Em busca do pai tuga
No tempo da guerra colonial havia quem lhes chamasse "portugueses suaves", agora, há entre os ex-combatentes quem prefira "filhos do vento". Mas os filhos de militares portugueses com mulheres guineenses não conhecem esse nome poético. Na Guiné foram apelidados de "restos de tuga".
"Pai, está lá! Oh pai, fiquei muito contente de termos oportunidade de falar hoje. Estou vivo e a minha mãe também. Olha, pai, não se sinta mal, é percurso de vida, não há ressentimento. Olha, pai, não tenha receio, fica tranquilo, eu sou homem, estou a trabalhar. Muito obrigada por o ter conhecido, pai. Que Deus o abençoe com a vida que tem aí."
Fernando Mota, 40 anos, não sabe há quantos anos anda às voltas com este diálogo na cabeça, às vezes muda-lhe pequenos detalhes, junta-lhe palavras, tira-lhe outras, esta é a versão mais recente. O diálogo é, na verdade, um monólogo imaginário, nunca passou disso, porque na sua cabeça é como se ele pudesse dizê-lo assim, tal e qual o pensou, sem interrupções, com o tom doce que está a usar agora. Fernando é professor de História e Geografia no Liceu Jorge Ampa, em Bissau.
Fernando Mota sonha muito ouvir a voz do pai ao telefone, mas nunca imaginou quais seriam mesmo as palavras que diria se conseguisse descobrir o seu número de telefone lá longe, em Portugal, e ele respondesse do outro lado da linha, como aconteceu com alguns filhos de ex-militares. Prefere agarrar-se a este monólogo perfeito, como se estivesse resignado com a possibilidade de nunca vir a realizar-se além da sua imaginação, pacificado com a ideia de nunca vir a ouvir a voz desse soldado português que esteve na Guiné há 42 anos e que é seu pai.
Se Fernando Hedgar da Silva conhecesse Fernando Mota, talvez oachassedemasiado sentimental. Ele imaginou-se mesmo cara a cara com o pai, só que, na cena em causa, o pai estendia-lhe a mão para lhe dar um passou-bem e Fernando espetava-lhe um murro. Houve uma altura em que só sentia raiva pelo pai português, mais ainda quando teve quase a certeza de que não o ia conseguir descobrir. Houve um tempo em que pensava que o pai se chamava furriel. Foi um ex-militar que lhe explicou que "furriel não é nome de pessoa, é posto. "Não tens nome, não tens nada, não te posso ajudar". Tenho menos de um por cento de hipóteses de o encontrar". No tempo em que só tinha rancor contra o furriel sem nome, pensou criar uma associação com uma designação que resumia esse sentimento, Associação de Filhos Abandonados pelos Colonialistas Portugueses. Fernando, de 45 anos, camionista, braço tatuado com o seu diminutivo, Dinho, serenou. Hoje, escolheria outro nome para uma associação que continua a sonhar criar com um objectivo: "Quero mostrar aos portugueses que nós existimos, que fomos abandonados, que somos muitos" e, quem sabe, diz a medo, talvez "encontrar o meu pai" e deixar de se sentir "meia-pessoa".
Num dos mais populares blogues de ex-combatentes da guerra colonial, chamado Luís Graça & Camaradas da Guiné, alguém lembra que, na altura, lhes chamavam "portugueses suaves", a esses meninos que nasciam junto a quartéis portugueses, sem pai conhecido, mais claros do que os outros e em que se sabia, por norma, quem era o militar que tinha estado com a mãe, sem que isso fosse dito em voz alta e mesmo que o próprio nunca o admitisse.
Em 11 anos de guerra, que na Guiné começou em 1963, até à independência, em 1974, passaram por um país com o tamanho aproximado do Alentejo cerca de 200 mil homens portugueses. À data, a população da Guiné rondava o meio milhão de habitantes, resume Luís Graça, o criador e editor do blogue.
No blogue, José Saúde, um ex-furriel na Guiné, decidiu começar a chamá-los de "filhos do vento", porque parecia que não eram "filhos de ninguém", crianças com mãe guineense, que ficou, e sem pai conhecido, que, terminada a comissão, regressava a Portugal. "O assunto é melindroso" entre os ex-combatentes, "tabu". Mas mesmo assim, um dia ele lançou o desafio no blogue, era preciso falar do tema, que depois tomou a forma de uma pergunta - "Camaradas: quantas crianças mestiças, cuja paternidade era imputada a militares, "tugas" [como eram conhecidos os portugueses], vocês conheceram, nos anos e nos sítios por onde andaram na Guiné? Vamos arranjar material para meia dúzia de posts." Foi uma trintena de posts, num blogue que é seguido por cerca de 500 pessoas.
Foram poucos os que responderam directamente à pergunta: "Quantos de nós, na solidão da mata, na angústia e incerteza de como e se no dia seguinte estaríamos vivos, não cometeram actos que deram origem a estes casos", escreveu um ex-militar; um outro limitou-se a citar o Poema da Malta das Naus, de António Gedeão: "Tremi no escuro da selva alambique de suores/ Estendi na areia e na relva/mulheres de todas as cores." Houve também quem ironizasse "pais de multidões mestiças? Ena pá, o que para aí vai!" No mesmo sentido, houve quem respondesse tão-somente que "são mais as vozes do que as nozes". Os que responderam, mesmo, à pergunta lembram ter conhecido na sua comissão um, dois "filhos do vento", no máximo, alguns juntaram aos posts fotos destes meninos clarinhos que destoavam dos outros e que lhes ficaram para sempre na memória.
Dauda era louro e de olhos azuis. O capitão José Neto tirou-lhe uma fotografia a brincar numa poça ao lado de outros meninos da aldeia - parece um anúncio da Benetton, mas a preto e branco, com a claridade de Dauda a contrastar com o escuro dos que brincavam com ele. Dauda era filho de um capitão português da companhia que José Neto tinha ido render. Todos os homens sabiam, só o próprio fingia ignorá-lo, contou no blogue o capitão José Neto, que morreu de cancro em 2007, dizendo ter desenvolvido raiva ao pai omisso. E, por isso, passou a chamar a criança abandonada pelo apelido que devia ser o seu, caso o pai o tivesse perfilhado. Ordenou que todos passassem a chamá-lo Vieira (apelido fictício).
