A freira apaixonada por Angola que os ugandeses dizem que é “muito forte”
Desde 1995 que o Centro Norte-Sul do Conselho da Europa distingue duas pessoas que promovem a solidariedade entre os hemisférios. Este ano, a premiada do Norte é a Maura Lynch, médica-cirurgiã e obstetra que já não sabe viver longe do Sul.
Maura Lynch voltou a Lisboa para receber o prémio Norte-Sul do Conselho da Europa e concluiu que ainda sabe muitas palavras e percebe mais da língua do que imaginava. Viveu cá dois anos, em 1966 e 1967, a estudar Medicina Tropical, antes de partir para Angola ao serviço das Missionárias Médicas de Maria. Felizmente, começou a estudar português “ainda na Irlanda, enquanto fazia o internato, com umas gravações”. Porque nos anos 1960, os médicos que encontrou em Portugal “queriam era aproveitar para aprender inglês”.
Com uma energia contagiante, voz muito baixinha mas umas mãos que não param quietas, a freira tem histórias sem fim para contar e é uma alegria ouvi-las. “Quando cheguei a Angola era uma miúda. Mas passei por um processo em que tive de ganhar maturidade. Era a única hipótese”, diz, com naturalidade, olhos pequenos sempre bem abertos.
O destino de Maura Lynch foi a cidade de Lubango, antiga Sá da Bandeira, no Sul. “O hospital que fui gerir tinha 200 camas e eu era a única médica, com parteiras e três enfermeiras, mais algumas enfermeiras-catequistas angolanas, era assim que lhes chamávamos, a trabalhar comigo. Tínhamos ainda um hospital para lepra e um leprosório. Havia sempre pelo menos 30 leprosos, ensinávamos-lhes higiene e regras de nutrição. Também havia uma unidade para tuberculose, uma maternidade e serviço de pediatria”, enumera.
A irmã Lynch chegou a Angola no tempo da colonização e antes da guerra, mas quando de lá saiu já os portugueses tinham desaparecido e poucos estrangeiros lhe faziam companhia. “Adorei Angola. Estive lá entre 1967 e 1983. Depois fui à Irlanda para uma especialização em cirurgia ortopédica. Regressei e ainda pude ficar mais dois anos, até 1987.”
Em Angola, no Sul, “era tudo muito plano, e claro tínhamos o rio Cunene”. O hospital das Missionárias de Maria ficava junto à estrada que une Luanda à fronteira com a Namíbia, e estava afastado dois quilómetros da via principal. “Eu tinha pedido ao governo para asfaltar a estrada, eles estavam a construir estradas e nós pensámos que era bom para facilitar o acesso dos doentes. No dia em que acabaram fizemos uma festa, era dia de S. Patrick, 17 de Março. Dançámos muitos. Não contei isto a muitas pessoas, já nem me lembrava.”
As memórias surgem ao ritmo da conversa e nem todas são para rir, mas quando são ela ri mesmo.
Um cavalo na fila
Uma manhã, Maura Lynch abriu a porta do hospital e em primeiro lugar numa fila de pessoas para serem vistas, entre “gente com problemas de pressão, pessoas com hérnias enormes, gente a precisar de cirurgias, estava um cavalo…” Primeiro, pensou que “era uma piada, cavalo enorme ali na fila”. Depois, viu que ele tinha uma infecção num olho. “Claro que o tratei.”
Para além de receber e tratar todos os que lhe apareciam no Lubango, as irmãs iam às zonas rurais. “Levámos medicamentos e instrumentos. As catequistas iam à frente, arranjar uma clínica improvisada em cada sítio. Fazíamos vacinação, mas também circuncisões. Os pais pediam. Às meninas queriam que furássemos as orelhas, era a tradição. Não tinham brincos, mas nós começámos a pôr fios de nylon nos buraquinhos para evitar que eles fechassem. E as famílias ficavam contentes”, recorda.
Havia ainda um hospital secundário, do outro lado do rio, só com enfermeiras. As viagens começaram por se fazer de jangada. “O hospital ficava em Vila Roçadas, que era a uma hora de viagem depois de atravessarmos o rio. E eu odiava a viagem, pensava sempre, ‘ai se a jangada se vira e vamos parar ao rio, aquelas águas violentas’.”
A jangada nunca se virou e, a certa altura, os portugueses construíram uma ponte. Outra conquista: “Trabalhávamos com os padres espiritanos e eles arranjaram-nos um rádio, o que foi uma maravilha. Passámos a poder falar com o hospital de Vila Roçadas de manhã, pelas 11h, e depois de novo, às três da tarde. A partir daí, se as irmãs tinham alguma dificuldade podiam comunicar connosco.”
Foi assim que um dia a irmã Maura Lynch ensinou outra a colocar um maxilar deslocado no sítio pelo rádio. “Uma das irmãs explicou-me que tinha uma senhora lá com um maxilar deslocado que não conseguia abrir a boca. E perguntou-me, ‘o que é que faria?’. Há certas manobras e eu expliquei-lhe como puxar e empurrar e voltar a empurrar”, diz. “Às 15h ela ligou de novo e estava tão contente por ter conseguido resolver o problema, estava tão satisfeita e orgulhosa. E eu também fiquei satisfeita, claro.”
