Menos de 20% dos doentes mentais têm acesso a cuidados no domicílio

Relatório de programa europeu na área da saúde mental considera que Portugal precisa de criar mais respostas para estes doentes fora dos hospitais.

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As boas práticas internacionais recomendam que os doentes mentais não sejam isolados da comunidade ADRIANO MIRANDA

O também professor da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, em declarações ao PÚBLICO sobre o relatório que coordenou, explica que o trabalho se focou na transição de modelos centrados nos hospitais psiquiátricos para a integração dos doentes em modelos que apostem no trabalho na comunidade, com mais respostas em ambulatório e centros para a área de saúde mental. Como dado mais positivo, Caldas de Almeida destaca o facto de mais de 75% dos doentes mentais serem já seguidos nos chamados hospitais gerais que vieram substituir o anterior modelo baseado em hospitais psiquiátricos. 

No entanto, o especialista considera que faltou dar-se o passo seguinte. “Fizemos um bom trabalho na transferência dos doentes dos hospitais psiquiátricos para os hospitais gerais. Mas não avançámos praticamente nada nos últimos anos em termos de criação de cuidados continuados de saúde mental e temos estado muito mal também na implementação de equipas especializadas na comunidade”, sublinha Caldas de Almeida. Porquê? Para o psiquiatra tem sobretudo faltado “massa crítica” com “capacidade de enfrentar os interesses instalados”, até porque, garante, o mais difícil foi feito: definir os moldes em que estes cuidados deveriam avançar. Dos 21 países com informação disponível, só oito proporcionam cuidados domiciliários a mais de metade dos doentes, pelo que este é um problema comum aos Estados-membros e não apenas nacional.

Os recursos humanos têm sido, segundo o relatório, uma das principais barreiras, a par com a falta de autonomia dos serviços para tomar algumas decisões e com os problemas de financiamento. “As nossas equipas têm um número razoável de médicos e ridículo de não médicos”, aponta Caldas de Almeida, que alerta que muitas vezes uma equipa, por exemplo, de cinco psiquiatras conta apenas com dois enfermeiros e um psicólogo. “O trabalho comunitário precisa de outros técnicos”, insiste. Este desequilíbrio compromete a exequibilidade dos cuidados da comunidade, mas também os resultados – com o médico a afirmar que as residências para doentes mentais inseridas na comunidade e que “imitam” o melhor possível a vida dita normal têm melhores resultados.

Para Caldas de Almeida, há dados “preocupantes” que espelham uma cultura de psiquiatria ainda demasiado centrada nos hospitais e na análise do que é oferecido apenas pelo número de camas disponíveis e pelas consultas externas. O maior exemplo é Portugal liderar o consumo de psicofármacos. De acordo com o inquérito nacional de saúde mental que Caldas de Almeida conduziu junto de uma amostra da população, um quarto dos mulheres portuguesas disseram ter tomado ansiolíticos no último ano e a proporção é mais elevada em alguns grupos desprotegidos. O psiquiatra considera que, em primeiro lugar, falta Portugal recolher mais dados sobre as realidades para lhes dar resposta e reivindica também a necessidade de mais orçamento. “Há dinheiro que se gastava na saúde mental e que se deixou de gastar”, adverte, em referência ao fecho dos hospitais psiquiátricos que não se traduziu em mais serviços na comunidade.

A par do relatório português, a Joint Action deixa no relatório de carácter internacional algumas recomendações para os vários países europeus, onde a tónica da aposta na comunidade é comum. Outro dos dados relevantes salientados por Caldas de Almeida está na importância de uma maior participação e educação dos doentes e famílias, que também foram a chave do sucesso noutros países.

Alguns dos dados salientados pelo estudo agora apresentado corroboram as preocupações espelhadas no relatório Portugal – Saúde Mental em Números 2014, divulgado em Dezembro pela Direcção-Geral da Saúde (DGS). O documento afirmava que as perturbações mentais roubam mais anos de vida saudável do que o cancro e alertava que a falta de equipas comunitárias de saúde mental está a levar a que a prescrição de medicamentos seja “a resposta predominante, mesmo nas situações em que não está particularmente indicada”. Segundo a DGS, as perturbações psiquiátricas atingem mais de um quinto da população portuguesa. Em comparação com outros países ocidentais, Portugal apresenta assim dos mais altos valores de prevalência de perturbações psiquiátricas (22,9%), apenas comparáveis com a Irlanda do Norte (23,1%) e com os Estados Unidos (26,4%).

Também o estudo Trajectórias pelos Cuidados de Saúde Mental em Portugal, promovido pela Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental e publicado em Março, com base em entrevistas a vários intervenientes no sector, já defendia que o encerramento dos hospitais psiquiátricos podia ter sido o momento certo para reintegrar os doentes crónicos na comunidade, mas concluía que a desinstitucionalização falhou e “agravou os problemas de muitos doentes”. O documento lamentava, ainda, que a Rede de Cuidados Continuados Integrados de Saúde Mental não tenha saído do papel e insistia que faltam técnicos para trabalhar as várias vertentes da reabilitação. 

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