Dançar o conflito da pertença
Numa decisão tardia, Luís Marrafa abandonou tudo e decidiu dedicar-se à dança. Actualmente a viver em Bruxelas, estreia na Culturgest Home, uma coreografia centrada na chegada uma terra nova e no desejo de encontrar o seu espaço.
Unidos costas com costas, são cinco seres como que tomados pelo medo, de olhares nervosos e irrequietos, procurando a toda a volta pontos de reconhecimento em vão; e de pequenos passos ansiosos como se o solo firme a que finalmente chegam teimasse em fugir-lhes dos pés e os lançasse sem clemência para um chão do qual não se conseguiriam já levantar. Home inicia-se praticamente com esta sequência em que os cinco bailarinos se movem numa desorientação assustada, juntando os corpos num destino comum. “Somos muito parecidos”, diz o coreógrafo Luís Marrafa, “e é por isso que existe um movimento idêntico. Temos uma história igual e uma mesma estrutura do movimento, mas depois cada um interpreta de forma própria. Estamos a descobrir ainda, a procurar o nosso lugar, um bocado perdidos.”
Após o medo e a perturbação inicial, Home rouba cada um dos cinco intérpretes a esse destino comum e intima-o a criar um espaço e uma história individuais. Obriga a um recomeço e à procura de familiaridade, à construção de um mundo pessoal quase a partir do zero. Funciona, de certa forma, como uma projecção em palco dos movimentos de ruptura e adaptação de Luís Marrafa, nascido na Alemanha e chegado a Portugal aos oito anos, a residir em Bruxelas desde 2009. Há em Home a energia desse recomeço, pejado de dúvidas e hesitações, acompanhado de uma necessidade de forjar um novo reduto de aconchego e de conforto. “Sinto-me nómada, por estar sempre a viajar, de um lado para o outro”, confessa o coreógrafo e bailarino. “E a ideia para esta peça surgiu-me precisamente por estar em Bruxelas. Como já estou lá há seis anos ganhei uma perspectiva diferente. Já não me sinto estrangeiro, já não me sinto um outsider – mas claro que o sou ainda. Agora, sinto-me confortável lá, mas aos 40 anos interrogo-me também se é ali que quero ficar.” A busca por esse lugar de conforto parece, afinal, um impulso primário que contraria logo que é atingido. Então, recomeça a atracção por essa luta adaptativa, pelo conflito da pertença.
Home (na Culturgest, Lisboa, sexta e sábado) faz-se, por isso, de dois movimentos constantes e do equilíbrio persistente entre os planos individual e colectivo. Dos quadros conjuntos, os bailarinos são cuspidos, à vez, para se autonomizarem e protagonizarem solos em que cada um se entrega à afirmação do seu espaço. Como em qualquer mudança para um lugar novo, a tentativa de integração leva a uma procura activa de pertencer a um colectivo, fundir-se nele, deixar de ser visto como intruso ou diferente. Mas essa necessidade e esse processo de adaptação revelam-se profundamente pessoais, exigindo que, ao mesmo tempo que aquele/a tenta fazer parte de um colectivo, tenha de resolver-se e descobrir a sua própria relação com o lugar. É uma viagem a dois tempos, simultâneos mas com ritmos distintos, ambos vitais e interdependentes – um não vinga sem o outro.
A dúvida
Se muita da vida de Luís Marrafa se pode vislumbrar no desenho coreográfico de Home, a peça pode também sugerir uma pacificação com o seu início na dança. Tendo começado a dançar verdadeiramente numa idade em Absque poucos se atrevem a arriscar qualquer início com efeitos implosivos, Marrafa largou uma estabilidade aparente na sua vida, com trabalho numa fábrica e casa própria em Évora, um curso de Engenharia para progredir no seu emprego de então e o caminho para uma vida familiar que se afigurava simples e linear. Em miúdo tinha experimentado aulas de dança jazz, depois de perceber o efeito de ver Michael Jackson, Prince ou James Brown mexerem-se – “aquilo entrava-me no corpo”, recorda. Mas as circunstâncias familiares obrigaram-no a trabalhar a partir dos 16 anos, sem poder investir tanto quanto gostaria nos estudos.
Aos 27 anos, quando tinha começado a fazer algumas aulas soltas de dança contemporânea e improvisação em Évora e em Montemor-o-Novo, foi apanhado de surpresa pelo espectáculo Pixel, de Rui Horta. “Aquilo mexeu muito comigo”, revela. “Percebi que queria estar ali, no palco, a fazer aquilo. Fiquei desorientado durante uns dias com o que vi e comecei a pôr tudo em dúvida.” E levou a dúvida até às últimas consequências: apesar da dureza desse período – “acharam que eu estava louco, não entendiam, mas percebo que já tinha 27 anos e estava ali o conservadorismo português a manifestar-se”, concede –, negociou a rescisão contratual com a fábrica e passou seis meses a preparar-se intensamente para a audição que resultaria na sua admissão na Escola Superior de Dança (ESD). Sem grandes bases de dança clássica, apostou tudo nas provas de contemporânea e de criatividade. E ficou.
Estava enfim no mundo da dança. E agora? Após concluir a licenciatura, um primeiro momento de desorientação, de se questionar o que fazer. Seguiu para Londres, mas acabou por se fixar na Bélgica na sequência de uma residência na escola da companhia Rosas, de Anne Teresa de Keersmaeker, e de um contrato de seis meses para trabalhar na Dame de Pic, da coreógrafa Karine Ponties. Instalado em Bruxelas, foi participando em vários projectos até se juntar à bailarina Petra van Gompel, com quem criou a companhia Marrafa Vzw e o estúdio de dança StairCase. Caído num país de absoluta referência para a dança mundial, onde estão sediadas as companhias de Keersmaeker, Meg Stuart, Wim Wandekeybus, Sidi Larbi Cherkaoui, Michèle Noiret ou Peeping Tom, Marrafa encontraria na desafiadora linguagem híbrida de Jan Fabre uma das suas maiores referências, seduzido que se diz por uma abordagem “teatral e surreal”.
Também em Bruxelas uma das suas questões fulcrais é a de que espaço ocupar no meio de tantas figuras de primeira linha. Tanto artística como socialmente, que corpo ser na multidão. Era já essa parte da matéria de Unstable ou Abstand, reforçada agora em Home, quando Marrafa insere as diferenças culturais na equação – uma postura mais crua em Petra, centro-europeia, uma linguagem mais exacta em Marcia Liu, de Hong Kong, e uma procura do toque entre Marrafa, António Cabrita e São Castro, os três portugueses. E em toda a peça surge sempre uma busca por aquilo que hoje parece um lugar-comum a evitar: o conforto. Marrafa quer sentir-se em casa. Depois de travessias duras, de decisões complicadas, está à procura do seu canto – enquanto intérprete, coreógrafo e homem que largou tudo para começar o seu percurso do zero.