A prostituição (quase) à beira da estrada nas fotografias de Valter Vinagre
A prostituição à beira da estrada encerra um mundo lúgubre, violento e frágil. Em Posto de Trabalho, o fotógrafo Valter Vinagre decidiu olhar para o que se esconde além das valetas e dos lugares de espera. Encontrou de tudo.
Não admira, porque cresceu com ela nas traseiras de casa. A Nacional 1 - que atravessa a terra onde nasceu e cresceu (1954, Avelãs de Caminho, Anadia) – fê-lo compreender a força vital de uma linha alcatroada. E mostrou-lhe o quão violento pode ser o universo que a rodeia. Em 2003, revelou Para, imagens de espaços, flores e memoriais levantados para fazer o luto a vítimas de acidentes nas estradas. E foi durante a captação dessa série que começou a interessar-se pelo universo da prostituição que faz da estrada o seu posto de trabalho. Em vez de olhar simplesmente para o lado, Vinagre embrenhou-se no mato, em descampados inóspitos e lugares lúgubres, à procura das construções improvisadas que servem de recato às prostitutas, os lugares onde recebem quem as procura. Em Posto de Trabalho (Museu da Electricidade, Lisboa, até 20 de Setembro) não há ninguém, mas não falta gente. No lusco-fusco aplicaram-se luzes fortes para deixar a cortina meio aberta, meio fechada. Durante o trabalho houve “medo” e a sensação de estar sempre à “mercê”. Conversa com um fotógrafo irrequieto, num fim de tarde abafado.
As fotografias de Posto de Trabalho têm um lado cénico muito forte. Porque quis trabalhar com uma luz tão incisiva? Não tem receio de passar uma abordagem estetizada do mundo da prostituição?
Não. Quando comecei a fotografar, há uns quatro ou cinco anos, fui abandonando várias estratégias de aproximação formal ao tema. Deixei-as pelo caminho porque me pareceram iguais ao que já conhecia. Se mantivesse a realidade tal como a encontrei, o trabalho não ia para o caminho que queria. Ao optar por luz artificial e por não ter presença humana física, escolhi o caminho da metáfora. Costumo dizer que estas fotografias estão cheias de gente, embora não vejamos lá ninguém. Creio que ao vermos estas imagens é-nos difícil passar ao lado de uma carga humana. Quis mostrar algo que não tinha tido grandes abordagens pela fotografia em Portugal. Na verdade, quando percorremos uma estrada vemos pouco do que se passa à sua volta ou para lá do que está nas suas margens. No caso da prostituição, o que vemos é uma mulher mais ou menos jovem, mais ou menos bela e mais ou menos despida. E não vemos mais nada. Elas acabam por funcionar como uma espécie de cortina sobre o que se passa nas suas costas. Mas eu decidi com este trabalho não correr totalmente essa cortina. E acho que a luz artificial contribuiu para isso - esconde mais do que mostra.
Tem um efeito de encandeamento?
Sim. É uma luz teatral. Provavelmente, algumas pessoas acharão que estarei de alguma maneira a dourar a pílula, mas o que pretendo é exactamente o contrário.
Quis que olhássemos mais para o lado, em vez de olharmos apenas em frente?
Isso mesmo. Uso a história da Alice no País das Maravilhas para muita coisa e aqui também se pode usar. Quando ela atravessa o espelho tudo se transforma. Estas imagens até podem parecer-nos belas, mas se conseguirmos atravessar para além da sua superfície, se passarmos para o outro lado do espelho, perceberemos que a realidade que captam não é bem assim.
O que o levou até este universo?
Penso muito no que me leva até certos trabalhos. E chego à conclusão que muitas coisas a que me dedico são autobiográficas. Algumas realidades fizeram parte da minha infância de tal maneira que em determinado momento tenho de parar e pensar sobre elas. Nasci numa terra que é atravessada pela Nacional 1. Era uma zona de muitos acidentes. A partir dessas memórias fiz o Para. Quando era pequeno, saía de casa, atravessava o quintal e a estrada e estava na escola. A estrada esteve sempre presente durante a minha infância e, quando olho para trás, noto que o meu trabalho está muito ligado a ela. São cenários de extrema violência. E esse é um dos temas que me interessa tratar – a questão da violência na sociedade contemporânea.
E foi durante esse trabalho que a prostituição à beira da estrada o despertou?
Fui-me aproximando mais, como era inevitável. Houve fotografias que fiz com muito medo. Não tanto por sentir uma ameaça física, mas por me parecer que naqueles locais estamos sempre à mercê de qualquer coisa. Percebi que quando as prostitutas e os clientes vão para os sítios que fotografei também estão à mercê de tudo. Daí essa tensão permanente.
Fotografou estes lugares na presença das prostitutas?
