O inferno que pode haver no céu
O crescimento, o amor, a violência, o ciúme e a desobediência são o centro de História do Novo Nome. Mais um ponto alto da escrita de Elena Ferrante.
Apareceram pela primeira vez em A Amiga Genial – o primeiro volume da série – e voltam agora entre a adolescência e o princípio da idade adulta em História do Novo Nome, quando com 16 anos, e depois de deixar a escola, Lila casa com Stefano, um dos rapazes ricos do bairro. O novo nome é esse apelido que lhe molda a nova identidade: a de mulher casada de quem se esperam filhos e dedicação à casa. Teria sido talvez assim se no primeiro dia de casamento o amor que sentia por Stefano não lhe fugisse. A história do que se passa entre o final da escola primária e 1966 chega às mãos de Lenú, menos em forma de diário do que do “esboço de uma obstinada autodisciplina de escrita” exposta em oito cadernos. Desprendia-se deles a “força de sedução que emanava de Lila desde pequena”, lê-se, e é como se Ferrante se agarrasse a essa característica da escrita da sua personagem para modelar a sua.
É a partir desse discurso de Lila e da experiência pessoal de Lenú, no seu percurso emocional e intelectual, que se constrói uma narrativa com muitos momentos de tensão, que conjuga o suspense de um thriller com traços de um romance de crescimento, histórias de amor e uma grande proximidade com o cinema no modo com as descrições de ambiente e os múltiplos enredos se cruzam. Tudo numa gestão muito precisa de ritmo. “Pousei a caixa no parapeito, empurrei-a devagarinho, pouco de cada vez, até que caiu no rio como se fosse ela, a própria Lila, a cair, com os seus pensamentos, as suas palavras, a maldade com que pagava a todos da mesma moeda, olho por olho, o modo de se apropriar de mim, como fazia com qualquer pessoa, ou coisa, ou acontecimento, ou informação que lhe passasse ao alcance: os livros e os sapatos, a doçura e a violência, o casamento e a noite de núpcias, o regresso ao bairro no seu novo papel de senhora Raffaella Carracci.”
Estamos nas primeiras páginas do livro, e quem não leu A Amiga Genial já é capaz de perceber o tipo de relação que existe entre estas duas mulheres, cheia de um sentimento contraditório que estão a aprender a reconhecer – sobretudo, Lenú – e que ganha especial intensidade numas férias de verão em Ischia, marcadas por paixões fortes, sentimentos intempestivos. É o ponto central e mais longo deste romance, quando Lenú, por exemplo, aprende a olhar o céu de um modo totalmente novo e a sentir-se inadaptada debaixo dele. “A beleza das coisas é uma caracterização, o céu é o trono do medo; estou viva neste momento, aqui, a dez passos da água e na verdade isso não é belo, é aterrador, faço parte, juntamente com esta praia, com o mar, com o fervilhar de todas as formas animais, do terror universal; neste momento sou a partícula infinitesimal através da qual o terror de cada coisa toma a consciência de si…” Lila descobrira isso ao ler o teatro de Beckett, num volume que roubou a Lenú, e a partir daí retomou a leitura, numa apreensão do texto sempre muito “doméstica”, palavra e conceito caros a Ferrante. Ela escreve muito próximo do quotidiano e a literatura ganha relevo nesse contacto, como se aí, no real mais despido, estivesse a confirmação da sua validade. Quando Lila encontra a antiga professora da primária – a primeira a detectar-lhe o brilhantismo e a desiludir-se com o rumo que lhe dava –, ela pergunta-lhe o que lê. Lia Ulisses e tinha o filho pequeno no carrinho de bebé. “Fala da Odisseia?”, pergunta-lhe a professora, e Lila responde: “Não, fala de como é terra a terra a vida de hoje.” E pouco depois: “Diz que temos a cabeça cheia de disparates. Que somos carne, sangue e ossos. Que uma pessoa vale tanto como outra. Que só queremos comer, beber e foder.”
A História do Novo Nome segue a mesma toada de A Amiga Genial. Quem começar a ler a saga de Nápoles por aqui encontra no início do livro a apresentação das personagens. São muitas. Ramos que se interceptam. Quem já leu o primeiro volume acha aqui mais pontos de tensão, uma maior intimidade que vem da aprendizagem do silêncio por duas raparigas a perder a inocência, e de uma espécie de impulso de morte que contamina o amor, o desejo, a violência, o ciúme, a perda. Ferrante domina a linguagem para dizer tudo isso como se fosse original. Portanto, como escrever sobre estes livros? Como chegar perto, atrair a atenção que eles merecem, mas deixando intacto o texto que ela escreve como se ele fosse tudo?
Talvez dizendo que a leitura é impelida por uma enorme compulsão e que no fim fica um vazio semelhante ao que deixam as personagens que desaparecem nas vidas que deixam para trás. É outra marca da escritora: a falta que há na ausência. Também a do rosto de Ferrante que por vezes se procura na primeira pessoa com que escreve. Esse “eu” que é o de Lenú e às vezes o de Lila e que na sua diferença funciona como um espelho não apenas uma da outra, mas também do leitor que se reconhece em ambas. Ferrante joga nessas nuances e aí cria o desassossego da boa literatura.