A direcção do D. Maria é "um exercício de democracia artística desafiante"
Tiago Rodrigues estreia-se à frente do Teatro Nacional D. Maria II com a reescrita de três tragédias gregas e com a vontade de que a sua acção, para as próximas temporadas, se oiça e veja para lá do edifício.
Durante esses três dias de entrada gratuita em peças de teatro, concertos, exposições, debates, leituras e uma feira do livro do teatro, serão desde logo sugeridas as ideias fundamentais eleitas por Tiago Rodrigues para o seu mandato: o Teatro Nacional como casa de um “grande reportório universal interpelado por linguagens contemporâneas”; a aposta firme na escrita teatral em português; a legitimação da criação para a infância e juventude, passando, nalguns casos, a ocupar a Sala Garrett (principal); a circulação de algumas peças por todo o país; a internacionalização de espectáculos e de artistas integrados na programação (mais visível a partir da temporada 16/17, para a qual estão já a ser preparadas criações que serão apresentadas em Lisboa e seguirão para outras capitais europeias), incluindo ainda uma relação privilegiada de trocas com o Teatro da Bastilha; e uma aposta na formação que passará por “encontros com grandes criadores, formação inter pares, laboratório” para estudantes, ao mesmo tempo que será lançada uma oficina de escrita que ao longo de cada ano terá seis novos dramaturgos a escrever de forma acompanhada uma nova peça de teatro.
Tiago Rodrigues, o autor, não será igualmente engolido pelo director artístico. Logo a abrir a temporada, apresenta a sua reescrita para três tragédias gregas: Ifigénia, Agamémnon e Electra. Entretanto, direcção e administração encontram-se igualmente a negociar com a secretaria de Estado da Cultura um contrato-programa que possa conferir alguma estabilidade à gestão do Teatro Nacional, não ficando refém das flutuações de cada Orçamento do Estado e cujo objectivo passa por devolver o orçamento da casa para valores de 2008, antes dos cortes sucessivos que se seguiram ao estalar da crise.
Quais são os maiores obstáculos e dificuldades com que se deparou na chegada ao Teatro Nacional D. Maria II?
Uma dificuldade que se me deparou nos primeiros momentos, mas que corresponde também a um dos maiores desafios artísticos, políticos, culturais de estar aqui, é como todo este passado se pode tornar presente. Como é que somos uma casa de transmissão, que não só perpetua ideias antigas, mas as usa para investigar as que ainda não descobrimos. Isso está na missão do teatro, essa ideia de pesquisa, de um teatro artístico, de ser uma espécie de bolsa de resistência, como já era em 1846. Para que a criação artística não esteja refém das regras do mercado, dos governos, das tendências políticas, da forma de olhar a criação e assim defenda valores fundamentais que têm de estar presentes na sociedade.
O TNDMII tem há muitos anos a reputação de ser um teatro solene, um teatro do antigo que de alguma forma preserva uma convenção. Essa não é a sua missão, muito pelo contrário. A missão é, fazendo uso do património, que é também o da dramaturgia mundial, tornar esse conhecimento e essa biblioteca vivos. Aceitar o convite de vir para aqui é aceitar tornar acessível um teatro de qualidade ao maior número possível de pessoas no maior número possível de locais – o Teatro Nacional não é só um edifício, é uma ideia que ultrapassa as paredes deste monumento incrível, lindíssimo, no centro do centro da cidade.
E isso faz-se como?
O TNDMII tem de ser uma ideia que está presente também nas cidades onde não há essa criação artística regular, não há essa oferta de teatro de qualidade com regularidade, e nesse sentido um dos grandes desafios é o de fazer transbordar as paredes do edifício. Queremos abrir a novos públicos e também a outras formas artísticas, a outros artistas, a mais zonas do país e, às vezes, sem ser preciso muita latitude e longitude. Queremos abrir à Praça do Rossio ou ao Largo de São Domingos. Vivemos num lugar onde se concentram a História do país e muitas comunidades, uma Lisboa cosmopolita. E também numa zona de grandes desigualdades, onde a loja de roupa de luxo coabita com o sem-abrigo. Estarmos também fora do teatro é uma forma de nos entendermos melhor.
É pela programação fora do teatro que se tentará ir de encontro às comunidades? Não se corre o risco de encontrar um mesmo público (ainda que menos tradicional) e a abertura resultar mais aparente do que efectiva?
Há aí várias questões interessantes. Uma que queria esclarecer é a ideia que existe, uma espécie de preconceito – que também partilhei durante muito tempo – de que o público do TNDMII é eventualmente mais tradicional do que de noutro teatro. O que acontece é que o público é particularmente diverso, inclusive nas idades. Também existe essa sensação de que é um público envelhecido. Não o é necessariamente e os nossos estudos de públicos dizem-nos isso. Somos um dos teatros com maior presença de público adolescente em Lisboa.