Não. Mas falei muito com elas em todos os locais onde fotografei. Recolhi histórias hilariantes, terríveis, que me serviram para decidir o rumo do trabalho em termos mais formais, como a decisão de abrir ou isolar determinadas zonas com luz. Durante essas conversas, ouvi coisas que são difíceis de acreditar. Podemos imaginar que se possam passar num bordel ou num apartamento, mas nunca no meio do mato. Há todo o tipo de taras a acontecer em locais descampados.
Então em que momentos do dia fotografou?
Antes ou depois delas saírem, muito cedo ou então ao cair da noite. Procurei um certo lusco-fusco.
Porquê?
Por um lado, porque me permitia manobrar a luz da maneira que queria. Por outro, não para criar problemas a quem estava a trabalhar.
Levou a câmara nas primeiras abordagens?
Sim, sempre. Foi fácil de convencê-las a deixarem-me fotografar. Quando lhes explicava o trabalho, muitas respondiam num tom de brincadeira algo como “O quê! Mas sem mim?!”
O que lhe interessou tanto neste tema?
Várias coisas. Uma das quais, o lado do improviso de algumas construções. Mas ao mesmo tempo essa fragilidade violenta que está nestes lugares. Penso que a natureza da construção destes espaços e o propósito a que estão ligados foram os aspectos que mais me despertaram.
Encontrou muitos objectos pessoais nestes lugares?
Sim, em muitos casos. Alguns tinham altares com santinhas. Esses objectos fazem com que a presença destas mulheres se acentue em certas imagens. Mas não quis sublinhar demasiado esses pormenores. Quis criar imagens a partir do exercício desta profissão. E interessa-me lançar questões como estas: porque é que os clientes continuam a procurar a prostituição nestas condições? O que leva uma parte da Europa e alguns movimentos em Portugal a quererem criminalizar os clientes, as prostitutas ou o acto?
Mas sentiu que havia uma absoluta falta de imagem sobre esta realidade?
Sim. Quis fazer um trabalho que também possa servir como denúncia. Por exemplo: há uma série de perguntas que se podem fazer acerca da manutenção por largos períodos de tempo de algumas destas construções, porque muitos dos terrenos onde são erguidas são privados. Há muitas histórias que circundam estes lugares que estão para além daquilo que se vê ou pode ser mostrado. Há ciúmes, há amor, há vingança. Em alguns casos, os proxenetas ou os clientes pegam fogo a estes abrigos.
Como se lhes estivessem a destruir a casa…
O posto de trabalho.
Estes lugares parecem esconder um lado muito violento…
São lugares duros, onde há miséria, doença... E por isso tentei não olhar para eles apenas pelo lado estético, que é coisa que por si só não me interessa na fotografia. Não gosto de fazer grandes manifestos com os meus trabalhos, mas gosto que as ideias saiam da minha cabeça.
Que consequência gostava que este trabalho tivesse?
Que se começasse a olhar para esta realidade com menos moralismo, por exemplo. E com mais prática humana.
Continua a haver muita prostituição à beira da estrada?
É muito presente ainda. Existe um pouco por todo lado, em zonas rurais, em zonas industriais, em zonas urbanas. E parece-me que há cada vez mais estrangeiras.
Que tipo de tensão existe em lugares como estes?
Todos os sons se tornam importantes e despertam os sentidos. O que provoca muita tensão. No início senti-me mais ou menos despreocupado, mas depois foi-se tornando mais difícil. Estava quase sempre sozinho. Sentia-me à mercê de qualquer coisa. Os líderes das redes de prostituição e os donos daquelas matas podiam aparecer e achar que estava a estragar o negócio. Nunca aconteceu.
Acha que essa tensão também pode estar relacionada com a identidade que estes lugares vão acumulando?
Sim. E de alguma forma sentia-me um intruso nesse espaço, a interferir nele. Como se estivesse a entrar num local sagrado sem permissão.
E como foi descobrindo estas construções?
A partir do sítio da espera. Em muitos casos, seguia os caminhos já feitos que por sua vez iam dar a lugares mais recolhidos. Esse isolamento sublinhava ainda mais o sentimento de estar a entrar num território proibido.
E onde sentiu maior grau de violência?
Nos lugares onde não havia construções. Onde havia só um tapete ou uma manta. É muito estranho. Senti alguma repulsa.
Nos últimos trabalhos tem mostrado aspectos da nossa vida social ligados à violência. Qual é a maior dificuldade ao fotografar estes problemas?
Talvez seja o de não os tornar apenas exercícios estéticos. Se não forem bem pensados e contextualizados correm esse risco. O tempo é fundamental em trabalhos com o grau de complexidade como o que o tema da violência familiar, por exemplo, carrega. Tento amadurecer os trabalhos antes de ir para o terreno. E imaginar as imagens que preciso para concretizar a minha ideia, o meu pensamento e a minha opinião sobre as coisas. Quando sinto que o trabalho não está resolvido, espero.
