Outra vez a Magna Carta, de novo o problema da igualdade

Celebrar a Magna Carta não é cambiar-lhe o sentido, é compreendê-la no seu ambiente.

Existe em Portugal uma escola anglófila, que, acreditando numa espécie de superioridade moral da cultura político anglo-saxónica, acaba, do meu ponto de vista, por não ser capaz de ultrapassar essa pré-compreensão e “mitificar” instituições e momentos históricos da vida britânica. A discussão – diga-se – tem sido estimulante e tem-me levado, nuns casos, a reforçar interpretações e convicções antigas e, noutros, reconheço, a rever uma ou outra asserção que tinha por mais ou menos garantida.

2. João Carlos Espada, assinalando numa feliz coincidência, o dia 15 de Junho, em que se perfazem precisamente 800 anos sobre a outorga da carta por João Sem Terra, volta ao tema. E volta para tentar contornar aquele que é realmente o problema incontornável: é que a história constitucional britânica, porque radicada numa matriz medieval, desconsidera de sobremaneira os ditames do princípio da igualdade – que era, desde Aristóteles, a matéria-prima da justiça. A Magna Carta não é mais do que um pacto medieval, um documento do seu tempo, que limita o poder real e o abuso para que este, em inícios do século XIII, parecia tender. Limitação que faz no quadro das assimetrias da comunidade política medieva, com uma ordem natural de desigualdades, que garante prerrogativas, isenções, imunidades e privilégios a certas categorias de pessoas (ligadas normalmente à nobreza e à Igreja). O documento é importante, seja pela garantia solene que dá a sua redução a escrito, seja porque vai perdurar no tempo, sendo invocável e invocado muito mais tarde, já em contextos político-constitucionais bem diversos daquele que esteve na sua origem. A grande virtude da Magna Carta é o intuito tipicamente medieval de limitação e de repartição do poder político. O seu pecado, visto fora dessa luz coeva e projectado no tempo, é o da cristalização do tratamento diferenciado e desigual.

3. Afirmar que a Magna Carta e o seu espírito serviram para combater a tentativa de introdução do absolutismo em Inglaterra, fosse pela mão de Tiago I, fosse pela mão do seu filho Carlos I, parece basicamente justo. Dizer que ela terá contribuído para derrubar o absolutismo puritano dos republicanos de Cromwell também parece plausível, embora de mais difícil prova. Alvitrar que essa mesma pulsão e ânimo terão estado na preparação da Glorious Revolution, na deposição de Tiago II e na entronização de Maria Stuart e Guilherme de Orange em 1688 parece razoavelmente certo. Aceitar que a luta do século XVII inglês – que é a meu ver um dos períodos históricos mais relevantes para compreender a fenomenologia actual de erosão do Estado vestefaliano e de “medievalização” do poder – é uma luta pela limitação do poder real é francamente pacífico. E que, nessa luta, apesar das actualizações muito relevantes da Petition of Rights (1628) e da Bill of Rights (1689), foi ainda e sempre o espírito da Magna Carta, porventura aprofundado e alargado, que esteve presente não merece crítica nem reparo.

4. Onde o caso muda de figura é na tentativa, assaz forçada – sublinhe-se –, de querer ver na Magna Carta, e numa suposta leitura evolutiva e actualizada, o suporte para uma afirmação constitucional do cânon da igualdade nas ilhas britânicas. Mais uma vez, como escrevi aqui em recensão ao livro Conservadorismo, de João Pereira Coutinho, a revolução inglesa não é, em rigor, uma revolução: é uma reacção. Quando, no século XVII britânico, se enfrentam os defensores do absolutismo real e os defensores da velha ordem (que são putativos herdeiros da Magna Carta), os primeiros é que são progressistas e os segundos é que são conservadores. A revolução inglesa, olhando estritamente para os padrões do seu tempo0, é um movimento reaccionário, de repristinação da velha constituição medieval, com a sua ordem de poderes não unidos no quadro de um Estado ou de um Soberano e com a sua hierarquia natural de diferenças e assimetrias. Que o regime saído da revolução seja muito mais liberal e livre do que os absolutismos que lhe são contemporâneos não é de espantar, pois, ao contrário da ideia feita, também a ordem constitucional da Idade Média era uma ordem de liberdades (concretas), ainda por cima susceptíveis de trato jurisdicional. O rei medieval não estava acima do direito. O rei absoluto é que fica acima das leis (prínceps a legibus soluto).

5. O regime saído de 1688 assegurava muito mais liberdade do que a França de Luís XIV. Mas estava longe de ser uma democracia ou até de estabelecer uma separação dos poderes, como a vamos conhecer na experiência americana ou na experiência francesa. No pós-revolução inglesa, não existe Estado; existem, isso sim, à velha maneira tardo medieval, instituições públicas, completamente apartadas, com uma pretensão constitucional de poder global: a Coroa, o Parlamento e o que, com grandes variações de nome e consistência, virá a chamar-se Governo. Se a revolução tivesse seguido o modelo da sua obra de justificação – o inigualável II Tratado do Governo de John Locke (1689) –, aí sim, poderíamos falar em igualdade, em democracia, em separação dos poderes no sentido moderno. São várias as menções (pelo menos 3) em que Locke chega mesmo a dizer que o Rei não é senão um cidadão. Mas o que vingou na experiência britânica foi uma desenvolução aggiornata do modelo medievo e, portanto, da sua desigualdade estrutural, bem reflectida, de resto, na fórmula King in Parliament e na divisão do Parlamento em Câmara dos Comuns e Câmara dos Lordes, esta com posição ascendente.

Celebrar a Magna Carta não é cambiar-lhe o sentido, é compreendê-la no seu ambiente.

 

 

 

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