Muitos anos e “um processo de aprendizagem e de crescimento incrível”. A jovem médica foi “obrigada a ser especialista em todos os campos” e a ensinar o que aprendia com a prática. “Tive de fazer operações que nunca tinha visto. Andava sempre com o manual atrás. Fiz várias operações com uma irmã a ler-me cada passo. E eu não aprendia só para operar, aprendia o suficiente para ensinar a seguir.”
Cordas e bombas
“A certa altura, a ponte foi dinamitada e eu tive de ir fazer uma operação ao outro lado. Já não tínhamos jangada e agora a ponte estava partida ao meio. Não sei bem como, mas lá atravessámos. Passámos agarradas a uma corda de uma metade para outra e lá chegámos ao outro lado.” Pior foi quando “a guerra a sério começou” e vieram os bombardeamentos da aviação. “Quando ouvíamos um avião nunca sabíamos o que ia acontecer.”
Antes da guerra, todas as semanas “vinha a carreira” que parava perto do hospital, com muita gente para a irmã tratar. Com o conflito, a carreira deixou de passar em dias certos. “Nessa altura já nunca sabíamos quando é que vinha, mas um dia, acho que já não passava pelo hospital há um mês, ouvimos a carreira a aproximar-se e depois um avião… O autocarro foi bombardeado e nós a vermos, ao longe.”
“Meu Deus, foi horrível. Normalmente, quando eles bombardeavam um alvo em movimento costumavam voltar para queimar o que sobrasse. Mas eu e outra freira, a irmã Brigitte, decidimos que tínhamos de ir até ao autocarro. Quando chegámos nem queríamos acreditar. Havia tantos mortos”, conta. “Conseguimos tirar 40 feridos e eu e as três enfermeiras passámos 48 horas a tratá-los. Lembro-me tão bem, tínhamos pessoas nos corredores. Havia mulheres grávidas com os bebés mortos, gente com membros deslocados, intestinos de fora…”
Apitar e acelerar
Da Irlanda começaram a chegar as ordens para abandonar o país, um dia o bispo mandou dizer que queria vê-la, no centro da cidade. “Já não tínhamos condutores e fui eu com outra irmã. As indicações que tínhamos era para sair do carro em qualquer encontro com homens armados, sairmos e agitarmos bandeiras brancas. Já tínhamos passado por checkpoints quando fiz uma curva e vi um blindado com o canhão apontado a nós. As ordens eram parar e sair. O que é que pensa que eu fiz? Buzinei! Preparação para desastre é muito bonito, mas na altura é que se vê. Eles ficaram tão surpreendidos que se desviaram”, diz, a rir. “Noutra altura, aconteceu-me o mesmo com um avião, vi-o a aproximar-se e a baixar e gritei ‘Jesus, Maria e José, um avião’ e acelerei. Em vez de parar, acelerei.”
Fica e ser útil
Maura Lynch podia ter continuado em Angola, em vez de se mudar “para a África das montanhas”. Mas “eles queriam uma professora no Uganda, uma médica que pudesse ensinar e eu não pude recusar”. No Uganda, novos desafios. “Havia um grande problema com a fístula obstétrica e eu não tinha encontrado isso em Angola. São situações de trauma pélvico pós-obstetrício que provocam incontinência crónica. Se não forem tratadas são mais um motivo de grande exclusão para as mulheres”. E assim, a irmã foi ficando.
Desde 1987 que a vida de Maura Lynch é o Hospital de São José, em Kitovu, na cidade de Masaka, a 140 quilómetros de Kampala, a capital. “A reparação cirúrgica que eu faço tem de ser gratuita, se não estas mulheres não podem fazê-la” e a importância do trabalho ali também passa pela “prevenção e educação das crianças e adolescentes”. A irmã também gostava que as ugandesas percebessem como são importantes na sua comunidade. “Elas trabalham tanto e não entendem o valor que têm. Não sou eu que lhes posso ensinar isso, vai chegar um momento em que elas vão perceber sozinhas. Mas eu gostava de assistir.”
Antes de vir a Lisboa, na quarta-feira, passou algumas semanas em Cork, onde nasceu. “Voltaram a perguntar-me quando é que me reformo, mas uma missionária não se reforma... Sempre que vou a casa é o mesmo. No Uganda é ao contrário, dizem-me sempre, “tu vais voltar, és muito forte” [e Maura Lynch ergue os dois braços e cerra os punhos, a imitar os colegas ugandeses]. A minha vida não é na Irlanda, seria incapaz de lá voltar a viver.”
“Aprendi muito, primeiro em Angola, depois do Uganda. Gostava de chegar aos 50 anos em África, pelo menos. O Senhor é que sabe, mas já só faltam dois anos. Graças a Deus, tenho saúde”, explica. “Mesmo se deixar de poder ser útil como cirurgiã e professora, penso que devo ficar. Às vezes a presença é uma contribuição importante. Não é preciso estar sempre a fazer, simplesmente ficar junto dos que são marginalizados e pobres pode fazê-los sentirem-se menos esquecidos.”