Isto é a queda, diz Stravinsky
Um libertino regressa ao palco do São Carlos quase 300 anos depois de um pintor inglês ter começado a contar a sua história. Um anti-herói igual a tantos outros que conhecemos. Quem somos nós para dizer que um hedonista está, por defeito, errado?
Horta teve todo o Inverno para trabalhar neste Rake’s do São Carlos, a única produção nova da temporada 2014-2015, que está prestes a terminar. Desenvolveu a encenação e a cenografia em paralelo, com uma a contaminar a outra, e as luzes vieram depois. “Fiz tábua rasa da versão de Basileia”, explica o coreógrafo que aqui encena pela primeira vez no São Carlos, acrescentando que quis criar uma estrutura cenográfica mais depurada, num claro contraste com a sala de dourados e veludos do teatro.
O eixo central da cenografia e da encenação é a rampa mutante que vemos perder-se numa floresta no primeiro acto (é Sintra, a caminho da Peninha), que se separa e reconfigura constantemente desde o primeiro momento para reforçar a ideia de que na história de Tom Rakewell há “sempre uma tendência para a queda”, uma tendência que Stravinsky parece compreender melhor que ninguém. “Quando descobri a rampa descobri a peça”, diz. “Com ela ascendemos e caímos, como o Tom, que começa por achar que tudo é possível – o amor, o prazer - e que acaba num asilo, mostrando-nos que a loucura é uma condenação eterna, incomparavelmente maior do que a morte.”
Uma perda "brutal"
No libreto que Stravinsky encomendou ao poeta W.H. Auden, que nele colabora com Chester Kallman, algo que aconteceu muitas vezes ao longo da carreira do poeta anglo-americano a quem devemos Funeral Blues, o percurso de Rakewell sofre algumas alterações face à sua fonte iconográfica, as gravuras feitas em meados do século XVIII a partir da série homónima de oito pinturas de William Hogarth, mas tudo, garante Horta, sem prejudicar “a moral geral”. The Rake’s Progress, que em português se chama A Carreira do Libertino, não é apenas uma reflexão sobre o poder do destino, sobre as impossibilidades do amor ou as armadilhas do desejo, é uma peça “em que a noção de perda é absolutamente brutal”.
Tom Rakewell (o tenor Tuomas Katajala) é um jovem inglês sem recursos, desempregado, que de repente e graças à herança de um tio que nem conhece, passa a ser um homem rico. Está apaixonado por Anne Truelove (a soprano Ambur Braid) quando, acompanhado por Nick Shadow (versão do diabo interpretada pelo barítono Luís Rodrigues), viaja para Londres, entrando numa espiral de destruição que inclui mulheres e jogo e que acabará por levá-lo à loucura. Anne fica para trás.
“Ela parece uma personagem submissa, típica da moral tradicional burguesa, mas acaba por ter muita força. É na Anne, no Tom - o perdulário clássico, um mulherengo - e no Shadow que eu baseio toda a encenação”, explica Rui Horta, admitindo que trata os personagens secundários – a prostituta Mother Goose (Cátia Moreso), Baba, a turca (Maria Luísa de Freitas), a mulher com quem Tom se casa, Sellem, o leiloeiro (Carlos Guilherme), Truelove, o pai de Anne (Nuno Dias) e o Guardião do Hospício (João Oliveira) - como figuras de banda-desenhada que são “verdadeiras locomotivas da acção” e que conduzem as cenas do coro.
Os figurinos de Pepe Corzo reforçam este lado de ilustração animada e o cenário, que Horta “constrói” já iluminado, sublinha o sentido de queda (no primeiro acto a tela onde passa o vídeo da floresta descai, no segundo tudo está inclinado, a evocar o precipício). “A partir do segundo acto é sempre a descer, até ao cemitério e ao asilo.”