Afeiçoou-se ao menino claro, mais ainda quando um dia lhe salvou a vida. Tinha havido um bombardeamento e ele foi tirá-lo da casa minutos antes de explodir uma granada. Só depois de o marido morrer é que a mulher, Júlia Neto, soube porque é que não se podia tocar naquele estilhaço que estava guardado no móvel do escritório da casa como se fosse um tesouro. Era um bocado da granada que podia ter matado o Vieira se o capitão Neto não o tivesse salvado.
O capitão José Neto nunca mais voltou à Guiné mas, em casa, mulher e filhas sempre ouviram falar daquele "filho adoptivo". As suas filhas sempre souberam que tinham "um irmão" na Guiné, conta Júlia Neto.
Quando um dia, cerca de 40 anos depois da guerra, o capitão Neto voltou a estabelecer contactos com a Guiné - através de uma organização não-governamental gerida por um guineense de origem portuguesa que quis reconstruir um antigo quartel português, a Acção para o Desenvolvimento -, fez um pedido ao seu presidente, Carlos Silva: "Por favor, descobre-me o Vieira." Foi o que fez, mas Vieira tinha morrido um mês antes, com menos de 40 anos, e o capitão Neto morreu sem nunca reencontrar o menino claro.
Depois de o marido morrer, Júlia Neto foi à Guiné e fez questão de ir conhecer a mulher de Vieira e as três filhas. Sentiu que, se não tinha podido conhecer o "menino", tinha pelo menos de conhecer a sua família. O pai de Vieira ainda é vivo, reformou-se há pouco tempo, conta.
Ao tentar reconstituir a história do rapaz, Carlos Silva soube que, na altura, o pai de Dauda foi encostado à parede. Quando a mulher descobriu que ele tinha tido um filho de uma guineense, deu-lhe a escolher, ou ele (o Dauda) ou ela (a mulher). "Ele, claro, optou pela mulher e largou a criança." E as três meninas, Paula, Fátima e Fatu da Fonseca, nunca souberam nada desse seu avô português, só conhecem Júlia, a mulher de um capitão que volta não volta lhes manda presentes. Dauda, ou Vieira, morreu filho do vento.
Não foi esse o nome por que foram conhecidos toda uma vida na Guiné. Filhos do vento até soaria bem, parece poético. Sem se conhecerem uns aos outros, todos eles foram tratados por "restos de tuga".
Parecem autênticas histórias de Gata Borralheira. Na história de Óscar Albuquerque, há uma casa, com irmãos, uma mãe e um pai que sabe que um dos filhos, o menos negro, não é seu. O suposto pai, que na verdade é padrasto, sabe que aquele é um filho da sua mulher com outro homem, um branco e, por isso, Óscar acaba por ser o mais mal tratado da casa.
Na Guiné, há uma escala de claros-escuros que pode passar despercebida a quem está de fora, mas que é perceptível a um guineense. O que chamam "um guineense-guineense" é mais escuro, em todos os que são claros, mais ou menos, se percebe que houve mistura com brancos. No seu caso e noutros semelhantes, por terem nascido naquele período, durante a guerra ou logo a seguir, em zonas de quartéis de portugueses, não havia forma de esconder que eram "filhos de tuga", como também eram conhecidos. Mesmo que o quisessem, não haveria como: "Não há maneira de esconder a pele, a claridade não engana", diz José Carlos Martins, de 48 anos.
Era essa a primeira pista. Desde crianças que olhavam para a sua cor e se confrontavam com a sua origem. Hoje já são adultos, andam na casa dos 40, 50 anos, mas quando contam as suas histórias é como se voltassem a ser meninos e choram, choram muito, como faziam quando em casa sentiam que eram diferentes.
Em casa de Fátima Cruz, o ser diferente vinha à baila de cada vez que a mãe pedia às filhas para fazerem tarefas: buscar água, lenha - "então, e a branca, não vai?", acabava por dizer uma das irmãs. Foi maltratada pelo padrasto e pela mãe, que sente que a culpava. Ela era o fardo levado para uma nova união com um guineense, que em Fátima tinha um lembrete demasiado evidente para si, e para os outros, de que a sua mãe tinha estado com um branco, no seu caso, que até tinha vivido com ele dois anos.
"Se falar com a minha mãe, ela vai dizer que nunca me tratou de forma diferente." É verdade. Sanu Mané tinha 15 anos quando começou a ser lavadeira do pai de Fátima - hoje é vendedora e presidente de uma associação comunitária contra a violência de género - e diz que nunca tratou a filha pior do que as irmãs, apesar de ter sofrido tanto com aquela gravidez, apesar de ter passado muito por causa daquela "filha branca". Na sua família, mal se soube que ela estava grávida do alferes português, tentaram que abortasse. Em casa, davam-lhe todos os dias um remédio feito de raízes dentro de uma panela. Ela fingia engoli-lo, mas conseguia deitá-lo fora às escondidas. A gravidez começou a ser visível e estava ela de poucos meses quando o tio materno começou a chicoteá-la na barriga, para que "o bebé do branco" não nascesse.
Fátima Cruz ouviu estas histórias todas, estas e a de que ainda foi o pai quem lhe escolheu o nome, que era o da mãe dele, Fátima. E que ele queria ficar com a mãe, mas a família não quis que a filha ficasse com um branco, e que depois de voltar a Portugal até lhe mandava encomendas com leite, roupa, jóias, mas que o tio materno as recebia e tratava de queimar tudo, contaria bastante mais tarde o homem dos correios que fazia as entregas.
Fátima Cruz tem 36 anos, está bem na vida, tem três filhos, vende roupa, e ainda hoje pensa que só aquele homem dos correios a poderia reunir ao seu pai. Ao menos se o homem dos correios não tivesse morrido, talvez ainda fosse possível recuperar a morada, saber-lhe o paradeiro, encontrá-lo. Se o homem dos correios não tivesse morrido...
