Poluição no rio Almonda, um problema de saúde pública sem fim à vista
Problema arrasta-se há décadas, à vista de todos, mas ninguém conseguiu ainda parar as descargas ilegais. A água do rio contaminada é usada para rega de plantações agrícolas. “Temos aqui um problema de saúde pública”, diz o BE
E nem os dez milhões de euros recentemente investidos na requalificação das estações de tratamento de águas residuais (ETAR) do concelho de Torres Novas, que o rio atravessa, resolveram o problema. Pelo contrário, este agravou-se nos últimos meses.
Nas ribeiras da Serradinha e da Boa Água, que atravessam canaviais e silvados e desaguam na segunda metade do Almonda, na zona industrial do concelho, a água corre castanha, nalguns sítios esverdeada, noutros em tons de vermelho, mas sempre oleosa e com um cheiro nauseabundo. No leito escuro e enlameado não há vestígios de flora e muito menos de peixes, que têm morrido aos milhares nos últimos anos, segundo relatos da imprensa local.
“Antigamente, as ribeiras levavam água no Inverno mas secavam no Verão. Agora, há 20 e tal anos que não secam”, diz quem vive paredes meias com a Serradinha e já perdeu a conta às descargas ilegais que denunciou às autoridades – foram tantas que agora prefere não dar o nome, para evitar represálias.
“É constantemente”, continua. As laranjeiras plantadas junto à ribeira secaram, o milho só não seca porque é regado com a água do poço, garante o homem. Mas não faltam ao longo das margens do Almonda, desde a zona industrial até à fronteira com o concelho da Golegã (onde acaba por desaguar no Tejo), motores a puxarem a água poluída do rio para regarem os campos de milho, tomates, alfaces ou melancias.
“Temos aqui um problema de saúde pública”, alerta António Gomes, deputado do Bloco de Esquerda (BE) na Assembleia Municipal de Torres Novas. “A situação nunca foi boa, mas pode dizer-se que recuámos algumas dezenas de anos” nos últimos meses, considera. Em causa estão as alterações introduzidas nas ETAR do concelho, que aumentaram as exigências no que toca à qualidade dos efluentes industriais recebidos para tratamento nas estações. “As fábricas têm que fazer o pré-tratamento das suas águas residuais mas muitas não o fazem”, afirma António Gomes. A alternativa é fácil de adivinhar.
A Águas do Ribatejo, empresa de capitais públicos que gere os sistemas de saneamento de águas residuais em sete concelhos ribatejanos, incluindo Torres Novas, explica que as obras concluídas no início do ano permitiram substituir equipamentos que estavam “obsoletos” e instalar “processos de tratamento de esgotos adequados às novas exigências de protecção ambiental” e “mais eficientes em termos de redução da poluição”.
Os esgotos industriais apenas são recebidos nas ETAR se cumprirem os valores máximos de carga poluente definidos pela Águas do Ribatejo, que faz o controlo regularmente. “Cada indústria é analisada separadamente e, cumprindo-se os requisitos, a AR emite uma autorização de ligação e descarga”, relata um representante da empresa, acrescentando: “em caso de incumprimento das condições impostas [os ramais] são desactivados (tapados)”. Quantos ramais foram tapados após as obras? A informação é confidencial, responde a empresa.
Falta fiscalização
“As novas ETAR não são o problema mas sim a solução”, afirma o presidente da Câmara de Torres Novas, Pedro Ferreira (PS). Para ele o problema está na falta de fiscalização eficaz, agravada pela falta de meios das autoridades. Por exemplo, o Serviço de Protecção da Natureza (Sepna) da GNR tem apenas cinco agentes destacados para todo o distrito de Santarém.
“Há alguns anos que as entidades que tutelam esta matéria sabem [do problema] mas têm permitido abusos”, lamenta Pedro Ferreira, pedindo uma “articulação mais estreita” entre as entidades com poder para sancionar os prevaricadores. “Doa a quem doer”. É isso que promete transmitir na quarta-feira aos representantes da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), do Instituto de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF) e do Serviço de Protecção da Natureza (Sepna) da GNR, com os quais irá reunir-se à procura de soluções.
