Dois secretários de Estado, mas de quem se fala é de um vereador

Se nos perguntarmos qual foi a figura que conseguiu devolver alguma carga positiva à expressão política cultural, Paulo Cunha e Silva, o vereador do Porto, é um candidato bastante mais credível do que o secretário de Estado da Cultura.

Foto
Jorge Barreto Xavier Enric Vives-Rubio

As diferenças de perfil são tão notórias que, ao fazer-se o balanço da política cultural deste Governo, é difícil escapar à tentação de olhar para os consulados de Viegas e Barreto Xavier como dois momentos essencialmente distintos. Nada mais equívoco: se à superfície tudo parece afastá-los, irmana-os a inevitável irrelevância política de quem quer que aceitasse ser secretário de Estado da Cultura num Governo que acabou não apenas com o Ministério da Cultura, mas com a própria tutela autónoma da Cultura, e que vem destinando ao sector uns insignificantes 0,2% do Orçamento de Estado (OE).

Se contarmos toda a despesa da administração pública, os 182,8 milhões orçamentados para a Cultura em 2015 representam 0,21% do OE, percentagem que sobe para 0,289% se considerarmos apenas a administração central. Em 2011, no último ano em que existiu Ministério da Cultura, Gabriela Canavilhas pôde ainda dispor, apesar de todos os cortes, de uma previsão orçamental de 201,3 milhões. Em 2012, já com Viegas, a despesa efectiva na Cultura ficou-se pelos 167 milhões.

Sem lugar no Conselho de Ministros, dependentes de autorizações prévias das Finanças para tudo e mais alguma coisa e sem dinheiro para muito mais do que manter de portas abertas as principais instituições culturais do país, Viegas e Barreto Xavier também nunca tiveram a veleidade de se tentar opor, pelo menos publicamente, aos óbvios desmandos do Governo no sector. Veja-se o silêncio de Viegas quando o relatório de avaliação das fundações veio considerar a Gulbenkian, a Casa da Música ou Serralves como instituições de menor “relevância e pertinência” do que, por exemplo, a Fundação Social-Democrata da Madeira. Ou o modo diligente, e possivelmente ilegal, como Barreto Xavier facilitou a rápida saída do país da colecção Miró do BPN, que o Governo pretendia leiloar em Londres.

Não menos controversa, em matéria de exportação de obras de arte, foi a saída da Virgem com o Menino e Santos, do pintor renascentista italiano Carlo Crivelli, uma importante pintura protegida que Francisco José Viegas, em 2012, autorizou o empresário Miguel Pais do Amaral a tirar do país e vender no estrangeiro. Barreto Xavier anunciou depois no Parlamento que estava a reverter a licença de exportação atribuída pelo seu antecessor. Mas a obra continua no estrangeiro, os contactos com o advogado que representa os actuais proprietários terão sido interrompidos há um ano e meio, e tudo indica que o ainda secretário de Estado, que fez do “caso Crivelli” um cavalo de batalha, terminará o mandato sem o resolver ou explicar.

O domínio em que Barreto Xavier mais facilmente pode afirmar ter melhorado a situação que encontrou é talvez a do cinema. Aprovada no consulado de Viegas e revista no do seu sucessor, a nova Lei do Cinema diversificou e ampliou as formas de financiamento do sector, mas o resultado final ficou aquém das promessas, no que foi visto como uma cedência aos protestos das televisões: os operadores de TV por subscrição irão pagar menos do que o anunciado inicialmente.

O gabinete de Barreto Xavier vangloria-se de dispor do montante “mais elevado de sempre” para apoiar o cinema e o audiovisual em 2015 – 17,2 milhões –, mas esse valor está aquém dos 27 milhões inicialmente prometidos. E teve um preço: em 2012 não houve dinheiro para o cinema, num irónico contraste com o impacto internacional que a cinematografia portuguesa atingiu nesse ano, graças a Tabu, de Miguel Gomes, e Rafa, de João Salaviza.

No lado oposto, um exemplo perfeito das consequências da desorçamentação da Cultura é o caso do Teatro Nacional S. Carlos, uma estrutura pesada que, juntamente com a Companhia Nacional de Bailado, absorve cerca de 15 milhões de euros por ano, mas que dispõe de apenas 1,7 milhões para toda a programação da temporada 2014-2015, admitindo que “temporada” é ainda uma expressão com cabimento para o escasso número de récitas que tem sido possível apresentar.

Mas seria injusto não reconhecer que se fizeram várias coisas positivas no consulado de Barreto Xavier, algumas vezes porque processos vindos de trás se concluíram por acaso no seu mandato, como a reabertura do Museu Nacional Machado de Castro, em Coimbra, outras por sua intervenção mais directa. Poder-se-ia lembrar a ampliação do Museu do Chiado ou, no domínio dos arquivos, a complexa passagem do Sistema Integrado do Património Arquitectónico (SIPA) para a Direcção-Geral do Património Cultural ou a integração do Arquivo Histórico Ultramarino na Torre do Tombo.

Já a recente inauguração do novo Museu dos Coches sem um projecto museográfico consistente não passou de um desastrado gesto de propaganda em véspera de eleições.

E não se pode dizer que a trapalhada na designação do director-geral das Artes – da permanência irregular em funções de Margarida Veiga à escolha forçada de Carlos Moura Carvalho –, o venha ajudar a terminar bem o mandato.

Quando veio substituir Viegas, os mais optimistas acharam que Barreto Xavier prometia um conhecimento mais transversal do sector e uma abordagem mais contemporânea. Mas se nos perguntarmos qual foi a figura que, neste último ano e meio, conseguiu devolver alguma carga positiva à expressão política cultural, parece difícil de negar – sem querer confundir as muito diversas responsabilidades de ambos – que Paulo Cunha e Silva, o vereador da Cultura do Porto, é um candidato bastante mais credível do que o secretário de Estado da tutela.

Com Kathleen Gomes e Vanessa Rato

Sugerir correcção
Ler 3 comentários