Nas histórias destes filhos, há quase sempre pessoas que desapareceram, externas à família, e que só elas teriam podido ajudá-los. Porque à pessoa que mais sabia não se podia perguntar.
"Não se faz uma pergunta dessas a uma mãe. É um segredo das mães", e Óscar Albuquerque nem agora, com 40 anos, chega a formulá-la, assim, com todas as letras. Mas seria algo como: "Mãe, afinal quem é o meu pai?" O mais longe que ousou foi contornar a questão, delicadamente: "Mãe, pode um homem ter dois pais?" Não teve resposta.
Teve de ser uma vizinha que, uma vez, o chamou da rua, estava ele a jogar à bola, teria uns 11 anos. "Anda cá, anda cá." Dentro da casa da senhora, resguardados dos olhares, ouviu o que sempre tinha desconfiado, mas era demasiado pequeno para perceber: "Aquele senhor não é teu pai, tu és filho de um tropa português. Aqui na aldeia toda a gente conhecia o teu pai."
Como muitos filhos de portugueses, quando a mãe engravidou, a família tratou de a casar à pressa com alguém escolhido por si. Mas quando a criança nasceu, percebia-se que não era igual aos outros. Quando já era adulto, a mãe contou-lhe um dia - "só para me magoar", recorda agora - que mal o pai do seu padrasto viu o bebé Óscar, disse ao filho: "Este não é teu filho, é filho de um branco."
Ana Sanconha, vendedora, de 40 anos, lembra-se bem do sítio onde a mãe lhe contou. Iam as duas a percorrer a estrada de terra batida vermelha marginada por cajueiros que liga Iemberém a Cacine, no Sul da Guiné, a mesma que agora percorreu a pé durante cinco horas para nos vir contar a sua história. "Foi aqui, foi aqui mesmo", sentaram-se as duas e aí ela perguntou-lhe: "Mamã, diz-me lá quem era o meu pai. Chorou, chorou e depois contou. Chamava-se António da Silva." Tinha 25 anos quando soube.
A mãe de Califa Tcham só contou porque sabia que não tardava iria morrer. Foi quando ela estava já muito doente que soube, ou melhor, que confirmou que o pai era português, porque as más-línguas da aldeia sempre a tinham chamado "filha do capitão". Com a mãe, não ficou a saber mais, "morreu, não terminou de explicar". Foi assim que aos 29 anos, morta a mãe com o seu segredo, se pôs a fazer perguntas aos ex-militares guineenses que lutaram com o pai. O mais que conseguiu foi juntar o apelido ao posto, Califa Tcham era afinal filha de um "capitão Trindade".
Perguntar às mães sobre as suas origens significa voltar a um passado traumático que se quer esquecido, a envolvimentos clandestinos que envergonham. Às vezes fora do casamento, quando os maridos estavam ausentesa lutar no mato, outras vezes a relações de quando ainda eram meninas.
Maria Geralda Cassamá, 66 anos, hoje professora primária em Quinhamel, perto de Bissau, só conta como tudo aconteceu porque o filho, Erasmo da Fonseca, engenheiro mecânico, lhe pediu muito. "Não há vergonha, tens de contar tudo. Não há lágrimas, a culpa não é tua."
Como é que se conta a um filho que se perdeu a virgindade com aquela primeira relação? Que o furriel português, que conheceu em casa de familiares seus, foi atrás dela até Bissau, onde estudava, e um dia a convidou a ir conhecer por dentro o edifício da Cruz Vermelha? E afinal a levou para um quarto, fechou a porta à chave e insistiu muito, muito e ela acabou por aceitar? Tinha 18 anos. "Eu era virgem, fiquei como um cadáver na cama, ele foi tomar banho e foi-se embora." Só voltaram a ver-se mais uma vez, quando ela lhe disse. "Aquela brincadeirazinha pôs-te grávida?", "O que eu sei é que estou grávida", "Tens de abortar, eu não quero deixar um filho na Guiné, vejo como estão os filhos de tropas."
"Tinha medo, ouvi dizer que se morria no aborto." O pai dela ficou furioso quando soube, mas não se foi queixar ao quartel do militar português que lhe tinha engravidado a filha. "Havia medo de falar, era o tempo colonial." E Erasmo nasceu.
Se as mães não tivessem mantido segredo tanto tempo sobre a identidade dos pais, se depois da independência da Guiné ser filho de português não se tivesse tornado um perigo e as mães não tivessem tido de queimar todos os documentos e fotos que os associavam àqueles pais e a Portugal, se algumas mães não tivessem morrido prematuramente, se ao menos elas soubessem ler e escrever e tivessem apontado o nome e morada dos pais... Se...
As identidades dos pais estão, muitas vezes, soterradas debaixo destas camadas de impossibilidades encadeadas umas nas outras e que resultam de um país onde a esperança média de vida se fica pelos 49 anos e leva cedo as memórias dos mais velhos que não chegam a sê-lo (só 5% da população tem mais de 60 anos), a que se soma a turbulência da própria história da Guiné.
Depois da independência, em 1974, a vida tornou-se difícil para todos os que estivessem de alguma forma associados aos ocupantes. Desde logo para os milhares de guineenses que tinham lutado com os portugueses e foram deixados para trás. Sabe-se que muitos ex-militares guineenses foram fuzilados por terem ajudado "o inimigo". Foi duro para as mulheres que tinham tido relações com portugueses, "as mulheres de tuga", mais ainda para as que tinham filhos como prova. E, no fim da linha, foi difícil para os filhos que tinham nascido de portugueses.
No período pós-independência, foram destruídos todos os documentos, fotos, registos relacionados com os pais e que, passada a tempestade, os podiam ajudar a encontrá-los.
No caso de Fátima Cruz, consta que o pai até a tinha registado como filha, mas a mãe teve de destruir esse e outros papéis, temia pela sua vida. Foram-se embora as fotos dos rostos de homens jovens fardados que andavam lá por casa. Rasgados, queimados, havia que esconder quaisquer ligações "aos colonialistas".
