Viagens filosóficas: Exposição em Coimbra leva-nos até ao fim do mundo vivo de setecentos
Um naturalista de Pádua, professor na Universidade de Coimbra, e quatro alunos seus. O jardineiro do Real Jardim Botânico da Ajuda e os ilustradores da Casa do Risco. O iluminismo e a ânsia de conhecimento. No Museu da Ciência de Coimbra há uma viagem a fazer pelo mundo lusófono do século XVIII.
No edifício em frente – o Colégio de Jesus, também parte do Museu da Ciência da Universidade de Coimbra – começa a descoberta de novos mundos exóticos do Brasil, África e Índia do século XVIII. A exposição evocativa das viagens de setecentos, com a curadoria de Pedro Casaleiro e Helena Pereira, traz a público os encontros com a ciência, partindo de um conjunto de espécimes, ilustrações e memórias que os quatro naturalistas escolhidos pelo seu mestre recolheram nas expedições. Inaugurada em meados de Maio, Natureza Exótica – Viagens Filosóficas de Naturalistas pode ser visitada até 11 de Outubro, de terça-feira a domingo.
“A exposição já tinha sido pensada há muito tempo, mas surge agora no seguimento da classificação da Universidade de Coimbra como Património Mundial da Humanidade pela UNESCO”, conta ao PÚBLICO o museólogo Pedro Casaleiro, vogal da direcção do museu. “Também porque o espaço pedia a iniciativa: foi aqui que os naturalistas fizeram a sua formação e foram escolhidos pelo professor da Universidade de Coimbra promotor das viagens, Domingos Vandelli.”
Para realizar a exposição, o Museu da Ciência estabeleceu uma parceria com o Museu Nacional de História Natural e da Ciência da Universidade de Lisboa, que forneceu as ilustrações e parte dos artefactos. “O objectivo da exposição é associar a cada espécime a respectiva ilustração feita pelo riscador que acompanhava o naturalista na viagem”, explica Pedro Casaleiro.
Os riscadores eram formados na Casa do Risco, anexa ao Real Jardim Botânico do Palácio da Ajuda, em Lisboa, e acompanhavam os naturalistas para complementar as descrições de história natural com a ilustração minuciosa de cada espécime, ou ainda produzirem representações topográficas, apontamentos hidrográficos e panoramas de vilas e cidades. A Casa do Risco, criada por Vandelli, foi a primeira escola de ilustração científica em Portugal e uma das primeiras no mundo, onde chegaram a estar quase 20 desenhadores a ilustrar os espécimes enviados das colónias.
A primeira parte da exposição destaca a importância da preparação das viagens. Era necessária a aprendizagem e o treino de um método para recolher, preparar, conservar os espécimes e remetê-los para Lisboa, ao Real Gabinete de História Natural da Ajuda. O trabalho dos riscadores fazia-se muitas vezes in vivo no próprio local de recolha do exemplar ou mais tarde no Gabinete da Ajuda. As ilustrações tinham como fim integrar a História Natural das Colónias Portuguesas, obra que nunca chegou a ser publicada, mas que foi o motivo inicial para a realização das viagens.
Com o financiamento da Coroa, que via no conhecimento dos recursos naturais do império uma estratégia de fomento económico e integração no contexto científico europeu, as “viagens philosophicas” tiveram a orientação científica de Domingos Vandelli, catedrático da Universidade de Coimbra e director do Real Jardim Botânico do Palácio da Ajuda. A convite do marquês de Pombal, o italiano de Pádua veio para Portugal para leccionar e dirigir a Faculdade de Filosofia de Coimbra.
Após criar jardins botânicos e gabinetes para o estudo da “filosofia natural”, Vandelli acreditava que as viagens seriam uma forma de ampliar as colecções científicas portuguesas, assim como de desenvolver o estudo na área das ciências naturais. Mas é também da sua correspondência com Lineu, que lhe dedica em 1767 o género Vandellia da família das Scrophulariaceae, que surge o impulso para as expedições. Para o “pai” da taxonomia moderna, envolvido na incansável classificação do mundo vivo, a possibilidade de obter espécimes exóticos das colónias portuguesas era ouro sobre azul.
Vandelli escolheu então os seus quatro melhores alunos da Universidade de Coimbra, todos eles nascidos no Brasil, e com a ajuda do jardineiro da Ajuda empenhou-se no planeamento das viagens. Os quatro naturalistas tiveram depois formação no Real Museu do Palácio da Ajuda e contaram ainda com o apoio de manuais redigidos por Vandelli para orientar o trabalho de campo.
Entre 1783 e 1784, as equipas de expedição fizeram-se ao mar rumo às colónias portuguesas. Todos os naturalistas, excepto Alexandre Rodrigues Ferreira, que esteve no Brasil, acumularam funções de administração, o que os impediu de se dedicarem em exclusivo ao trabalho científico. Por este motivo, a expedição de Rodrigues Ferreira ao Brasil foi a mais bem documentada com exemplares de espécimes. A descrição detalhada de cada uma das viagens pode ser consultada numa infografia do PÚBLICO.
