São Carlos apresenta nova temporada à procura de um director artístico
Temporada do britânico Patrick Dickie inclui, na oferta lírica, Puccini, Verdi e Adams, enquanto na sinfónica se destacam Mahler, Bruckner e uma estreia absoluta do português Pedro Faria Gomes. Programação em tempo de crise num teatro à procura de uma identidade. E de um director artístico.
“Conseguimos um bom equilíbrio nesta temporada em que a orquestra terá oportunidade de trabalhar grandes páginas sinfónicas e, ao mesmo tempo, entrar em projectos muito diferentes e arrojados como Canto da Europa”, exemplifica a maestrina, referindo-se ao espectáculo da temporada lírica que fará subir ao palco do D. Maria uma co-produção dos dois teatros nacionais a partir de uma encomenda ao compositor Nuno Maló e ao dramaturgo Jacinto Lucas Pires que, com uma dupla na encenação vinda do universo da performance, da instalação e das artes visuais (Ana Borralho e João Galante), fará do coro do São Carlos personagem principal.
“Temos uma obrigação com a contemporaneidade e com a contemporaneidade portuguesa em particular”, justifica Joana Carneiro, para quem a apresentação de uma temporada completa no Teatro Nacional de São Carlos (TNSC), com uma orquestra e um coro em “grande forma”, é uma conquista assinalável num período marcado por “um grande vazio” – a ausência de um director artístico. “O nosso maior desafio hoje não tem a ver com qualquer relação artística. Tem a ver com a necessidade de encontrar um director artístico para esta casa. Sem um director artístico o São Carlos não pode trabalhar a longo prazo, não pode construir relações sólidas com artistas, com encenadores e outros teatros. E precisa delas para crescer, como precisam todos os teatros de ópera.”
O gabinete do secretário de Estado informou quinta-feira que irá abrir durante o mês de Agosto “um procedimento internacional tendo em vista o preenchimento do cargo de director artístico” do São Carlos, lê-se na nota de imprensa que chegou às redacções. A temporada que o teatro apresentou esta quinta-feira – a que vai de Setembro de 2015 a Junho de 2016 – foi feita com o consultor, produtor e dramaturgo britânico Patrick Dickie, que trabalha nos domínios da ópera e de outras artes performativas. Dickie veio substituir o italiano Paolo Pinamonti, que deixou o cargo no final de 2014 no meio de uma polémica que envolveu a lei espanhola e a demissão de um conselho de administração, mas o convite que lhe foi dirigido destina-se apenas à presente temporada.
“Considerando a necessidade de dotar o TNSC de uma solução estável e duradoura para a sua liderança artística”, a equipa de Jorge Barreto Xavier justifica a abertura de um concurso internacional com a necessidade de alargar “o leque de escolha para a nomeação”. Uma nomeação que, admite na mesma nota, será decidida pelo próximo Governo, que poderá respeitar, ou não, a sugestão feita pelo “grupo de apreciação” composto por cinco elementos e reunido para o efeito.
Do menu lírico de Patrick Dickie, em estreita colaboração com Joana Carneiro, Giovanni Andreoli (maestro titular do coro) e João Paulo Santos (director musical de cena e de estudos musicais do teatro), fazem parte, novas produções do teatro como Dialogues des Carmélites, de Poulenc, com encenação de Luís Miguel Cintra, e Iphigénie en Tauride, de Christoph Willibald Gluck (enc. James Darah, direcção musical de David Bates); e ainda dois Verdis – Messa da Requiem e Nabucco – e A Flowering Tree, uma ópera de John Adams que Joana Carneiro conhece muito bem e que já dirigiu várias vezes (aqui numa co-produção da Ópera de Gotemburgo, do Chicago Opera Theatre e do Teatro Comunale di Bolzano).
Na temporada sinfónica, desenhada pela maestrina, com dez concertos, além de Mahler há Bruckner, Braga Santos, Brahms, Adams, Bartok, Ravel, e Janácek.