Carlos Alberto Silva ainda se lembra de ter seis anos e passar que tempos a olhar para a única foto de um jovem militar que havia em casa, a procurar semelhanças, a pensar "é igual a mim". Depois da independência, "a minha mãe rasgou-a e pôs na fossa". Em adulto, teve a sorte de reencontrar uma cópia dessa foto em casa de um conhecido, copiou-a, ampliou-a e tem-na num álbum de família, como se o pai desconhecido fizesse parte dela.
Na família dos irmãos José Maria e Elva Maria Indequi, além de se destruírem fotos do pai, a mãe tratou de os mandar para longe, com medo que os fuzilassem. Ele e a irmã cresceram apartados da mãe. "Nós fomos escondidos, a minha mãe ficou só com o filho negro."
Todos eles relembram o período da independência como o mais complicado das suas vidas. Óscar ainda fica com os olhos tremeluzentes de lágrimas, quando repete os versos em crioulo que era obrigado a entoar na escola: um hino do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) que falava da heróica expulsão dos portugueses - "Grilla na terra, tugazinho na nuven" ("guerrilha na terra, tugazinho nas nuvens", ou seja, lá longe). "Eu chorava, era o único na turma que chorava" - porque estavam a falar do pai que ele não conhecia, mas que ainda assim era o seu pai. Nataniel Silva Évora ouvia o mesmo hino à saída de casa, cantado pelos colegas, às vezes acompanhado de pedradas - "quando rapo o cabelo notam-se as cicatrizes" - ou de sacos de cascas de amendoim que eram atirados para cima dele. A mãe biológica não teve condições financeiras para ficar com ele e a mãe adoptiva que o criou era paciente, limpava-lhe o sangue das pedradas, punha desinfectante e dizia-lhe: "Não digas nada, corre." Na altura, ouviram todos variações da frase: "Já corremos com os vossos pais, o que é que vocês ficaram cá a fazer? Vão para a vossa terra."
Mesmo sem retratos, todos eles imaginaram e continuam a imaginar como serão os pais fisicamente, mas o que têm como matéria-prima para imaginação é muitas vezes só os seus próprios rostos, os seus cabelos, os seus corpos.
"Deve ter a minha altura, olhos castanhos, o cabelo preto, como o meu", diz Fátima Cruz. "Os ex-colegas [guineenses] do meu pai disseram-me que sou a cara chapada." "Sabes o que é uma máquina fotocopiadora, Óscar? Tu és tal e qual o teu pai", disse-lhe um ex-colega do pai. E e ele ficou feliz quando ouviu isso. A Fátima Mané, a mãe dizia: "Ele era bonito", e aponta para a sua cara: "Como eu." Fernando Hedgar da Silva lembra-se de se olhar ao espelho e tentar não chorar.
Além de traços físicos, procuram em si características da personalidade dos pais desconhecidos. Coleccionam pequenos detalhes aos quais dão um significado exagerado, "eu sou desportista, ele era desportista", diz José Carlos Martins, com um dos bíceps tatuado com o escorpião que era símbolo da companhia do pai. Quando há algo que consideram uma qualidade, estabelecem ligações: Nataniel é paciente, "deve ser por causa do meu pai".
Isidro Teixeira, jornalista da televisão nacional, descobriu um dia porque é que, assim sem mais, sentiu vontade de entrar numa escola de música e se saiu bem com as oito canções que compôs. Uma delas foi um sucesso do Carnaval de há 15 anos. Ele sempre ouviu dizer que o pai era "cabo corneteiro", mas depois, há uns anos, chegou-lhe às mãos uma foto do pai no tempo da guerra a tocar guitarra portuguesa. "Quando vi essa foto... O talento nasce da pessoa. Então gosto da música por causa do meu pai, ele sopro e cordas, eu canto."
Mas 40 a 50 anos depois da guerra, muitos destes filhos chegam à idade adulta com quase nada ou muito pouco para somar à imaginação.Para a maioria, a busca começa já demasiado tarde. Em adultos, ganham autonomia e saem da casa, e nessa altura já rareiam as pistas para encontrar a outra metade das suas histórias.
Esta busca pelo pai "tuga" depende do que têm como ponto de partida, mas também dos recursos de que cada um dispõe. Os que têm mais estudos são normalmente quem chega mais longe. Ter algum dinheiro e tempo também é importante. E os homens desenvencilham-se mais do que as mulheres.
Maria Djasse, a mais velha de três irmãs, cada uma filha do seu pai português, chegou aos 45 anos com duas palavras, "cabo" e "rancho". Um ex-militar guineense explicou-lhe que "rancho" era como se dizia "comida" entre os militares e pensa que talvez o pai fosse um cabo que trabalhava na cozinha do quartel. Soma a essa informação a subtracção que todos fazem à sua idade para encontrar o tempo em que os pais lá estiveram. Maria tem 45 anos, acha ela porque nunca foi registada e não tem bilhete de identidade (de uma população de 1,6 milhões, só 150 mil o tem), o que significa que terá nascido em 1968. Subtrai-se os nove meses da sua gestação e mais os dois anos da comissão e, além de saber que talvez o pai tenha sido um cabo que trabalhava na cozinha, terá estado na Guiné por volta de 1966-67. É tudo.
Mariama Camará sabe mais, mas apenas que o apelido do pai era Amaral. Viajou duas horas com o filho de um ano e meio ensanduichado entre ela e o marido na motorizada para nos transmitir isso, que o pai dela chama-se Amaral e que gostava de o conhecer, talvez a possamos ajudar. Alguns não estão certos da grafia. Zita Morato não sabe se o apelido do pai é Parque ou Parco, são essas as duas versões de apelidos que tem escritas num papel, e são também as poucas palavras que diz em português e não em crioulo. Os irmãos Indequi têm três versões de nomes, "é uma história muito confusa, escura, nem mesmo com um holofote se consegue iluminar", diz José Maria: o pai dos dois ou se chama Roberto Silva ou Cabo Vicente, ou José Carlos dos Santos.
Quem como José Maria e Elva tem mais dúvidas do que certezas pede que lhes divulguemos a única certeza que têm, os nome das mães; que se os pais forem vivos hão de ler-lhes o nome no jornal, lembrar-se que um dia estiveram com elas. A mãe de Fernando Hedgar Silva é Sabadozinha Mendes, a de Nataniel é Elizabete Pereira Évora, a das três irmãs é Fatuma Sale Djasse, a das gémeas Higina e Teresa é Domingas da Silva.