Fora das acções específicas para o público escolar?
Sim, na programação geral também. E depois há uma particularidade. Esse público envelhecido, e são uns bons milhares de pessoas que vêm desde a reabertura em 78 a todas as estreias ou à primeira matiné, viu muita coisa durante os últimos 40 anos. Conservador é que esse público não é. Estamos a falar de um público que quando vê um Pirandello ou um Beckett feitos da forma mais absolutamente inovadora ou provocadora em 2015 reconhece o que está ali a acontecer.
Isso é algo que tenho descoberto nas conversas com o público – estou muitas vezes na entrada de público para conversar com as pessoas no final do espectáculo, para também fazer, sobretudo nesta fase inicial, um diagnóstico a uma escala mais humana daquilo que é a relação do público do teatro com o que é representado e é notável perceber como há uma cultura teatral que faz inveja a muito do público quase profissional de uma criação contemporânea.
O gesto de mediação é fundamental no pensar a própria programação a partir de um diálogo com o público. Mas não numa lógica de necessidade absoluta de agradar – a prioridade é dar espaço a uma invenção que corresponde muitas vezes a um pensamento crítico, a um questionamento sobre a própria utilidade da criação e que tem de ser exercida em sociedade, porque sabemos que há um motor civilizacional que nos permite pensar o mundo que nos rodeia com um outro olhar que não seja o olhar das medidas e do que é quantificável.
Esse conceito de abertura do Teatro Nacional em várias frentes, a que terá chegado em parte por alguma análise crítica prévia como espectador e como artista, fez parte das condições a priori para a aceitação do cargo?
As condições de aceitação do convite são as da assunção de que o convite e que a missão do director artístico do TN tal como existe, e como está desenhada na lei, é uma missão artística, de interpretação daquilo que é a missão do próprio teatro e de total autonomia e liberdade artísticas. Muitas ideias começaram logo a surgir; no entanto, ao entrar no teatro, entendemos que era preciso auscultar, fazer um diagnóstico.
Sem deixar de defender ideias muito convictas e muito firmes, e que estão presentes nesta temporada que apresentamos, mas em debate com a realidade do teatro, auscultando a equipa, mas também artistas, público, parceiros institucionais, outros teatros municipais e nacionais, festivais, tentando perceber quais eram as expectativas e qual era esse pensamento crítico. É daí que surge um primeiro esboço para a temporada, mas também um projecto artístico para o triénio. Pensar nesta gigantesca e belíssima caixa de ferramentas e no impacto que pode ter de renovação no teatro português, deu-me muita esperança e muita energia.
A sua aceitação do cargo prende-se com a identificação com a missão inscrita na lei? Aceitaria este cargo independentemente do governo que lho propusesse?
Só aceitaria este cargo convidado por um governo democrático, eleito pelos portugueses. Mas é importante dizer que o convite do secretário de Estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier, foi um convite muito claro, com confiança sobretudo no meu percurso artístico e com uma dose de risco em ser, por exemplo, o director mais novo da história do TNDMII, sem historial de direcção de teatros. Para mim é muito claro que o convite é endereçado por um governo que venho criticando publicamente há vários anos e no qual não me reconheço politicamente, mas que é um governo eleito pelos portugueses e que me endereçou um convite para dirigir, isso sim, um teatro do Estado – que não é um teatro do governo.
Não sente que lhe cria inibições de se expressar politicamente contra qualquer governo que esteja em funções?
Haverá momentos específicos em que terei de fazer um esforço para ser simpático com alguém por quem não nutro simpatia mas face a quem o TNDM deve demonstrar cortesia. Mas isso faz parte de liderar uma instituição. Por outro lado há um dever maior de intervir quando é absolutamente necessário porque se tem uma voz que é uma voz colectiva, que pode ser representativa. Espero saber, com coragem e honestidade, distinguir uns momentos dos outros e saber quando é melhor para o TNDMII, para os portugueses, para os artistas e para o público ser cortês e ter ‘sentido de Estado’ e quando é que a dignidade passa por não ficar calado.
Ao extinguir a estrutura que tinha há 11 anos, o Mundo Perfeito, faz uma aposta na sua continuidade aqui? Está a pensar nos três anos do mandato ou a mais médio/longo prazo?
