Como era a reprodução das estranhas formas de vida há 565 milhões de anos

Durante o período geológico do Ediacarano havia jardins no fundo do mar com organismos diferentes de tudo o que conhecemos hoje. Um estudo revelou as formas de reprodução dos Fractofusus, que não eram nem animais nem plantas.

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Ilustração dos Fractofusus no fundo do mar Charlotte kenchington
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Fósseis de Fractofusus encontrados em Mistaken Point, no litoral da Terra Nova Alexander Liu
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Fósseis de Fractofusus encontrados em Mistaken Point, no litoral da Terra Nova Emily Mitchell
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Mistaken Point, no litoral da Terra Nova Emily Mitchell

A meio do período Ediacarano, entre há 635 a 540 milhões de anos, a evolução dos animais estava na sua mais tenra infância. No local onde se encontraram os fósseis de Fractofusus, na ilha da Terra Nova, no Nordeste do Canadá, não há qualquer marca de plantas ou animais. Mas a disposição de dezenas de fósseis daqueles organismos – que não são considerados nem animais nem plantas – mostrou aos cientistas que estas criaturas tinham dois tipos de reprodução: uma que permitia colonizar novos lugares e outra que permitia ocupar rapidamente o novo território.

Publicado esta segunda feira no site da revista Nature, o artigo com esta descoberta pode ajudar a compreender o lugar destas estranhas formas de vida na árvore da evolução.

Na transição para o período Câmbrico, primeiro período da era Paleozóica, há 540 milhões de anos, já não há nenhuma prova fóssil conhecida dos “jardins do Ediacarano”, o nome dado a estes ecossistemas. “Ediacarano” vem de Ediacara, uma cordilheira de montanhas no Sul da Austrália. Em 1946, foram encontrados fósseis nestas montanhas que revelaram a existência deste antigo ecossistema. O termo foi também aproveitado para dar nome ao último período da era Neoproterozóica, entre há 1000 a 540 milhões de anos.

A ideia de “jardins” está associada a uma placidez e a uma constância que parece ter-se vivido nestes universos marinhos que não tinham predadores, nem animais que escavavam a areia. Por isso, o leito do mar estava coberto por uma camada de bactérias. Era por cima desta camada que viviam as espécies ediacaranas. Havia organismos que tinham a forma de uma folha e prendiam-se ao leito com um pedúnculo. Já as espécies do género Fractofusus, que pertence ao grupo dos Rangeomorpha, estavam coladas ao chão.

“Os Fractofusus não se parecem com nada que esteja vivo hoje”, explica ao PÚBLICO Emily Mitchell, investigadora da Universidade de Cambridge, e uma das autoras do artigo que junta ainda a contribuição de outros cientistas do Reino Unido.

“Têm uma forma oval, com segmentos que se ramificam, e que por sua vez se vão ramificando em novos segmentos. A maioria dos organismos tem cerca de dez centímetros de comprimento, mas os maiores cresciam até aos 40 centímetros. Eram bastante achatados, os maiores tinham uma altura de três a quatro centímetros”, descreve a cientista. “Não há indícios de que eles se movessem, em vez disso viviam directamente no tapete de bactérias que cobria o chão do mar nas zonas de profundidade. Pensa-se que se alimentavam absorvendo nutrientes [da água] através das suas paredes membranares – não há nenhum indício de nenhum tipo de abertura bucal.”

Durante milhões de anos, estas formas de vida floresceram. Depois, a evolução deu um salto e o mundo mudou. Os primeiros animais surgiram ainda no Ediacarano, passaram a conseguir escavar o leito marinho, destruindo o tapete de bactérias e surgiram predadores. Estes jardins acabaram por desaparecer. “O mais provável é que os animais do Câmbrico rapidamente se tenham sobreposto na procura de nutrientes e de espaço em relação aos seus pares ediacaranos”, especula a cientista.

No Câmbrico, surgem no registo fóssil os principais filos dos animais, como os moluscos, os artrópodes ou os vertebrados. A esta aparente e rápida diversificação dos animais dá-se o nome de explosão do Câmbrico.

