A história dos nossos encontros com os vírus numa gota de sangue
Uma nova técnica que fornece rapida e facilmente o “perfil viral” individual de qualquer pessoa a partir de uma amostra de sangue poderá permitir perceber, como nunca foi possível até aqui, as relações entre vírus e doenças humanas.
Quando somos expostos a um vírus, ao fim de algumas semanas geramos anticorpos especificamente dirigidos contra certas proteínas desse vírus, que podem, aliás, permanecer durantes décadas no soro do nosso sangue. Porém, hoje em dia, testes como os célebres ELISA só detectam um anticorpo antiviral de cada vez – e apenas para um reduzido número de vírus causadores de doenças humanas.
Assim, para saber se fomos infectados(as) por um dado vírus (VIH, hepatite B, ébola, gripe e por aí fora), o nosso médico terá de fazer alguma ideia da identidade desse vírus antes de escolher o teste a realizar. E se um resultado for negativo, será necessário realizar outros testes.
Esta limitação poderá agora vir a ser ultrapassada pelo VirScan, que também funciona a partir de uma amostra de sangue. Desenvolvido pela equipa do norte-americano Stephen Elledge, da Universidade de Harvard e do Howard Hughes Medical Institute (HHMI), juntamente com colegas na África do Sul, Peru, Tailândia, Alemanha e Espanha, foi agora testado em voluntários dos quatro cantos do mundo.
O VirScan faz, basicamente, um “varrimento” em simultâneo de todos os anticorpos contidos no sangue de uma pessoa dirigidos contra qualquer uma das 206 espécies de vírus conhecidas por serem capazes de infectar os seres humanos. Como cada vírus possui uma série de variantes ou estirpes conhecidas, isso corresponde, na realidade, a testar a presença de mais de mil estirpes virais. Obtém-se daí um “perfil viral” que traça a história, passada e presente, dos contactos do fornecedor da amostra de sangue com os vírus potencialmente perigosos para a nossa saúde.
“Desenvolvemos uma metodologia de rastreio que nos permite, essencialmente, olhar para trás no tempo, no soro [do sangue] das pessoas, e ver quais os vírus a que foram expostas”, diz Elledge em comunicado do HHMI. “Em vez de testar um único vírus de cada vez, o que é muito trabalhoso, podemos detectá-los todos ao mesmo tempo – numa única ida às compras, por assim dizer.”
Para desenvolver o teste, os cientistas começaram por sintetizar no laboratório 93.000 fragmentos de ADN que codificam diversos segmentos de proteínas virais susceptíveis de serem reconhecidas pelos anticorpos humanos. E a seguir, explica o mesmo documento, introduziram cada um desses bocados de ADN viral dentro de bacteriófagos, que são vírus que apenas infectam bactérias. Cada um desses bacteriófagos reproduziu assim, graças à sua maquinaria genética, o fragmento de proteína viral “estrangeira” em causa e passou a mostrá-la, tal como uma antena, à sua superfície. Ora, são precisamente essas antenas que os anticorpos de uma pessoa exposta a um vírus reconhecem quando tornam a encontrar esse vírus – e é nesta “memória imunitária” que se baseiam os testes habituais de despistagem viral.
Recapitulando: os cientistas obtiveram desta forma uma autêntica “biblioteca” de bacteriófagos que apresentavam, na sua membrana externa, a “assinatura molecular” de uma (e uma só) das mais de 1000 estirpes conhecidas de vírus que infectam humanos. Todos os vírus conhecidos constavam, portanto, do catálogo.
À pesca de anticorpos
Para detectar os vírus numa dada pessoa (“uma análise que requer menos de um microlitro de sangue”, escrevem os autores), o conjunto de bacteriófagos é misturado com o sangue do dador e, passados uns tempos, recuperam-se apenas os anticorpos que se ligaram a um bacteriófago (ou seja, aqueles que reconheceram o fragmento de proteína viral transportada por esse bacteriófago). Por último, sequencia-se o ADN desses bacteriófagos para identificar quais as proteínas virais que foram reconhecidas pelos anticorpos humanos contidos na amostra de sangue. Segundo Elledge, uma vez optimizado o processo, a análise de 100 amostras de sangue deverá demorar dois a três dias – e o seu custo por amostra rondará os 20 euros.
Numa primeira fase de testes, os cientistas analisaram amostras de sangue de pessoas infectadas pelo VIH e a hepatite B. “Funcionou muito bem”, diz Elledge. “Não houve falsos positivos e a sensibilidade do teste foi superior a 95%”. Na segunda fase, a equipa analisou os vírus contidos em amostras de sangue de 569 voluntários oriundos dos EUA, África do Sul, Peru e Tailândia, escrutinando cerca de 100 milhões de potenciais interacções vírus-anticorpo. Resultado: em média, cada pessoa possuía anticorpos contra dez espécies de vírus – embora em dois casos esse número tenha atingido 84. Por outro lado, alguns vírus eram mais comuns nos adultos do que nas crianças, devido a um efeito da idade.
Entre as espécies de vírus mais frequentemente detectadas incluem-se, entre outros, vários vírus do herpes, da constipação, da gripe, da poliomielite (presente, em parte, devido à vacinação) e ainda vírus causadores de infecções respiratórias, lê-se no artigo da Science. Os norte-americanos foram expostos a menos vírus do que participantes de outros países e as pessoas com VIH têm anticorpos contra um número muito maior de vírus do que as pessoas seronegativas.
Um resultado surpreendente foi a existência de um pequeno número de fragmentos de proteínas virais que são reconhecidos pelo sistema imunitário da esmagadora maioria dos participantes. Isso sugere, segundo os cientistas, que o sistema imunitário de muitas pessoas reage ao mesmo fragmento viral. A confirmar-se este resultado, poderá ser importante para o desenvolvimento de vacinas antivirais, onde um dos obstáculos tem sido, justamente, a identificação de alvos virais "universais".
Os cientistas pensam que a nova técnica poderá vir a ser utilizada para detectar anticorpos contra outros agentes patogénicos, como bactérias, fungos e parasitas. E que também poderá permitir relacionar certas doenças com exposições prévias a certos vírus (tal como se sabe que acontece com o vírus de Epstein-Barr, que pode causar cancro mais tarde). “Uma infecção viral pode deixar uma marca permanente no sistema imunitário”, diz Elledge em comunicado de Harvard. “O facto de dispormos de um método como o VirScan poderá ajudar-nos a perceber as interacções entre os vírus que infectam o ser humano e o sistema imunitário dos hospedeiros, com implicações para uma série de doenças.”