A extinção do Mundo Perfeito não tem que ver com as minhas considerações sobre a renovação de um mandato em 2018. Aceitei o convite para dirigir o TNDM durante um triénio e é o que vou fazer. Entendo, por um lado, que um dos problemas deste teatro, e acho que de muitas instituições portuguesas, é a constante rotatividade das lideranças, o que faz com que projectos de mudança não tenham tempo suficiente para maturar, para dar frutos, para serem efectivamente transformadores, mas esta observação não corresponde a uma candidatura para mais três anos. Fecho o Mundo Perfeito porque me parece a decisão mais clara e transparente, e também a mais radical, aquela que investe mais nesta mudança que é também para mim, na minha vida pessoal, na forma como me entendo, no meu trabalho artístico e na minha relação com os outros. Se daqui a três anos sair do TNDMII, não saio para voltar atrás ao Mundo Perfeito. E o convite para director do TNDMII implica também que o director artístico continue a ser artista.
A abertura de temporada com o programa Entrada Livre funciona como declaração de intenções do que pretende implementar no Nacional, incluindo espectáculos de envolvimento com a comunidade, as suas peças que recuperam o património teatral das tragédias gregas com uma linguagem contemporânea e essa certeza de que o director artístico não apagará o autor?
O Entrada Livre é uma festa de três dias que tem os ingredientes todos daquilo que vai ser a temporada. Tem a abertura para a envolvente, o ciclo Recém-Nascidos – uma aposta que faremos todas as temporadas de apresentação de novíssimos criadores (este ano serão Raquel André, Silly Season, Os Possessos e Terceira Pessoa), a leitura do Ricardo III, encenada pelo Tónan Quito, a meio do processo da peça, que marca também um pouco a ideia de que para nós tornar os textos acessíveis, é um dos trabalhos que queremos fazer (vamos ter leituras na Praça do Rossio), a feira do livro que está muito ligada a um esforço de divulgação da nova dramaturgia (vamos editar muitos dos textos inéditos portugueses que estrearemos), uma exposição das partituras do nosso arquivo ou concertos que também são um gesto de contacto com o exterior, debates ao longo destes três dias para afirmar esse lugar de pensamento. E as três estreias que vou apresentar, três tragédias reescritas, Ifigénia, Agamémnon e Electra, um projecto completamente louco na irresponsabilidade mas que corresponde à urgência que quero que o meu próprio trabalho artístico possa emprestar à criação artística no TNDMII.
Na programação encontramos Ana Borralho e João Galante a encenar um texto de Jacinto Lucas Pires, Sandra Faleiro a dirigir um outro de Ricardo Neves-Neves, Miguel Castro Caldas a trabalhar com os actores Pedro Gil e Raquel Castro. É o TNDMII a juntar autores e encenadores e/ou intérpretes?
Na maior parte dos casos são propostas dos artistas. Essa ideia de colaboração e de constelações que estão a mudar é algo que já está muito presente no teatro português e que tem dado frutos muito interessantes. No entanto, em algumas produções do TNDMII, caso do Canto da Europa, que parte de uma ideia do Jacinto Lucas Pires em diálogo com a maestrina Joana Carneiro (que vai dirigir a Orquestra Sinfónica Portuguesa), o encontro é sobretudo fruto de um diálogo com um ou mais criadores, de um projecto que sei que está a nascer e que vou acompanhando. Não faço de casamenteiro, não junto gente por encomenda, mas promovo encontros. Importa também dizer que o TNDMII já não está orgulhosamente só a fazer as suas grandes peças - convida artistas a dirigir no TNDMII, uma prática comum, mas também constrói essas peças em colaboração.
Como por exemplo?
As minhas primeiras peças são co-produzidas pelo Teatro Viriato. Canto da Europa é uma co-produção com o São Carlos, há um investimento partilhado para criar um espectáculo que não podia ser criado se duas instituições desta dimensão não se juntassem. A Origem das Espécies (de Carla Maciel) corresponde ao desejo de o TNDMII criar com toda a legitimidade para a infância e para a juventude, fazendo uma peça de sala grande produzida em colaboração com o Museu de Ciência e História Natural. Vamos também fazer uma co-produção com a Companhia Nacional de Bailado, um Romeu e Julieta que partilha o cânone da dança clássica e o cânone do teatro, através do Prokofiev e do Shakespeare, e que será dirigido pelo Rui Horta. Nesta lógica de colaboração montamos com o São Luiz o Glorioso Verão, um festival em que apresentamos reescritas, encenações, adaptações e obras originais inspiradas em Shakespeare. Noutros casos, os espectáculos surgem de estarmos preocupados em trabalhar com a envolvente e de conversas com artistas como a Joana Craveiro, do Teatro do Vestido, que tem feito esse trabalho de grande preocupação de relação com a comunidade.
A grande questão num teatro como o TNDMII é como inventar uma identidade de um projecto artístico, como ser uma casa que tem uma voz própria, mas que é uma voz que está sempre a ser ocupada pela voz de outros. É um exercício de democracia artística que acho profundamente desafiante e que me deixa muito feliz, porque corresponde a essa ideia que tento perseguir que é de estar no trabalho artístico com os mesmos valores com que quero estar em qualquer momento da minha vida.