O mundo ainda mudou muito com a colonização dos continentes feita pelas plantas e pelos animais. Só há menos de 400 milhões de anos, no período Devónico, é que os primeiros tetrápodes começaram a caminhar em terra, originando os anfíbios e os répteis. Há 252 milhões de anos iniciou-se o Mesozóico, a era dos dinossauros, onde apareceram os mamíferos e as aves, e que durou até há 66 milhões de anos, quando se deu a grande extinção dos grandes répteis. O vazio permitiu a diversificação dos mamíferos que dominam agora os continentes.

Duas formas de reprodução 
Perante a complexidade actual, os jardins do Ediacarano de há 565 milhões de anos são ecossistemas básicos, constituídos por organismos simples. Se imaginarmos a Terra daquela altura, com os seus continentes vazios, parece um lugar desolador. Mas os Fractofusus são já o resultado de milhares de milhões de anos de evolução. A vida terá surgido na Terra há cerca de 3500 milhões de anos. Os primeiros organismos eram uma célula só. Com o passar do tempo, ficaram mais complexos, formaram seres com muitas células e diferentes tecidos.

“Os macro-organismos do Ediacarano existiram na transição entre a vida microbiana e a explosão do Câmbrico”, contextualiza Emily Mitchell. “É durante esta transição que os animais iniciaram a sua evolução. Se queremos compreender a evolução dos animais, precisamos de compreender a vida no Ediacarano.”

Para isso, a equipa da Universidade de Cambridge estudou a distribuição dos fósseis de três locais diferentes do litoral da Terra Nova: duas em Mistaken Point, na Península de Avalon, e a terceira em Catalina Dome, na Península de Bonavista. Descobertos em 1967, os fósseis de Mistaken Point foram produzidos graças a uma erupção vulcânica com uma grande queda de cinzas, semelhante à que se abateu sobre a cidade de Pompeia, e conservou as estruturas daqueles antigos organismos. Num dos locais, os fósseis dos Fractofusus, género descrito em 2007, convivem com os fósseis de outras sete espécies de ediacaranos, noutro convivem com quatro.

“Nestes ecossistemas preservados [no registo fóssil] há informação que nos permite tentar responder a perguntas biológicas e ecológicas complexas, como o modo de reprodução”, diz Emily Mitchell. A equipa fez um mapa da distribuição dos fósseis de Fractofusus nos três locais e descobriu que estes organismos estavam agrupados. Em cada agrupamento, havia ainda grupos mais densos destas criaturas.

“Estes [antigos] padrões foram comparados com padrões ambientais e reprodutivos de organismos modernos. Esta comparação mostrou que aquele padrão resultava do modo de reprodução”, explicou a investigadora. A cientista descobriu ainda que a distribuição dos Fractofusus era semelhante à de plantas como o morangueiro. Esta planta lança um estolho, um caule que cresce lateralmente e a dada altura origina um novo morangueiro, que é um clone do morangueiro progenitor.

O Fractofusus terá tido a mesma técnica reprodutiva. “O progenitor Fractofusus produziria um ou vários filamentos, e um bebé Fractofusus iria nascer ao longo do filamento ou no fim”, descreve Emily Mitchell. Nalguns casos, os cientistas contaram 23 agrupamentos de Fractofusus, cada um contendo 12 grupos, e cada um destes subgrupos com três indivíduos. A esta organização está associada uma escala de tamanho, com os organismos “progenitores” a serem maiores do que os “filhos”. Esta forma de reprodução assexuada, em que cada indivíduo é um clone do seu progenitor, serviria para colonizar rapidamente uma região.

Mas os cientistas acreditam que haveria um outro mecanismo de reprodução que permitiria estas espécies colonizarem locais distantes. Para isso, pensa-se que os indivíduos adultos produziriam estruturas que se desprendem deles (propágulos) e que seriam levadas pelas correntes marinhas.

“O propágulo levado pela água permitia ao Fractofusus colonizar novas áreas, e impedir a sua extinção no caso de haver uma grande perturbação. Assim que o Fractofusus encontrasse um lugar bom para crescer, a reprodução por filamento serviria para ele se espalhar nessa área de forma fácil e rápida”, resume a cientista, acrescentando que este é um passo importante para compreender a biologia destes organismos.

O trabalho não vai ficar por aqui, refere Emily Mitchell. A técnica será utilizada para estudar o resto do ecossistema daqueles antigos jardins: “Vamos alargar esta análise a outras espécies ediacaranas para analisar a sua reprodução. Também planeamos usar a análise espacial para compreender como as espécies interagiam entre si.”

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