Pedro Ferreira garante que estão identificados “vários pontos de descarga” ilegal no concelho, alguns “escondidos debaixo da terra e a atirar para o rio”, e que muitos deram já origem a processos de contra-ordenação. Mas ressalva que a câmara “só pode ir até determinado patamar”. E apela: "Peço aos torrejanos que sejam vigilantes.”
Voluntários contra a poluição
A população tem-se desdobrado em iniciativas de protesto e há mesmo quem se tenha posto ao caminho à procura dos prevaricadores, investigando por conta própria e denunciando os casos nas redes sociais e através de vídeos publicados no Youtube. Grupos de voluntários juntaram-se até, nos últimos dias, para limpar as margens dos afluentes e para alertarem as autoridades caso suspeitem de novas descargas.
Desde o início do ano o Sepna levantou quatro autos de notícia no concelho, o último no final de Junho, por contra-ordenação ambiental “muito grave”, relativo a uma descarga no meio hídrico de resíduos de óleos alimentares, transportados num camião cisterna.
O PÚBLICO questionou a APA sobre os resultados da fiscalização feita às empresas identificadas e perguntou que medidas serão tomadas para impedir e sancionar estas descargas ilegais, mas não obteve resposta.
Em Setembro de 2014, respondendo a perguntas do BE, o Ministério do Ambiente dizia estar “a acompanhar e a intervir com vista à melhoria da qualidade da água do rio Almonda”. Explicava que têm sido feitas “diversas acções de fiscalização e de inspecção das principais fontes de poluição”, identificando as empresas que são mais frequentemente mencionadas pela população como autoras das descargas, e enumerava alguns resultados.
Sobre a Fabrióleo, por exemplo, cujas instalações de produção de óleos alimentares estão situadas há cerca de 30 anos junto ao local onde nasce a ribeira da Serradinha, pero da aldeia de Carreiro da Areia, o ministério refere que a empresa possui uma ETAR e tem licença de descarga no meio hídrico, com autocontrolo quinzenal para diversos parâmetros. “Segundo a APA, os valores do autocontrolo cumprem os valores limite de emissão, cumprimento esse que se mantém desde a emissão da referida licença”, refere a tutela.
Contactada pelo PÚBLICO, a direcção da empresa negou genericamente quaisquer culpas no estado do Almonda e dos seus afluentes, atribuindo a terceiros, não identificados, a responsabilidade pelas descargas feitas nas proximidades das suas instalações. Por escrito, a empresa disse não estar disponível para prestar declarações por estar em curso um processo judicial sobre este assunto.
A respeito da Componatura, empresa que recebe resíduos orgânicos e produz composto – tem actualmente armazenadas 20 mil toneladas acéu aberto num terreno sobranceiro à pequena ribeira da Serradinha, na variante do Bom Amor, perto de Meia Via –, diz o ministério que uma fiscalização da APA, em Abril de 2012, não encontrou escorrências para o solo ou para o meio hídrico. “As águas residuais industriais desta empresa são encaminhadas para reservatórios estanques” em “cumprimento com a legislação ambiental”, continua.
Em respostas ao PÚBLICO por email, a direcção da Componatura sublinha que o composto que produz, acumulado numa enorme pilha que mais parece uma montanha de lama, próxima da estrada e de uma habitação, “está completamente maturado e por consequência estabilizado”, “não havendo por isso qualquer risco de lixiviação/contaminação”. Sobre as queixas relacionadas com o odor insuportável nas redondezas, a empresa diz estar “consciente do transtorno causado à população” e adianta que está a construir uma unidade de tratamento anaeróbio no Ecoparque do Relvão, na Chamusca, para onde deverá transferir os resíduos.