Mas talvez nem se lembrem já como se chamavam aquelas mulheres africanas com nomes estranhos. Por isso, estes filhos ajudam juntando os nomes pelos quais os pais conheciam as mães: a de Zita Morato era Naná, o pai de Óscar tratava a mãe por Esparguete porque era magrinha.
Como querem fazer os pais recuar ao seu passado na Guiné, têm a preocupação de lembrar sempre os nomes que as povoações guineenses tinham no tempo dos portugueses. Higina Silva, que assume o papel de porta-voz da irmã gémea que não fala português, Teresa, estava aflita. Tinha medo que escrevêssemos que o pai estava colocado no quartel de Bula, é que se o pai ler talvez não saiba que, quando ele lá estava, Bula chamava-se Nuno Tristão, o navegador português que descobriu a Guiné.
Têm esperança de que com todos estes dados os pais lhes leiam a história e saibam, ou se lembrem, que têm filhos na Guiné.
Há quem tenha conseguido ir um pouco mais longe na busca. São os que desdobram com desvelo papelinhos que trazem muito bem arrumados na carteira com os dados que conseguiram amealhar, como se fosse preciso estarem registados, como se não soubessem de cor os nomes e os números ali manuscritos. São dados que resultaram de muita persistência, colhidos clandestinamente junto de ex-militares guineenses que foram amigos de portugueses, à socapa para não amofinar a família, que vê a busca como uma traição à família guineense, ao padrasto que, bem ou mal, os criou. Estes são os filhos que conseguiram saber o número do batalhão a que pertencia o pai (cada um tinha 600 homens), o número da companhia (cada uma tinha cerca de 150). Há até quem tenha conseguido o número mecanográfico, com que era identificado individualmente cada militar.
Mas os dados que eles repetem estão como assentes num vazio, num contexto que desapareceu. O que adianta a Florinda Barros saber que o pai, há 44 anos, pertencia à companhia nº 799? Ou a Fernando Mota que a companhia do pai se chamava Lenços Verdes? E a Fátima Mané que era o Dragão Negro? De que adianta a Zita Morato saber que há 40 anos o pai tinha a alcunha de Chinês, porque gostava muito de macacos e andava sempre com um ao ombro? Ou que o seu melhor amigo era o Zezinho? E depois? O que fazer com estes dados?
Os mais despachados e os que vivem ou têm dinheiro para se deslocar a Bissau já foram à embaixada de Portugal. A Fátima Cruz disseram para tirar uma senha. "De nada serve, eles não nos ajudam." A Fernando Mota disseram "não tratamos de tais assuntos". Desistiram quase todos. Da embaixada respondem que, no último ano, o Gabinete do Adido de Defesa registou três casos de pessoas que fizeram perguntas. "Na maioria das vezes, ficam pelos pedidos de informação, pois já não dispõem de documentação ou outro tipo de comprovativo (como por exemplo fotografias) para basear a abertura de um processo. Apenas memória, vaga, de conversas em família."
Outros foram bater à porta da Cruz Vermelha, também em Bissau. Valério Candete, responsável pelo restabelecimento de laços familiares, diz que, desde 2010, recebeu 13 pedidos de informações sobre pais portugueses do tempo da guerra, mas, mais uma vez, o ponto de partida é incerto.
Aos que insistiram, disseram-lhes para escrever para um sítio em Lisboa chamado Arquivo Geral do Exército. Mas e a morada? Conseguir a morada é outro obstáculo que só os mais desenvoltos conseguem superar, como Óscar Albuquerque, que entretanto se converteu ao catolicismo e recorreu à ajuda de freiras amigas. Na volta do correio, recebeu: "Informa-se que com os dados fornecidos não é possível localizar o processo do ex-furriel miliciano e este Arquivo não pode fornecer informações respeitantes a terceiros sem autorização superior. Se assim o desejar, deverá requerer ao Exmo. Senhor Chefe do Estado-Maior do Exército." Foi o que fez. "Sua Excelência, desde 1990, escrevi cinco cartas, até então não recebi nenhuma resposta." "Sua excelência" nunca respondeu.
Até que, esgotada a via da embaixada e da Cruz Vermelha, surgiu nos idos de 1990 uma boa nova trazida por imigrantes guineenses que viviam em Portugal e voltavam de férias. Chamava-se Ponto de Encontro, na televisão portuguesa SIC. Contavam-lhes que, num programa, tinham unido um pai e um filho. Parecia um sonho. Nataniel Silva Évora ainda se encheu de esperança mas não conseguiu a morada da SIC. Estalou entretanto a guerra civil de 1998 e ele esteve refugiado no Senegal. Óscar conseguiu que um amigo seu "que percebe de computadores" fosse à Internet - quando diz "ir à Internet" é como se falasse de um sítio inacessível e algo misterioso, muito poucos têm email - e obtivesse a morada. Escreveu para lá, apelou ao sentimento, "tenho medo que a morte leve um de nós, antes do primeiro encontro entre pai e filho que nunca se abraçaram". Nunca teve resposta. "É uma coisa boa esse Ponto de Encontro", diz Isidro Teixeira, ficando triste quando lhe dizemos que já não existe, desde 2002.
Mas nesta busca de uma vida há quem tenha chegado mais longe. Isidro Teixeira é dos que teve recursos para procurar. Descobriu o paradeiro do pai próximo de uma cidade que dizem que "é pequena e linda", Viseu, e até iniciou, em 1994, uma Acção de Reconhecimento de Paternidade no Tribunal Judicial de Bissau. Mas, quatro anos depois, foi informado que o pai tinha morrido e acabou por desistir: "Achei que já não fazia sentido."
Isidro é contido mas, quando fala do pai, é como se estivesse dividido entre a emoção e a razão. "O meu sonho era falar com ele, foi pouco homem, um homem tem de assumir as suas responsabilidades." Para depois usar o jargão jurídico que é o do seu meio profissional - além de jornalista, Isidro é auxiliar na Conservatória de Registo Civil de Bissau -, "não se pode julgar alguém sem ser ouvido, ele tentou levar-me para Portugal". Houve casos como o de Isidro, em que os pais até os tentaram levar para Portugal mas as famílias escondiam os bebés com medo que nunca mais voltassem a África.