Uma casa no CCB
Joana Carneiro faz questão de salientar nesta programação da OSP a “relação cada vez mais forte” com o Centro Cultural de Belém (CCB), sala que sente ser “natural” para a formação sinfónica desta orquestra que tocará várias vezes em versões mais reduzidas (o Grupo de Metais, por exemplo) e, no caso das apresentações no Salão Nobre, com solistas como o violoncelista Johannes Moser na direcção. O músico germano-canadiano virá, explica, para uma residência de duas semanas que incluirá, além de dois concertos, uma masterclass: “Estou muito contente com as residências e masterclasses, que vão ter também a [soprano] Elisabete Matos. Elas permitem que os solistas trabalhem de outra maneira com a orquestra e abrem o teatro ao público, que nessas alturas não vem só para ouvir. Quando um solista dirige uma formação cria com ela um grau muito maior de proximidade, torna o trabalho mais intimista e isso vê-se quando os músicos tocam.”
Nesta temporada com uma aposta grande em compositores e maestros nacionais, destacam-se solistas como os portugueses Artur Pizarro (piano) e Eduarda Melo (soprano), o pianista macedónio Simon Trpceski e a soprano norte-americana Jessica Rivera.
Outro aspecto que Carneiro não se cansa de destacar é o facto da OSP se apresentar fora de casa: além de tocar no CCB, a orquestra actua também na Fundação Gulbenkian (um programa com Adams, Richard Rodney Bennett e Richard Strauss, e André Dias na percussão) e na Casa da Música, no Porto (Pizarro ao piano para a estreia europeia de Incipit, encomenda do São Carlos a Luís Tinoco).
Menos de dois meses
A programação lírica - que vai do século XVIII ao XXI, com 35 espectáculos, entre eles os que resultam de cinco óperas encenadas, duas delas novas produções - traz a assinatura de Patrick Dickie, que nos últimos anos tem trabalhado em Londres com a English National Opera e o Almeida Theatre (fez as últimas dez temporadas), sendo ainda consultor de diversos festivais.
Dickie, cujo nome começou a ouvir-se como provável substituto de Pinamonti no final de Junho, montou a temporada em menos de dois meses, um período “invulgar” para quem trabalha com o mundo da ópera. A tarefa, disse ao PÚBLICO, foi facilitada pela experiência que tem em trabalhar com “prazos apertados” e pela qualidade e entusiasmo da equipa e corpos artísticos do teatro. Um teatro que, dada a escala e o reportório, lhe faz lembrar as casas de ópera italianas e que, no seu esforço de promoção dos talentos nacionais, o faz pensar no La Monnaie, de Bruxelas.
“A minha principal preocupação foi não entrar em pânico e impor um plano que não resultasse”, explica este programador que antes de aceitar o convite que lhe foi feito pelo São Carlos, depois de uma primeira abordagem de Joana Carneiro, pouco tinha ouvido falar do teatro lisboeta (“Sabia do extraordinário ciclo do Anel, de Graham Vick, e da mitologia Callas…”, admite). E o que fez para evitar o pânico? Concentrou-se naquilo que já motivava a equipa, como o interesse de João Paulo Santos em trabalhar com Luís Miguel Cintra e a relação que a maestrina da OSP tem com a obra de John Adams. “Também me preocupava o facto de não sermos capazes de correr riscos em termos artísticos, mas acredito que conseguimos fazê-lo.”
Patrick Dickie está habituado a apostar em novas produções, trabalhando de perto com directores musicais, encenadores, cenógrafos e figurinistas, mas a falta de tempo não lhe permitiu insistir em mais co-produções. Ainda assim, não tem qualquer dificuldade em fazer algumas sugestões: “A estreia de Alexandra Deshorties no papel de Iphigénie será especial. Ela é uma intérprete extraordinária, incandescente, que atingirá a excelência numa nova produção feita em Lisboa. Elisabete Matos como Abigaile em Nabucco será uma exibição imperdível de bravura. E Luís Miguel Cintra com a sua inteligência teatral a iluminar Dialogues des Carmélites de Poulenc, com um elenco integralmente português.”