Mas a lista de empresas alegadamente responsáveis pelas descargas poluidoras é extensa: um documento datado de Junho deste ano, cujos autores são desconhecidos, mas que apresenta dados consistentes, e ao qual o PÚBLICO teve acesso, enumera de forma pormenorizada 40 empresas sediadas em Torres Novas e em concelhos vizinhos.
“Torres Novas tem uma localização privilegiada para grandes superfícies e indústrias, que se foram instalando nas últimas décadas, e muitas poderão ser potenciais poluidoras do Almonda”, admite o presidente da câmara.
Postos de trabalho podem ser alibi
O seu congénere do vizinho concelho da Golegã, Rui Medinas (PS), põe o dedo na ferida: “Não pode haver uma abordagem permissiva em relação a estas empresas só porque estão em causa postos de trabalho. Acredito que é isso que tem sido feito.” Para o autarca, “é preciso ir mais além na fiscalização, no licenciamento industrial e na eventual retirada da licença de funcionamento, se houver prática reiterada de crimes ambientais”.
O Almonda, que nasce na serra de Aire, já entra poluído na Golegã e chega assim à foz, no Tejo. “Estamos a fazer um investimento de um milhão de euros na margem ribeirinha da freguesia da Azinhaga”, afirma Rui Medinas, sublinhando que se a poluição continuar será dinheiro deitado fora.
O rio atravessa a fronteira entre os dois concelhos na zona do Paul do Boquilobo, reserva natural e a primeira em Portugal a ser classificada pela UNESCO como reserva da Biosfera, em 1981. Quando chega a esta área protegida, o Almonda é uma massa de água pestilenta, oleosa, verde e esbranquiçada.
“Os peixitos aqui morrem todos”, atesta Francisco, 54 anos, quase todos passados a guardar ovelhas. Tem a seu cargo 320 animais, que andam todos os dias pelos caminhos da reserva, e não precisa de análises para saber que o estado do rio não é bom. “É de uma fábrica, eles mandam aquilo de noite, de manhã é um pivete”, descreve. Mas a indústria não é a única culpada.
Até às obras feitas este ano, a ETAR da freguesia de Riachos (Torres Novas) era outra das grandes poluidoras do Almonda. Agora, a estação descarrega os efluentes no rio após o tratamento, mas antes a descarga era feita nas valas das Cordas e do Pereiro, próximas do paul, sem o devido tratamento. O resultado é um passivo ambiental estimado em 7120 toneladas de lamas contaminadas ao longo de mais de seis quilómetros.
Segundo um estudo pedido pela Câmara de Torres Novas, parte da lama – 2286 toneladas – poderá ser desidratada no local e, eventualmente espalhada em campos agrícolas. A restante terá que ser removida para um local próprio, um processo que está em estudo com os concelhos vizinhos do Entroncamento (onde começa a vala do Pereiro) e da Golegã (onde desagua a vala das Cordas). “Estamos a desenvolver uma candidatura para obter fundos para a remoção do passivo ambiental”, diz Rui Medinas.
O PÚBLICO questionou o ICNF sobre o impacto da poluição do rio na qualidade ambiental do Paul do Boquilobo, mas não obteve qualquer resposta. Esta área protegida alberga uma importante colónia de garças e de colhereiros e recebe outras espécies migradoras, algumas raras em Portugal e na Europa. “Não podemos correr o risco de esse santuário ambiental se transformar noutra coisa qualquer”, defende Pedro Ferreira.
Na resposta que deu ao BE em Setembro do ano passado, o Ministério do Ambiente confirma a “existência de contaminação” no Almonda, comprovada pelas análises mais recentes, e diz que vai “manter e reforçar a actuação no terreno para a protecção desta massa de água, considerada prioritária”. No terreno, porém, ninguém parece estar a actuar.
Notícia corrigida às 14h56 de 14/07: corrige o apelido do presidente da Câmara de Torres Novas, que é Ferreira e não Pereira