O que une espiões, Google e CNPD?

Todos os dias abdicamos da nossa privacidade em nome de nada ou, na melhor das hipóteses, em nome do conforto. O terrorismo justifica uma excepção legal.

Acaba de ser aprovada em Conselho de Ministros uma proposta de lei para dar às secretas acesso a dados fiscais, bancários e de tráfego de comunicações de suspeitos de terrorismo. A ser aprovada, os espiões terão também acesso às moradas consultadas na Internet e aos nomes dos destinatários e emissores de SMS.

A proposta só prevê o acesso ao registo de tráfego, não ao conteúdo das mensagens. Ou seja, as secretas saberiam quem fala com quem, mas não o que é dito. A justificação para este passo – que segundo o Governo só Portugal e a Suíça ainda não deram –, é aumentar a eficácia do combate ao terrorismo. Segundo a proposta, o acesso a qualquer destes dados teria de ser autorizado por um painel de três juízes.

Previsivelmente, a Comissão Nacional de Protecção de Dados é contra. Na mesma linha, também a nova presidente da Associação Sindical de Juízes Portugueses já disse que “ninguém tem de saber com quem é que eu falo” e que este “mecanismo pode pôr em causa a reserva da vida privada”. Maria José Costeira fala em “devassa inadmissível da vida das pessoas”. Alguns leitores do PÚBLICO partilham destas posições. Queixam-se de que o Estado “controla cada vez mais os cidadãos” com a “desculpa do terrorismo”, que “a quebra da reserva da vida privada é o primeiro passo para o autoritarismo” e fazem perguntas clássicas: “Como pode haver liberdade sem privacidade?”.

Não deixa de ser extraordinário verificar o contraste que existe entre esta defesa da privacidade em nome dos princípios e a leveza com que a maioria de nós, cidadãos de países cultos e desenvolvidos, abdica dessa mesma privacidade em nome de nada ou, na melhor das hipóteses, em nome do conforto e da rapidez que as novas tecnologias nos proporcionam.

Salman Rushdie, num velho ensaio sobre ateísmo, escreveu sobre o céu que, no futuro, não teria deuses, seria apenas um céu azul. Os deuses são uma questão individual (privada, portanto), mas o facto de o céu estar hoje cheio de máquinas e programas informáticos que seguem todos os nossos gestos é uma questão pública. Os conteúdos dos nossos emails estão armanezados em nuvens de servidores (chamam-se mesmo clouds) e é aí, nesse céu imenso, que são lidos por computadores para, entre outras coisas, recebermos publicidade escolhida em função dos nossos interesses, potenciando o consumo. Quem tem uma conta de email da Google não estranha que a empresa saiba onde vivemos, que língua falamos, que sites visitamos, o que compramos e com quem trocamos mensagens. Poderá não saber que além disso a Google lê de facto os nossos emails. Não é fácil encontrar esta informação nos documentos oficiais da empresa. É necessário ir à página da política de publicidade da Google para ler o seguinte: “Os anúncios direccionados são totalmente automatizados e não há humanos a ler os seus emails.” A regra é que não há humanos a ler, "apenas" algoritmos. Mas se alguém quiser ler, é possível. Esta invasão da nossa privacidade não nos tira o sono. Todos os dias partilhamos dados privados de forma voluntária com empresas públicas e privadas. Sempre que usamos a via verde, compramos um livro na Internet ou chamamos um carro da Uber.

Porquê, então, tanta resistência em criar um enquadramento legal que dê às secretas acesso a informação – menos do que a Google tem e armazena sobre todos nós – quando falamos de terrorismo, uma anomalia que põe em causa não só a nossa liberdade como a nossa vida? Porque as secretas vão abusar, dir-se-á. Isso pode acontecer. Exactamente como pode acontecer em relação aos emails que escrevemos todos os dias.

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