Para alguns filhos que querem encontrar os seus pais portugueses, admite que a motivação possa ser material. Querem ajuda, a vida está difícil na Guiné. Mas o que ele quer é o mesmo que a maioria, não ter um espaço em branco no bilhete de identidade a seguir aos dois pontos de pai, "é uma vergonha carregar o apelido da mãe". E, depois, "ter a nacionalidade portuguesa. Não quero mais nada. Tenho sangue português". Se fosse português, não tinha passado o que passou.
Isidro esteve um dia em Portugal. Ou melhor, esteve um dia no aeroporto de Lisboa, porque o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras não o deixou sair. "Tinham medo que eu ficasse, eu expliquei: "Eu sou jornalista, apresentador de televisão, auxiliar de conservador, acha que eu quero cá ficar a varrer o chão?" Não me quiseram ouvir." Ele só queria ir a Viseu, visitar o sítio de onde veio o pai, talvez conhecer alguns familiares que por lá vivessem.
José Carlos Martins descobriu o pai vivo. Tem escrito num papel a sua morada em Vila Real de Santo António (Algarve), para onde enviou uma carta, sem resposta. Com a ajuda de um amigo influente, conseguiu estar com ele num chat. Chegou a ver-lhe a foto do perfil no Facebook, um rosto velho que desapareceu mal ele lhe disse "daqui fala Zé Carlos, sou o teu filho da Guiné". Guarda uma imagem com pouca definição desse encontro, é a ampliação em tamanho A4 da foto tipo passe que por minutos esteve no ecrã de um computador.
Óscar Albuquerque também escreveu ao pai, sete cartas, para uma morada na freguesia dos Anjos, em Lisboa. Na primeira, de 2005, começava com "meu queridinho pai" e acabava pedindo-lhe "uma fotografia sua para poder imaginá-lo. Em caso de querer contactar, faça-o pelo telefone", e deixava-lhe o seu número de telemóvel. O pai nunca escreveu nem ligou. Um dia encheu-se de coragem, admite que precisou para tal de engolir meio litro de vinho tinto Malaquias ao mesmo tempo que pensava "tenho de ligar a este senhor". "Boa noite, sou da Guiné-Bissau, está a falar com seu filho, Óscar." "Não leve a mal, não sei de nada, amigo." Algum tempo mais tarde, tentou segunda vez: "Sou Óscar de novo", "Não sei de nada do que me está a dizer", "Então me desculpe". "Parei de ligar." Já lá vão dez anos. Bem sabe que as palavras que ouviu foram curtas e grossas, mas marcaram-no, "nunca pensei ouvir a voz do meu pai, uma voz rouca. Fiquei emocionado".
Erasmo Fonseca também escreveu, para um 1.º esquerdo de São João do Estoril. Junto com a missiva mandou fotografias. Podia ser que o pai se enternecesse, "junto a esta carta vai as fotografias de mim e dos seu netinhos", Jennifer, Vítor, Ivanilda, Jaquelina. "Por hoje é tudo, um abraço forte do teu filho que sempre deseja conhecer-lhe."
Erasmo pacientou, pacientou, até que um dia ligou-lhe, disse-lhe primeiro que era um colega da tropa, para não o assustar, depois falou-lhe da mãe, "ele soube perfeitamente de quem é que eu estava a falar". A conversa azedou quando lhe disse que quem estava a ligar-lhe era "o filho que deixou na barriga". O pai respondeu que só com um teste de ADN acreditava nele. "Eu ia lá fazer o teste, se eu o fizesse, ele ia ficar envergonhado", diz, para depois terminar com um sorriso triste, "mas quem vai-me levar a Portugal?" Só os filhos que têm mais estudos ouviram falar do tal ADN, mas a possibilidade de fazer um destes testes surge quase como uma cena de ficção científica - não existem na Guiné, onde ainda se morre de "doença" e de "febre" (é essa resposta que muitos dão quando se pergunta o motivo da morte de alguém).
Carlos Alberto Silva esteve próximo do pai. Emigrado em Portugal 12 anos - foi encarregado de obras -, andava nas ruas de Lisboa a reparar nos rostos dos homens com a idade que o pai teria hoje, tentando reconhecê-lo apenas com aquela fotografia que sobreviveu dele em jovem. Até que um dia, no sítio que é como se fosse a Guiné em Portugal - o Rossio, em Lisboa, é todos os domingos local de reunião da comunidade -, teve uma esperança. Um ex-colega dele da guerra disse-lhe que o ia apresentar ao pai, "passa cá no domingo, às cinco". "Nunca apareceu", imagina que mudou de ideias.
Quando ouve falar de filhos que só querem conhecer os pais para ter a nacionalidade portuguesa, fica triste. "A nacionalidade já eu tenho, vivi 12 anos em Portugal, eu só queria conhecê-lo."
Nenedjo Djaló parece que viveu o sonho. Numa das mesas da sua sala de estar tem uma enorme fotografia emoldurada a amarelo fluorescente, a mais berrante de todas. Está ali como prova de que ela tem pai, que ele não a abandonou - como ouviu toda uma vida -, que ele a reconheceu. Estão de braço dado em frente ao restaurante Cavalo Lusitano, onde almoçaram os dois quando ela foi passar férias com ele a Portugal. Um álbum verde cheio de fotografias fora do lugar atesta a felicidade desses 45 dias.
Nenedjo foi encontrada por acaso por ex-combatentes portugueses em visita de nostalgia à Guiné que, deu-se a coincidência, conheciam o pai. A primeira vez que Nenedjo e o pai falaram ao telefone choraram e ele deu-lhe a escolher: "Queres vir cá ou vou eu aí?" Ela não teve dúvidas, aquela era a oportunidade de se vingar das humilhações, "preciso que você venha cá, as pessoas que me discriminaram, quero que elas o vejam".
