Guerra indiscriminada da Turquia mata cessar-fogo com rebeldes curdos

Ancara entra definitivamente na guerra síria. Pelo caminho, aproveita para esmagar os separatistas curdos e suas ambições de autonomia a Sul da fronteira.

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Manifestantes de esquerda radical num protesto em Istambul contra a vaga de detenções de militantes curdos YASIN AKGUL/AFP

Neste sábado, as primeiras consequências: uma grande ofensiva aérea contra posições de rebeldes curdos no Iraque levou o grupo separatista Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) a cancelar a trégua instável que mantém com o Governo turco há dois anos e a ameaçar reacender uma guerra civil que, no últimos 30 anos, matou cerca de 40 mil pessoas.

Ao longo da madrugada, caças turcos atingiram várias posições do PKK no Norte do Iraque, incluindo territórios do Curdistão. “Pontos de logística, alojamentos e edifícios de armazenamento”, segundo o gabinete do primeiro-ministro turco, Ahmet Davutoglu. Na sequência desta ofensiva, a primeira da Turquia no Iraque desde 2011, o braço armado do PKK atirou por terra o cessar-fogo alcançado em Março de 2013. “A trégua não tem nenhum significado depois destes ataques aéreos intensos”, disseram os rebeldes curdos num comunicado. A resposta, asseguram, será anunciada em breve.  

Na Turquia, as detenções em massa prosseguiram. Numa nova mega operação foram detidos quase mais três centenas de suspeitos jihadistas, membros do PKK e também do grupo de extrema-esquerda DHKP/C. É a segunda operação deste género desde que começou esta guerra “sem distinção”. Entre sexta e este sábado foram detidas 590 pessoas.

As acções turcas deste sábado visam também as aspirações curdas a Sul da fronteira. E, possivelmente, a estratégia global do combate contra o autoproclamado Estado Islâmico (EI) na Síria. Horas depois dos ataques aéreos contra os curdos no Norte do Iraque e também contra novas posições dos jihadistas na Síria, o ministro turco dos Negócios Estrangeiros anunciou que seriam criadas “zonas de protecção” e de “interdição do espaço aéreo”, a Norte do país vizinho.

Oportunismo político
O processo de negociação de paz entre Governo turco e rebeldes do PKK está estagnado há meses. Ancara insiste no desarmamento do grupo separatista e os curdos na criação de um estado independente. O líder do PKK na prisão, Abdullah Öcalan, chegou a pedir o desarmamento do grupo em Fevereiro, mas os combatentes disseram que iriam esperar por sinais de reformas do lado do Governo turco. Resultado: “nem independência, nem integração”, diz o especialista no conflito curdo Cem Emrence ao jornal turco Hürriyet.

Nem o cessar-fogo declarado em Março de 2013, então considerado “um dos passos mais importantes de sempre na história deste conflito”, estava a ser inteiramente cumprido. Os combatentes do PKK começaram a atingir esporadicamente posições governamentais como resposta ao aumento de postos do exército turco. Mas a trégua impedia um confronto aberto.

Tudo se alterou nesta semana. Há muito que a minoria curda acusa o Governo turco de não a proteger contra ataques do EI. Muitos chegam a acusar Ancara de colaborar activamente com os jihadistas para atacarem posições das milícias curdas no Norte da Síria. O Governo turco nega as acusações, embora não se livre de críticas, estas vindas da comunidade internacional, de pouco ter feito até agora para anular a presença dos islamistas junto às suas fronteiras, ou de travar o fluxo de combatentes estrangeiros para as suas fileiras.  

Este foi o pano de fundo para o ataque suicida do EI em Suruç, na segunda-feira, que matou 32 jovens activistas curdos, feriu cerca de uma centena e se tornou no rastilho para as ofensivas da Turquia dos últimos dias. Os jihadistas desencadearam o ataque, mas a resposta curda foi contra o Governo turco. Ao longo da semana, o PKK reivindicou a execução de dois polícias turcos e a morte de um terceiro. A estes casos juntaram-se ainda vários ataques armados a postos do exército e violentos protestos nas ruas de Istambul e no Sudeste do país, de maioria curda.

Os pequenos ataques do PKK são a justificação do Governo turco para a guerra indiscriminada. “Estes elementos precisavam de ter uma resposta, e por isso tiveram-na”, disse o primeiro-ministro turco. De acordo com Davutoglu, o PKK lançou mais de 125 ataques armados e foi responsável por dezenas de raptos na Turquia desde o início de Junho.

A ofensiva militar contra o PKK está a ser encarada como um caso de oportunismo político pela ala curda. O Governo turco está ainda a compor-se das eleições de Junho. O partido secularista pró-curdo HDP (Partido Democrático do Povo) entrou no Parlamento e “roubou” a maioria absoluta ao AKP, que tem andado em negociações com a oposição para um Governo de coligação, até agora sem frutos.

Para o HDP, o Governo turco está apenas a preparar-se para eleições antecipadas. Dizem os pró-curdos num comunicado, este sábado: “[A ofensiva] é um plano para incendiar o país, para que garantir um Governo de um só partido em eleições antecipadas, criando um clima militarista e nacionalista ao mesmo tempo que fomenta a impressão de estar a combater o terrorismo.”

Nova estratégia global
O ministro dos Negócios Estrangeiros não deu mais detalhes sobre a construção das “zonas de protecção” que, adianta, serão criadas “naturalmente”. Mas há indicações de que estas podem coincidir com os territórios ocupados ao longo da fronteira turca pelas milícias curdas na Síria, que operam sob o comando das YPG (Unidades de Protecção do Povo). Segundo avançou esta semana o jornal turco Milliyet, Ancara prepara há meses um corredor militar de mais de 2000 milhões de dólares cujo principal objectivo é impedir que os curdos unifiquem o território conquistado ao autoproclamado EI na Síria.   

Sem a intervenção das YPG, Kobane, na fronteira com a Turquia, até agora a batalha mais longa e uma das vitórias mais importantes contra o EI no terreno, estaria ainda sob o poder dos jihadistas. Há também Tal Abyad, conquistada pelos curdos aos extremistas em Junho, igualmente um território chave na fronteira. Ao cabo destas conquistas, os curdos conquistaram uma importante cintura de territórios no Sul da Turquia, declararam governos provisórios e aprovaram uma Constituição. Em suma: a maior esperança dos curdos para um estado autónomo entre Síria e Turquia.

Um estado curdo é algo que o Presidente turco Recep Tayyip Erdogan quer impedir “a qualquer preço” – palavras suas. Uma zona militarizada na fronteira tem sido encarada como uma das estratégias possíveis para o fazer. Mas não sem implicações estratégicas no combate ao Estado Islâmico na Síria. As YPG – com ligações informais ao PKK – são os grandes aliados no terreno da coligação liderada pelos norte-americanos, que lhes fornece armamento e dá treino a milícias vizinhas no Curdistão iraquiano. Interferir com os territórios curdos na Síria pode desestabilizar a aliança entre Washington, Ancara e curdos na Síria.

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