Pelo mundo lusófono
O naturalista Joaquim José da Silva partiu para Angola em 1783, com a função de secretário do Governo, além da de naturalista. Acompanhavam-no os riscadores Ângelo Donati e José António. Para além dos variados exemplares de espécimes dos reinos animal, vegetal e mineral, podem ser vistas na exposição amostras de petróleo e calcário betuminoso, assim como um exemplar do invulgar peixe-voador. A morte inesperada dos dois riscadores impôs que Joaquim José da Silva desenhasse ele mesmo os espécimes. Algumas destas ilustrações encontram-se também expostas no Museu da Ciência.
Em Cabo Verde esteve o naturalista João da Silva Feijó, tendo para lá partido em 1783, sem assistentes. Na Ilha do Fogo testemunhou a erupção vulcânica que lá teve lugar durante 32 dias sucessivos, em 1786. Do material remetido para Lisboa, e que consta da exposição, fazem parte ilustrações do vulcão em erupção, bem como exemplares de rochas vulcânicas. O principal resultado da expedição de Feijó foi um vasto herbário, com cerca de 213 espécies, incluindo 80 plantas de géneros ou espécies desconhecidas até então.
Já o naturalista Manuel Galvão da Silva passou cerca de dois meses em Goa, antes de partir para Moçambique em 1783, com o riscador António Gomes e o jardineiro José da Costa. De Goa chegam-nos um herbário e vários exemplares da fauna e de minerais da região. Em Moçambique, Galvão da Silva recolheu inúmeras amostras de minerais e redigiu diários que relatam as viagens por rios e pelo interior do território. Cobre, hematite, “ouro dos tolos” – assim chamado devido à semelhança que apresenta com o ouro – ou objectos de combate pertencentes aos povos da zona, como um escudo, arco e flechas, são alguns dos exemplares agora presentes na exposição.
Mas entre todas, a viagem ao Brasil foi sem dúvida a mais profícua, com milhares de espécimes e artefactos ainda hoje preservados. Durante nove anos, Alexandre Rodrigues Ferreira, com a companhia dos riscadores José Joaquim Freire e Joaquim José Codina e do jardineiro Agostinho Joaquim do Cabo, percorreu a bacia do Amazonas até ao Mato Grosso, numa expedição que teve início em Belém do Pará. As mais de mil aguarelas originais produzidas formam hoje o vasto espólio deixado pelos riscadores Codina e Freire, dos quais apenas o último voltou vivo a Portugal.
“Uma grande parte da colecção exposta foi remetida pelo Real Museu do Brasil à Universidade de Coimbra. O que aqui vemos resulta de um cruzamento das duas colecções – a que estava já em Portugal e a que chegou do Brasil em 1806”, explica Pedro Casaleiro. De um extenso legado etnográfico faz parte um conjunto de ilustrações que retrata de forma pormenorizada os índios das diferentes tribos ou exemplares de armas, geralmente de madeira, e loiças decoradas com pinturas.
Um diadema feito em penas mostra o uso ornamental que as tribos davam a animais como as araras. As cores brilhantes das penas representavam o Sol e eram usadas em diversos adereços. Expostos encontram-se também exemplares de instrumentos usados pelos índios para inalar o tabaco “paricá”, uma substância alucinogénia extraída das sementes de árvores do género Anadenanthera. Uma ilustração mostra o processo de inalação.
A tartaruga-da-amazónia era um animal bastante consumido, em especial pela sua fonte de proteína e gordura. Pedro Casaleiro conta como os índios a apanhavam e cozinhavam: “Na captura, utilizavam o método de viração: a tartaruga era virada e dessa forma impediam-na de fugir. Depois cozinhavam-na abrindo a parte de baixo e usando a carapaça como uma espécie de tacho onde a aqueciam.”
Os ovos eram também aproveitados, em especial para o fabrico da manteiga de tartaruga. A preparação da manteiga de ovos de tartaruga é também ilustrada numa imagem, tal como o processo da captura do animal.
Dos exemplares provindos do Brasil faz também parte um largo conjunto de espécies de peixes, conservadas segundo uma técnica de herbário, e que se encontra agora em exposição.
“O herbário de peixes é uma preciosa colecção do museu, e foi agora exposta pela primeira vez. Trata-se de exemplares de várias espécies conservados segundo uma técnica especial. Como para se fazer a classificação era necessário o exemplar em 3D, no século XIX esta técnica já estava obsoleta”, explica Pedro Casaleiro. Desenvolvida em 1741 pelo botânico holandês Jan Frederik Gronovius, esta técnica conservava em seco apenas parte do animal que era prensada sobre uma folha de cartão. Os exemplares expostos mostram o detalhe no tratamento dos olhos dos peixes, com folha de ouro, por forma a preservar o seu brilho natural.
“Notamos um grande interesse dos investigadores brasileiros que nos vêm visitar, sobretudo pela importância que Alexandre Rodrigues Ferreira tem no Brasil. Já tivemos convites para expor em Belém do Pará, mas também na Dinamarca”, conta Pedro Casaleiro. Até lá, no Museu da Ciência em Coimbra há uma viagem para fazer ao fim do mundo vivo das colónias portuguesas do século XVIII.