Por que razão Ana diz que pobreza não se mede só com números?

Projecto tem como objectivo acompanhar um grupo de pessoas em “situação de vulnerabilidade” entre 2011 e 2020. Resultados intercalares são publicados em livro nesta segunda-feira. O que diz quem participa?

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No grupo, há reformados com pensões mínimas, desempregados, todos em "situação de vulnerabilidade" Enric Vives-Rubio

Neste grupo, há ex-sem-abrigo, famílias com trabalho mas salário curto, reformados com pensões mínimas, doentes crónicos, desempregados, todos, tecnicamente, em “situação de vulnerabilidade”. A equipa do Barómetro do Observatório da Luta Contra a Pobreza na Cidade de Lisboa, responsável pelo dito estudo, convidou-os para este almoço porque o livro com a análise das entrevistas que lhes foram feitas em 2014 vai ser lançado nesta segunda-feira, em Lisboa. Os investigadores acharam que Ana, mas também Luís, Isabel, António, Helena e outros que foram entrevistados deviam ser os primeiros a folheá-lo.

“Márcia? Como Márcia? Eu sou a Isabel Maria!” — é a reacção de Isabel, desempregada, 58 anos, quando folheia a publicação de capa cinzenta. Faz rir todos ao redor da mesa comprida. Os investigadores usaram na obra nomes fictícios para proteger a identidade dos entrevistados. Mas Márcia diz que nada tem a esconder. “O meu nome é Isabel”, insiste. E ri-se muito quando dá com uma citação sua nas páginas impressas. Perguntavam-lhe na altura sobre os cursos de formação que tinha feito já como desempregada. E ela respondia: “Já tirei uns três. Mas foi dar em nada, e só para dizer que tenho aquilo no currículo. Fiz recursos humanos, eventos e Excel. Foi através do centro de emprego. E fiz pela DECO o ‘Vamos deitar contas à vida’, para uma pessoa aprender a orientar-se. Este veio através da assistente social.” Isabel Maria — perdão, Márcia no livro — continua desempregada.

Em Novembro, o PÚBLICO divulgou os primeiros resultados deste trabalho do Dinâmia — Centro de Estudos sobre a Mudança Socioeconómica e o Território/Instituto Universitário de Lisboa, feito em parceria com o Observatório de Luta Contra a Pobreza na Cidade de Lisboa, e que agora será editado, na sua versão final, com o título Evolução na Continuidade, pela EAPN Portugal /Rede Europeia Anti-Pobreza.

Das 57 pessoas que em 2011, por diferentes razões, viviam uma situação de vulnerabilidade social e que tinham sido, pela primeira vez, entrevistadas pelos investigadores deste projecto, apenas duas tinham saído da situação de pobreza na segunda leva de conversas, em 2014. Tinham arranjado um trabalho que permitia à família ter um rendimento de mais de mil euros.

Na generalidade dos casos, contudo, sublinhava-se, a situação  de vulnerabilidade dos entrevistados piorara.

Para Sérgio Aires, que dirige o Observatório em Lisboa, “não se podendo extrapolar os dados obtidos para o resto do país”, o que se passa “em muitas cidades portuguesas, como Setúbal, Porto, Braga ou Faro” não será diferente do que se encontra em Lisboa. Acrescenta Jardim Moreira, presidente da EAPN Portugal, no prefácio: este estudo “reflecte o desenvolvimento do país nos últimos três anos onde, como se verificou, a austeridade tem como impacto: o aumento das dificuldades das pessoas em situação de pobreza e o aumento do número de pobres; as insuficientes dos factores de inserção no mercado de trabalho; as incapacidades das políticas sociais.”

Luís de 73 anos, diz que a crise se traduziu na vida dele num corte de 35 euros por mês na pensão: “Para quem recebia 430 euros, 35 euros faz muita diferença, mas isso os políticos não sabem. Quando me falaram de participar neste estudo achei muito interessante. Mas vai ficar no papel. Sou um bocadinho cínico, sabe? Os políticos usam a pobreza como estandarte mas não sabem nada dela. Vão pegar neste livro e pôr numa prateleira.”

Luís não é o único a queixar-se de cortes: segundo o estudo, 26 dos entrevistados relataram ter visto apoios como o Rendimento Social de Inserção ou o Complemento Solidário para Idosos reduzir-se ou acabar entre 2011 e 2014. Na mesa, almoço terminado, cafés a chegar, quase todos acham o mesmo que ele: “Se alguém se desse ao trabalho de ler o que nós dizemos [no livro] ia ser útil... mas não sei”, diz António, 56 anos, operador de grua.

Ninguém, contudo, esconde um certo orgulho por poder contribuir para um livro destes, “uma coisa séria”, como alguém diz ao almoço. Haverá mais entrevistas até 2020, quando se prevê que o projecto chegue ao fim.

Para já, Ana conta que deixou de se sentir pobre como dantes. Como assim, pergunta-lhe o conviva do lado, com um ar céptico, quase crítico? Pois se ela ainda recorre ao banco alimentar... Pois se o dinheiro não lhe chega... Ana sorri. É que, lá está, a pobreza não é só uma questão de números: “Eu considerava-me uma pessoa pobre monetariamente e de espírito.” Entre 2011 e 2014 os problemas de saúde de que sofria agravaram-se, não tinha emprego, vivia muitos conflitos em casa, os filhos já trabalhavam mas não ajudavam nada e continuavam lá, ela era vítima de violência do marido. “Mas agora separei-me do meu marido. Trabalho como assistente de hospital, ainda na semana passada tive de pedir dinheiro para uma bilha de gás... mas vivo sozinha, tenho trabalho, tenho tecto.” Diz que já não se sente “pobre de espírito” e que isso é meio caminho andado para o resto.

O projecto em resumo
— Em 2011, 74 pessoas foram escolhidas para integrar o Barómetro do Observatório da Luta Contra a Pobreza na Cidade de Lisboa. O grupo incluia diferentes “perfis de vulnerabilidade”. Foram todos entrevistados por uma equipa coordenada pela socióloga Sónia Costa.

— Em 2014, nova ronda de entrevistas. Foral localizadas 57 dos entrevistados iniciais (algumas tinham morrido, outras emigrado outras não foi possível localizar). Muitos (17) eram “trabalhadores pobres” e 10 estavam incapacitados para o trabalho por motivos de doença.

— Objectivo: voltar aos mesmo painel de três em três anos. Nova ronda de entrevistas está prevista para 2017 e depois em 2020. Sempre com as mesmas pessoas.

— Recomendações: o livro que hoje será apresentado em Lisboa, com a participação do pelo economista Carlos Farinha Rodrigues, deixa várias. Dois exemplos: há que “aprofundar mecanismos de acompanhamento personalizado, nomeadamente no âmbito de medidas de política pública relacionadas com a inserção profisisonal” e “assegurar o acesso à habitação dos mais vulneráveis, através, entre outros, do alargamento da oferta de habitação municipal”.

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