Sabia que o pai só ia ficar uma semana na Guiné, por isso Nenedjo preparou-lhe um livrinho com argolas a condensar os 33 anos de vida que passaram um sem o outro. "Falámos muito. Só nos separávamos para dormir, ficávamos a falar no hotel até às 4h00. E não era mais tempo porque tinha uma bebé pequena e estava a amamentar." O pai encontrou-se com a mãe de Nenedjo, triste por só ter sabido da existência da filha "já grande": "Porque é que não me disseste que estavas grávida?"
Já lá vão seis anos desde essa cena da chegada do pai que pôs toda a gente no aeroporto de Bissau a chorar. Parece longínquo. Desde o reencontro que pede ao pai que a reconheça oficialmente como filha. Nenedjo queria que o nome do pai estivesse nos seus documentos, queria ter o apelido dele, queria ter a nacionalidade portuguesa, "eu sou luso-guineense". Ressalva que não quer ir para Portugal, que tem marido e filhos na Guiné, mas que assim podia ir lá quando quisesse, de férias. Ele sempre lhe disse que ia ver, que era delicado. Ela dá-lhe um toque, ele liga-lhe de volta, falam quase todas as semanas pelo telefone. O pai não tornou à Guiné, Nenedjo nunca mais voltou a Portugal.
O pai de Nenedjo, que prefere não ser identificado, diz que o grande problema foi contar à mulher, que no início ficou em estado de choque mas depois acabou por a acolher bem. Bem sabe que Nenedjo quer ser reconhecida, além do tratamento por filha e da ajuda que lhe manda todos os meses. Mas "é complicado". Por enquanto, "ela tem de ter paciência". E diz que "podem levantar-se problemas legais". Todos os pais que se resguardam é isso que temem, nota, "não querem ter problemas em casa. Entrar uma pessoa estranha na família não é simples".
O ex-combatente de 71 anos diz que foi "uma notícia chocante" a de saber que deixou uma filha na Guiné. "São situações que surgem onde há homens sem mulheres. Eu não sou nenhum santo e cometi as minhas asneiras", são filhos que nascem de "relações ocasionais". "Aconteceu em todo o lado, em Moçambique, em Angola". Ele também combateu em Moçambique, "de lá não me apareceu ninguém". A mãe de Nenedjo era a sua lavadeira.
Cada militar tinha uma, a mulher que ia todas as semanas ao quartel para lhes buscar a roupa suja e a devolver lavada. "Todos os que cá passaram sabem que as lavadeiras faziam mais do que lavar a roupa", refere Carlos Silva, presidente da ONG Acção para o Desenvolvimento, em Bissau, que se empenhou na reconstrução do quartel português de Guiledje. Quando não eram as próprias, serviam de elo de ligação para serem apresentadas a outras mulheres na comunidade.
Luís Graça, criador de um dos mais populares blogues de ex-combatentes da guerra colonial, diz que é importante lembrar o contexto em que se vivia, que estes homens - hoje na casa dos 60, 70 anos - tinham 20 e poucos anos e para muitos a tropa tinha sido a forma de saírem pela primeira vez das suas aldeias. Eram rapazes com fraca escolaridade, "muitos solteiros e que nunca tinham estado com uma mulher". Vinham de um país conservador, com moral católica, que tinha feito com que, em 1963, Salazar tivesse acabado com as casas de passe, recorda. Prostituição organizada quase só em Bissau, no interior não havia. Eram homens que nunca tinham visto mulheres, assim, de peito à mostra, como era hábito na Guiné de então entre as raparigas não casadas. "Algumas fotos desse tempo são indicadoras disso, era exótico, há algum erotismo." "Era tempo de guerra, o medo da morte, a necessidade de estar com uma mulher..."
Ponha-se de parte a tentação de imaginar títulos românticos como "amor em tempos de guerra". "Por barreiras culturais, religiosas e linguísticas, era difícil falar-se de amor, havia simpatias, atracção física", diz Luís Graça. Histórias de amor como a da guineense Romana Lopes e do ex-militar português Manuel dos Santos, que tiveram quatro filhos e vivem até hoje em Quinhamel, perto de Bissau, são a excepção. As de coabitação às vezes durante todo o período da comissão são algumas, às vezes até envolvendo "casamentos tradicionais". Mas o que prevalecia "eram relações fortuitas e ocasionais", nota Luís Graça. O que estava em causa era "muitas vezes favores sexuais em troca de géneros alimentares, açúcar, sabão, óleo, azeite", completa Carlos Silva, "eram situações de extrema pobreza".
Juntava-se a isso um tempo em que até já existiam preservativos mas "eram um luxo e não se usavam" - o máximo que os serviços de saúde militares distribuíam aos homens eram "pomadas antivenéreas", recorda Luís Graça, que é também professor universitário na Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa.
Fica por responder a pergunta de quantos "filhos do vento" deixaram na Guiné estes cerca de 200 mil homens que por lá passaram. Não há números, o que se segue são somas de impressões: Isidro Teixeira diz que muitos não assumem, "tentam esconder o verdadeiro eu", mas na Conservatória de Registo Civil de Bissau ele recebe os pedidos de nacionalidade com base na paternidade portuguesa, diz que entre Portugal e a Guiné existirão uns 500. Fernando Hedgar da Silva ri-se da estimativa. É camionista, percorre o país, cada vez que chega a um sítio dizem-lhe "tugazinho, tens cá "irmãos"" e ele manda-os chamar, anota-lhes a história: "Isso que a senhora está a fazer já eu faço há muito tempo. Somos milhares." A primeira vez que o engenheiro Cherno Baldé viu brancos, em 1965, eram soldados portugueses, tinha ele cinco anos. Na sua aldeia de menos de mil habitantes, chegaram a estar colocados 200 militares portugueses; a guerra terminada, havia em Fajonquito (no Norte), "pelo menos dez filhos, isto só os que nasceram e cresceram connosco". E não tem dúvida: "Se passasse cá um mês, era uma multidão que lhe aparecia."
