Mulher teve bebé após transplante de tecido ovariano congelado na infância
Esta é uma história de doença e de tratamentos causadores de infertilidade, mas que no fim levou à gestação natural de um rapazinho saudável, cuja nascença foi também uma estreia mundial.
Já foram reportados mais de 35 casos de gravidezes bem-sucedidas após transplantes de ovários que tinham sido preventivamente removidos, por razões de saúde, a mulheres adultas. Mas esta é a primeira vez que um transplante deste tipo funcionou com tecido ovariano removido antes da puberdade.
A jovem mulher, cujo nome não foi revelado – mas que iremos chamar A. por pura conveniência narrativa –, nascera na República do Congo, relatam naquela revista Isabelle Demeestere, da Universidade Livre de Bruxelas (Bélgica), a médica que liderou este inédito procedimento.
Quando A. tinha cinco anos, foi-lhe diagnosticada uma anemia falciforme – uma grave doença do sangue. E quando, aos 11 anos, ela emigrou para a Bélgica, os médicos consideraram os seus sintomas suficientemente graves (altas febres e anemia pronunciada) para aconselharem um transplante de medula óssea de forma a tentar conferir-lhe um sistema sanguíneo normal. Felizmente, o irmão de A. era um dador compatível. O transplante acabaria por ser feito quando A. tinha 13 anos e 11 meses de idade.
Todavia, para realizar um transplante de medula óssea é necessário “neutralizar” a própria medula óssea do doente de forma minimizar os riscos de rejeição imunitária – o que pode destruir para sempre os ovários, pondo em causa a futura fertilidade da pessoa tratada.
Ora, embora A. ainda não tivesse ainda a menstruação, os médicos detectaram que o processo de puberdade já estava em curso, uma vez que os seios da rapariga estavam a desenvolver-se desde que tinha dez anos. Por isso, apesar de não terem a certeza de que o tecido ovariano de A. pudesse mais tarde dar origem a ovócitos funcionais, os médicos decidiram retirar-lhe o ovário direito e congelaram-no para o preservar, com a ideia de que talvez um dia seria possível restituir à menina a sua função ovariana.
O transplante de medula óssea foi bem-sucedido, apesar de A. ter sofrido uma reacção dita de “rejeição do dador pelo transplante” e ter assim precisado de tratamentos imunossupressores durante o ano e meio que se seguiu à intervenção. A situação acabou por se regularizar, explicam os autores no seu artigo, A. ficou livre da anemia falciforme.
Mas entretanto, tinha A. 15 anos, o seu ovário esquerdo (aquele que não fora removido) deixou de funcionar, como era de recear – e, a partir daí, ela teve de fazer, de forma crónica, uma terapia hormonal de substituição de forma a continuar a ser menstruada (embora infértil).
Passaram-se dez anos e um dia, A. manifestou o desejo de engravidar, lê-se ainda no artigo. Para testar a sua fertilidade, os médicos interromperam o seu tratamento hormonal paliativo e a jovem deixou efectivamente de ter o período, passando ainda a apresentar outros sintomas que confirmavam a ausência de actividade ovariana. Não podia ter filhos.
A seguir, os médicos descongelaram uma parte do tecido ovariano preservado e detectaram nele a presença de folículos. Assim, em Maio de 2011, a equipa realizou o transplante de quatro fragmentos desse tecido ovariano para o ovário esquerdo de A., enquanto mais 11 fragmentos foram implantados em diversos locais do abdómen.
Por que é que foram realizados estes transplantes “fora do sítio”?, perguntámos. “Porque o que restava do ovário não funcional era muito pequeno e nós tínhamos de transplantar uma certa quantidade de tecido ovariano para restaurar o ciclo menstrual”, responde-nos Isabelle Demeestere através de uma porta-voz. “Se o número de folículos transplantados não fosse suficiente, a doente não recuperaria um ciclo normal, com níveis hormonais pré-menopausa, e o tempo de vida do transplante seria muito curto, reduzindo as hipóteses de obter uma gravidez.”
E de facto, quatro meses após a realização dos múltiplos transplantes, os níveis hormonais da jovem mulher “atingiram níveis de pré-menopausa e foi observada actividade ovariana”, escrevem os autores. A primeira menstruação surgiu cinco meses após a operação e a partir daí, A. apresentou ciclos menstruais regulares.
Aqui, a história de A. complica-se um pouco, mas apenas por razões circunstanciais. Acontece que o parceiro de A. era ele próprio infértil – e que o casal teve de recorrer a tecnologias de procriação assistida. Essas tentativas acabariam por ser interrompidas porque o casal se separou.
Passaram-se mais dois anos, durante os quais A. não engravidou, mas continuou a ter menstruações normais. E no fim desse período, já com um novo parceiro, A. ficou espontaneamente grávida aos 27 anos, “tendo dado à luz um rapaz saudável [com 3140 gramas], em Novembro de 2014”, concluem os autores.
“Trata-se de um passo importante neste domínio porque as crianças são os doentes mais susceptíveis de beneficiar deste procedimento no futuro”, diz Isabelle Demeestere em comunicado da editora da Human Reproduction. “Quando lhes são diagnosticadas doenças que requerem tratamentos que podem destruir a função ovariana, o congelamento do tecido dos ovários é a única opção disponível para preservar a sua fertilidade.”
Os autores não vêem aliás razões para A. não vir a ter mais filhos no futuro se assim o desejar, eventualmente através de novos transplantes de tecido ovariano se aquele que actualmente tem no corpo deixar de funcionar.
“Contudo, o êxito desta operação necessita de estudos mais aprofundados nas crianças muito jovens, pré-púberes [ao contrário de A.], salienta a cientista. “Para mais, também levanta alguma controvérsia (…): será legítimo usar esta técnica invasiva simplesmente para induzir a menstruação e a puberdade, quando as terapias de substituição hormonal são eficientes?”
E conclui: “Actualmente, pensamos que o tecido ovariano criopreservado só deve ser usado para fins de restauração da fertilidade em doentes com elevado risco de deficiência ovariana e não para a indução da puberdade ou para restaurar os ciclos menstruais em mulheres adultas.”