Será a nona encenação de Cintra no TNSC e Patrick Dickie e o maestro João Paulo Santos não serão os únicos entusiastas. “É muito importante que o teatro, a orquestra, o coro, mostrem que estão vivos e a trabalhar muito bem, atentos ao que a cidade tem para oferecer noutros palcos. Termos aqui o Luís Miguel Cintra é uma maneira muito boa de dizer que estamos a ouvir e a ver”, diz Joana Carneiro.
Para a maestrina é igualmente importante manter a ligação do teatro, através da sua orquestra, à Companhia Nacional de Bailado (CNB), ambos geridos pelo Opart. A OSP fará com a formação dirigida por Luísa Taveira 25 espectáculos de A Bela Adormecida - versão do clássico de Marius Petipa revista por Ted Brandsen, com o bailarino português do Royal Ballet de Londres Marcelino Sambé - e Carnaval, uma fantasia a partir de O Carnaval dos Animais, de Camille Sain-Saëns, que junta à música do compositor do romantismo francês a de portugueses como António Pinho Vargas, Mário Laginha ou Sérgio Azevedo (a direcção musical é de Cesário Costa e a coreografia de Victor Hugo Pontes).
Em tempo de crise
A divulgação da nova temporada e o anúncio da abertura do concurso internacional capaz de encontrar um novo director artístico para o teatro não apaga, no entanto, o clima de profunda crise que o São Carlos tem vindo a atravessar, para muitos agentes culturais uma das mais graves da sua história. Há quem defenda o fim do Opart, devolvendo-se a autonomia ao TNSC e à CNB, há quem advogue uma revisão do modelo de funcionamento que poderia chegar a separar a OSP do teatro, e não há quem diga que um reforço de verbas não dava jeito.
O secretário de Estado da Cultura está entre os que defendem um novo modelo de gestão para o teatro de ópera e para a companhia, argumentando que têm custos fixos muito elevados e que “o rácio funcionamento/programação é completamente desajustado”. Mais de 90% do dinheiro que se investe no Opart, lembra ao PÚBLICO Barreto Xavier, é para a estrutura: “Sem o fundo de fomento cultural, sem o apoio de mecenas como a EDP, seria muito difícil fazer outra coisa do que manter a porta aberta no São Carlos e na CNB.”
Os números parecem corroborar esta leitura. Segundo dados fornecidos pelo Opart, no ano de 2015 (ano económico, não a temporada) este organismo conta com um orçamento de 20,8 milhões de euros, dos quais 1,8 são gastos com a programação do São Carlos, o que representa 9% do total (a temporada da CNB custa 1,1 milhões, 5,5% do total, mas conta com um mecenas que assegura um terço desse valor, a EDP).
Barreto Xavier não concorda com a junção da CNB e do São Carlos sob o mesmo organismo, mas diz ter mantido o modelo que herdou do governo socialista para conter custos, já que extingui-lo “custaria muito dinheiro”. Reconhece que o teatro de ópera tem vivido momentos de instabilidade, com os conselhos de administração a mudar e a ausência de um director artístico, mas garante que “o problema é mais profundo do que isso – é estrutural, não é fácil de resolver”. A impossibilidade de programar a vários anos cria dificuldades óbvias, acrescenta, dificuldades que são reforçadas porque há um desfasamento entre Orçamento de Estado (Janeiro a Dezembro) e temporadas (Setembro a Junho): “Precisamos de um exercício plurianual que salvaguarde as temporadas.”
A próxima, pelo menos, está garantida. E Joana Carneiro espera continuar a cativar o público: “Temos uma temporada que fala a quem gosta daquilo a que está habituado e a quem gosta de ser surpreendido. As pessoas vêm e gosta do que vêem. Espero que nos acompanhem também nas outras salas.” Na passada temporada foram mais de 14500 os espectadores da ópera e os dos concertos e outras actividades rondaram os sete mil (o Opart não tem ainda disponíveis dados relativos à ocupação média do teatro).