A história de guerras em que os combatentes que vão lutar fora do seu país deixam filhos não é uma realidade nova. No século XX, há, por exemplo, casos de alemães que, na Segunda Guerra Mundial, deixaram filhos de francesas que depois foram ostracizadas. Nos Estados Unidos, os filhos dos soldados americanos com mulheres vietnamitas até têm nome, chamam-lhes amerasians (fusão das palavras americanos com asiáticos). De tal forma o assunto se tornou público, que estes "filhos do pó", como eram conhecidos no Vietname - cresceram muitos deles em orfanatos ou tornaram-se sem-abrigo - ganharam direito ao estatuto de imigrante americano de forma automática. Em 1987, o Amerasian Homecoming Act deu-lhes esse direito, sem necessidade de haver provas de paternidade, bastava terem a mínima presença de traços físicos ocidentais. Ao abrigo da lei, emigraram para os Estados Unidos 26 mil filhos e mais 75 mil dos seus familiares. Um estudo publicado no Journal of Multicultural Counseling and Development sobre este universo concluiu que 76% desejavam conhecer os seus pais, mas só 33% sabiam os seus nomes. Outros 22% tinham tentado estabelecer contacto, mas só 3% tinham tido a oportunidade de conhecer os seus pais biológicos.
Quando tinha dez anos, Inês Miriam Henrique, cabelo ligeiramente encarapinhado, cara branca polvilhada de sardas, conta que teve um sonho: o pai português chegou, "vamos, vamos, vou-te levar". Tinha um jipe, era elegante, cabelo castanho claro, rapado, era alto, branco. "Vamos, vamos embora". Eu levantei-me para ir e já acordei". Inês Miriam tem 37 anos, oito filhos, continua a ter desses sonhos, ainda ontem o pai lhe disse a dormir: "Minha filha queria tanto conhecer-te."
Há filhos de portugueses que já ouviram falar de pais que andam à procura deles. "Há cobardes mas já ouvi falar de homens que vieram à procura dos filhos, homens de coração. Não conheci, mas ouvi falar", diz Erasmo Fonseca, que, tal como muitos destes filhos, usa o apelido do pai sem nunca lho ter sido dado. Quem, como Erasmo, ainda não ouviu o pai a dizer-lhe do outro lado "faça um teste de ADN", continua a sonhar ser encontrado. Talvez, algures, em Portugal, haja alguém à procura deles, como eles continuam em busca dos pais.
Carlos Alberto Silva conhece "três pais que vieram cá à procura dos filhos para os reconhecer, um era dos Açores, outro de Penafiel, outro de Borba". Diz que "os filhos reconhecidos estão em Portugal, os pais deram-lhes a nacionalidade, condições e amizade. Esses vêm cá e voltam". Os que continuam na Guiné são os que foram deixados para trás.
João, professor secundário em Portugal, prefere não falar, mas a mãe, Luísa, conta a história. Ela tinha 17 anos e era virgem, o militar português tinha 20 e poucos. Ele foi-se embora quando ela ainda não sabia que estava grávida, mas escreveu a contar-lhe. "Ele não pôs em dúvida, mandou-me uma procuração e reconheceu-o como filho." Luísa acabou por sair da Guiné depois da independência quando conheceu o guineense com quem se veio a casar, mas as cartas do pai do filho era para lá que continuavam a seguir. Desencontraram-se.
Quando Luísa voltou a casar, quis o destino que fosse parar a Portugal, onde viveu toda uma vida a uns 50 quilómetros do homem que procurou durante 41 anos. Tinha feito de tudo para o encontrar, até que, há três anos, uma amiga lhe sugeriu que tentasse o mais simples, ir às Finanças, onde conseguiu a morada. Escreveu-lhe e ele ligou-lhe assim que recebeu a carta: "Estou pronto para conhecer o meu filho."
Na casa daquele pai toda a família tinha ouvido falar do filho que ele tinha deixado na Guiné, percebiam como ficava transtornado quando na televisão passavam imagens de guerra naquele país, a pensar que tinha morrido. Tanto aquele filho perdido o assombrava que escolheu dar o seu nome ao outro filho que lhe nasceu em Portugal, João. Essa foi uma escolha. Mas coincidência foi que dois irmãos de nome igual que nunca se conheceram tenham dado aos filhos mais velhos o nome de Francisco e aos mais novos o de Miguel. Hoje pai e filho "dão-se muito bem", passam os aniversários juntos, reúnem-se nas festas, os dois filhos Joões, os netos Francisco e Miguel a duplicar.
"Ele sempre andou à procura deste filho perdido" e, diz Luísa, o filho "mudou desde que conheceu o pai. Ele era muito fechado, sério, tinha uma tristeza nele". "Não é por ser meu filho, mas é uma jóia de pessoa, ele merecia."
"Depois de 40 anos de silêncio absoluto, muitos pais não estão dispostos a aceitá-los, porque isso quer dizer que há 40 anos que os abandonaram", diz Carlos Silva. Talvez essa busca ao contrário seja mais fácil para uma geração diferente, a dos irmãos, nota. Talvez os filhos destes pais queiram conhecer os seus irmãos guineenses.
O pai de Marisa Tavares morreu quando ela tinha seis anos, de cancro. Em adulta, soube que ele tinha um filho em Catió, dos tempos da guerra na Guiné. Numa caixa de madeira, descobriu dezenas de fotografias com mulheres africanas de peitos à mostra. Alguma seria a mãe do seu irmão? Numa, o pai tem uma criança negra ao colo, seria aquele o seu irmão? Quis tanto encontrá-lo. Ela que pouco sabe falar português - os pais emigraram para o Canadá quando era criança - criou um blogue só para essa busca (http://omadragoa.blogspot.pt/). Espalhou o pedido pelos blogues de ex-combatentes, encontrou colegas do pai que sabiam que ele era folgazão, mas desconheciam que o camarada de armas lá tinha deixado um filho. Criou o blogue sem saber sequer o nome do irmão. Anda à procura dele há três anos, se o irmão ainda for vivo, há-de andar pelos 40 anos. Mas não é provável que a tenha lido, porque não há rede eléctrica na Guiné, poucos têm acesso à Internet e seria preciso que o irmão soubesse falar inglês. Ela pergunta: "Are you my brother?"
O envio de informações que julgue relevantes para a busca destes filhos de ex-militares portugueses deverá ser feito para o email filhosdovento@publico.pt