Foi isto que Atenas sempre quis? A pergunta passou a ser legítima
O Governo grego sabe o que vai acontecer. Ajudou a que acontecesse. Mas nada disto iliba a Europa de culpas pesadas.
1. Chegou finalmente a hora da verdade. O problema é que essa verdade é difícil de aceitar, porque toda a gente acreditava, pelo menos no seu íntimo, que haveria um acordo de última hora. A hipótese contrária era demasiado má para os gregos, mas também para a Europa, para ser considerada friamente. Neste sábado, esta questão de “fé” ficou resolvida. As negociações foram interrompidas por decisão grega. Quando anunciou à uma da manhã (hora de Atenas) que iria sujeitar a proposta europeia a um referendo, Alexis Tsipras tomou uma decisão sem recuo. Já nem sequer foi uma “bomba atómica” destinada a forçar definitivamente a mão dos seus parceiros europeus, explicável à luz da célebre teoria dos jogos, da qual o ministro Varoufakis é alegadamente um perito. Essa lógica de apostar até ao fim que a Europa acabaria por ceder deixou de existir. Também não terá sido por desespero que o primeiro-ministro grego anunciou o referendo. A ideia de que estava entre a espada de Bruxelas e a parede da ala mais radical do Syriza (uma ideia generosa para explicar o seu comportamento) também não parece caber nesta análise. Tsipras disse que respeitaria o “sim” à proposta dos negociadores, se fosse essa a vontade da maioria dos gregos. Como não parece ter vocação para mártir, o seu governo ainda acredita que pode conseguir um “não”. Vai ter de dramatizar terrivelmente. Vai ter de convencer os gregos de que os credores os quiseram humilhar. Vai ter de apresentar a sua decisão como um combate de David contra Golias, da pequena Grécia mãe da democracia contra a falta de respeito dos líderes europeus pela escolha do povo grego. Se perder o referendo, Tsipras não tem outra alternativa senão demitir-se. Seja como for, os jogos já estão feitos. A última jogada de Atenas conseguiu mesmo o feito extraordinário de retirar a Angela Merkel a margem de manobra que foi acumulando para poder decidir em favor da manutenção da Grécia na zona euro. No imediato, facilitou-lhe a vida, afastando aquela que era a sua maior preocupação: que a Alemanha fosse responsabilizada pela saída da Grécia. Tsipras não comunicou à chanceler e ao Presidente francês, com quem esteve reunido na madrugada de quinta-feira à margem do Conselho Europeu, a sua intenção de virar o jogo. Nesse encontro, Merkel deixou-lhe claro que aquela era a melhor oferta possível. Neste sábado, o presidente do Eurogrupo, Jeroen Dijsselbloem, não podia ter sido mais claro quanto à manobra grega que, inicialmente, ninguém percebeu. O ministro das Finanças de Atenas estava a negociar com os credores a última oferta de acordo, quando recebeu um telefonema para abandonar os trabalhos. Algumas horas depois, Tsipras anunciava na televisão a convocação do referendo.
2. O que é paradoxal (ou talvez não), é Atenas continuar, entretanto, a falar como se tudo fosse ainda possível. Permanecer no euro, evitar uma corrida aos bancos ou outra coisa qualquer. Porquê? Porventura, para poder atribuir às instituições europeias, na segunda-feira, a responsabilidade por aquilo que acontecer nos bancos, incluindo a decisão de os manter fechados. A peça que falta neste puzzle apenas estará disponível neste domingo, com a reunião do BCE em Frankfurt. O sistema bancário grego tem estado a viver da injecção diária de liquidez do BCE no Banco da Grécia (o chamado programa ELA, Emergency Liquidity Assistence), que no final da semana atingiu os 88,6 mil milhões de euros. Esta assistência pode continuar numa situação em que o programa de ajustamento acaba no dia 30 e nem sequer há negociações entre as duas partes? Aparentemente não. Foi o próprio Mario Draghi a avisar que o ELA seria mantido desde que houvesse a perspectiva de um acordo. Já não há. Muito provavelmente, o BCE vai decidir suspender essa ajuda, o que deve ser suficiente para que os bancos possam encerrar já na segunda-feira ou que seja imposto o controlo de capitais. Sem o apoio do BCE, a Grécia pode ver-se mergulhada numa semana caótica e o Governo terá mais alguns argumentos para demonizar as instituições europeias. Parece demasiado cínico para ser verdade, mas é difícil de encontrar outra explicação. Entretanto, com o fim do programa, acabam as verbas ainda disponíveis para ajudar a Grécia: os 7200 milhões da última tranche do segundo programa e os 10 mil milhões reservados ao apoio aos bancos. É praticamente inevitável que a Grécia falhe o pagamento ao FMI.
O Governo grego sabe o que vai acontecer. Ajudou a que acontecesse. Conhece as consequências da sua decisão. Os gregos podem vir a sofrer ainda mais. É isto que é perturbador. A partir daqui todas as interpretações se tornam possíveis.
Nada disto iliba a Europa de culpas pesadas. Berlim teve uma enorme responsabilidade na criação das condições que levam os gregos à revolta, votando maioritariamente no Syriza. Os programas de ajustamento estavam mal feitos. A “austeridade redentora” não funcionou. Hoje toda a gente o admite, embora não peça desculpa. A economia grega sofreu uma hecatombe apenas própria de tempos de guerra, ao contrair mais de 25% em quatro anos.
3. Falta apenas uma coisa. Neste sábado, Yanis Varoufakis disse que, finalmente, a democracia, tão esquecida nestes últimos tempos, voltava a funcionar. A tentação de muita gente é dar-lhe razão: foram os gregos que democraticamente escolheram o seu Governo e a sua escolha tem de ser respeitada. Esse é também um argumento que a direita mais conservadora e soberanista gosta de utilizar.
As coisas não são assim. Qualquer país da União Europeia sabe que o projecto europeu implicou e continua a implicar a partilha de alguns poderes nacionais ao nível europeu. É essa a sua essência e é isso que o distingue de qualquer outra organização internacional. E é assim desde o início: o Tratado de Roma diz que a lei europeia se sobrepõe à lei nacional. Os países que quiseram aderir ao euro, fizeram-no de sua livre vontade. Para os bons e para os maus dias. A Grécia, como qualquer outro país europeu, exerce a sua democracia neste quadro de partilha de soberania que aceitou quando aderiu à Comunidade Europeia, assinou o Tratado de Maastricht e entrou na zona euro. Podemos dizer que a Europa vive uma tremenda crise existencial que alterou as regras do jogo, mas que não alterou os tratados. Encher a boca de democracia fica sempre bem, engana os incautos, serve os soberanistas mas não resolve qualquer problema nem dá a ninguém qualquer “superioridade moral”. Se a Grécia quiser mesmo sair, ninguém a impedirá de conseguir esse objectivo. O que é triste para o projecto europeu é termos chegado a este ponto, que não diz apenas respeito à Grécia ou ao euro. Todos os dias, pelas mais diversas razões, temos a prova de que a fragmentação e, com ela, o fim do projecto europeu, não é ainda um cenário que possamos descartar facilmente. A questão grega e o seu provável desfecho abrem um precedente perigoso. Mas há muitas mais razões de preocupação. É esta a triste verdade.