, é o que é: planos de viagem por paisagens áridas evocando a travessia do deserto dos israelitas (a mãe era sobrevivente de Auschwitz), pontuando longos planos fixos das interacções entre a mãe confinada a casa e a filha de visita de passagem, conversas banais ou simples registos de movimentos. Como uma tentativa de apanhar e guardar para memória futura o que pode restar de uma vida – talvez para negar a morte, talvez como modo de aceitar o inexorável.

Desconfortável? Claro que sim; no documentário de Marianne Lambert, Akerman explica que quer que, nos seus filmes, os espectadores sintam o tempo que passa, e que isso lhes dê a liberdade suficiente para sentir o filme emocionalmente sem que forçosamente o compreendam intelectualmente. No Home Movie nada altera nesse método, a não ser tornar mais visível a proximidade e a presença da morte, e isso é sempre profundamente desconfortável. Isso poderia explicar as vaias – tanto quanto a sensação de que talvez tudo isto seja demasiado íntimo, demasiado pessoal para poder ser entendido agora na sua plenitude, pelo meio de um calendário apertado de projecções e solicitações.

Um filme destes precisa de mais tempo do que a vertigem de um festival permite, mas o mercado não lhe permite existir fora da vertigem de um festival. Nada a que Chantal Akerman não esteja habituada.  

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