E pode acontecer resolver um trabalho ainda antes de haver imagens concretizadas?
É fundamental a ideia estar resolvida. O processo funciona como se tivesse um baralho de cartas e fosse deitando fora a palha, as cartas que não valem pontos. Lembro-me de que quando pensei neste trabalho pela primeira vez havia uma grande indecisão entre o dentro e fora.
Como assim?
Tinha de ser na estrada, fora. Cheguei à conclusão que não me interessavam as zonas urbanas e os prostíbulos, os clubes, os cabarés ou os bordéis, coisas que já foram feitas por outros fotógrafos.
E quando se isola um tema para trabalhar, que importância tem essa preocupação com o novo?
Não me preocupo em fazer imagens novas que nunca ninguém tenha feito. Mas enquanto autor procuro uma linguagem própria. Que seja consequente. Em todo o caso, a fotografia não se esgota no seu mecanismo. Esse problema coloca-se muito mais ao nível de quem está por detrás da câmara.
O que se passou para que o colectivo de fotógrafos de que fazia parte, o kameraphoto, acabasse? Houve um grupo de pessoas a desentender-se ou a fotografia que faziam já não tinha lugar?
Foi um desentendimento. O fim não esteve relacionado com um vazio criativo.
Um colectivo com aquelas características ainda faria sentido hoje em Portugal?
Sim. Tanto que se sente algum vazio. E não será fácil preenchê-lo. Um colectivo é feito por pessoas com pontos comuns e discordâncias. Houve um momento em que se juntaram e que pensaram em conjunto. Discutia-se muito o trabalho de cada um com grande respeito.
Este trabalho foi discutido no seio da kameraphoto?
Foi. Até porque começou durante a primeira edição do projecto Um Diário da República, em 2010.
Há uma separata com um texto de Jaime Rocha que acompanha o livro Posto de Trabalho. Foi-lhe pedido algo específico?
Não. Entreguei-lhe as fotografias e pedi-lhe um texto a partir delas. Depois falámos sobre as imagens e sobre as histórias que fui ouvindo e o Jaime entregou-me um monólogo que se chama A Culpa Não Foi Minha.
O narrador deste monólogo põe-se no lugar do fotógrafo…
Sim, pois, e não no lugar de um intruso, o que é bastante mais confortável. Este fotógrafo é também um ouvinte.
Um confidente?
Pode ser entendido dessa maneira. E essa é um dos aspectos que mais me entusiasmaram neste trabalho – quis ouvir, gostei de ouvir.
Sentiu-se a ouvir estas mulheres ao captar as imagens?
De alguma maneira, sim.
E o Jaime foi ouvindo essas histórias?
Sim, antes de partir para o texto. Quando soube que era um monólogo fiquei muito satisfeito porque acho que é um género que se adapta perfeitamente ao trabalho. Pode relacionar-se com o lado cénico de que falávamos no início.
E acha importante essa ideia de dar voz a estas imagens?
Muito. Porque de certa forma o texto dá voz às pessoas que estão nas imagens, mas que não vemos.
A palavra humaniza o trabalho?
Em absoluto. Mas tanto o livro como o texto podem viver sozinhos. O texto, por exemplo, vai ser o ponto de partida par uma encenação feita por um grupo de teatro no local da exposição. Haverá actores a fazer uma leitura encenada do texto. Será no dia de encerramento, no dia 20 de Setembro.
E de quem partiu o convite?
Em determinado momento da concepção da exposição senti que podia arriscar em áreas que nunca tinha entrado. Aliando-me a alguém que realiza [Bruno Cabral], pude arriscar num vídeo, que serve como antecâmara da exposição e que se chama Espera. E senti que podia arriscar em vozes em duas imagens específicas para dar ainda mais força à ideia de que ali se passam coisas que nunca imaginaríamos que acontecessem em lugares como aqueles. Falámos de actores e o Jaime sugeriu o Teatro Mosca. Essa gravação das vozes aconteceu e eles disseram que também queriam encenar o monólogo.
Portanto, três coisas novas?
Isso mesmo. Fi-lo porque achei que este trabalho se prestava a esta dispersão de momentos. No filme, ocupei o lugar das prostitutas para tentar captar o que elas vêem e como pode ser entediante aquele olhar para a frente, apesar de todas as palavras cruzadas que possam existir.
Qual foi a última fotografia que tirou?
Foi a uma paisagem, ontem. É uma daquelas fotografias “sobre” qualquer coisa, a uma terra que se chama Oledo. Servirá para a junta de freguesia levar para feira raiana de Idanha-a-Nova. Ao cair do dia, subi a uma encosta para apanhar toda a zona do vale e fiz uma fotografia bonita.