Ainda muito a fazer
Para a maestrina Joana Carneiro este Rake’s é também uma estreia na direcção de ópera no teatro lisboeta. Trabalha há um ano e meio com a Orquestra Sinfónica Portuguesa (OSP) e até já tinha feito com ela uma produção operática, na Culturgest (Paint Me, de Luís Tinoco e Stephen Plaice), tendo Rui Horta a assinar a encenação, a cenografia e o desenho de luzes, tal como agora. Mas estar no São Carlos, e com uma obra de Stravinsky, é outra coisa: “Esta é uma peça muito forte, com um libreto cheio de ironia e humor, muito consequente. E tudo isto é transmitido de forma muito clara pela música. Mas é também um desafio à interpretação porque a partitura é bastante difícil. Está carregada de pequeníssimas acções – acho que o andamento mais comprido tem quatro ou cinco minutos – que mudam muito depressa, às vezes de um plano muito emotivo para outro completamente diferente.”
À “transparência” da obra – é assim que a maestrina a define – junta-se a sua singularidade no percurso de um compositor que é indissociável do universo da dança, já que é com Pássaro de Fogo (1910), a sua primeira colaboração com os Ballets Russes de Diaghilev, que se torna verdadeiramente famoso, seguindo-se Petruschka (1911) e o icónico A Sagração da Primavera (1913), eterno rasgo de modernidade que lhe colou o rótulo de líder da música de vanguarda e que gravou o seu nome em todas as grandes companhias de reportório espalhadas pelo mundo.
The Rake’s Progress (1951) é a única ópera de grande fôlego de Stravinsky e é um segundo marco na sua fase neoclássica, inaugurada com o bailado Pulcinella (1919-20), “recomposição” da música atribuída a Pergolesi. “Quem gosta de Mozart gosta desta ópera”, garante Carneiro. “Tem muito da história da música, muitas referências, mas sempre com o toque de Stravinsky, com a novidade que ele era capaz de trazer.” Este passado que deixa lastro reflecte-se nos recitativos acompanhados por cravo, mas não se fica por aí. A história que conta, a de Tom Rakewell, verdadeira crónica de costumes, é inspirada numa série de gravuras de 1735, mas fala directamente à América moralista de Joseph McCarthy, em que Stravinsky compôs The Rake’s Progress (o compositor radica-se nos Estados Unidos em 1939).
“É um ambiente fechado, opressivo, carregado de normas, de regras”, diz Horta. “Para a América dos anos 50, Tom Rakewell é um arquétipo da decadência moral, das falhas de carácter. É verdade que ele parece um fraco, mas quem sou eu para dizer que um homem deve amar uma mulher a vida toda e que não pode fazer apenas o que lhe dá prazer?”
Sentada no fosso da orquestra, numa pausa breve no ensaio, Carneiro admite “o peso da responsabilidade” que o Rake’s representa, sobretudo tratando-se de uma produção operática própria num teatro que tem atravessado momentos difíceis. “É uma adrenalina boa, que puxa por nós. A orquestra está a crescer artisticamente, o público reconhece o nosso trabalho e há um esforço permanente para fazer melhor, para mostrar que gostamos de tocar juntos.”
A temporada “equilibrada" não impede Joana Carneiro de reconhecer que há ainda muito a fazer com a orquestra e o teatro. Na primeira, há espaço para novos músicos: depois de ter recebido cinco elementos, entre eles um concertino, espera-se agora a abertura de novos concursos para uma trompa e um clarinete. No segundo, há que encontrar um director artístico: “É fundamental nomeá-lo. Haver este vazio é uma situação que me preocupa muito e é urgente, mesmo muito urgente, resolvê-la – um director artístico é responsável pela identidade de um teatro.”
Esta ópera de Stravinsky faz parte de uma temporada desenhada pelo musicólogo italiano Paolo Pinamonti que, depois de ter sido director do São Carlos entre 2001 e 2007, regressou em 2013 como consultor artístico, cargo que teve de abandonar em Dezembro do ano passado devido a irregularidades contratuais, deixando a casa sem um responsável artístico.
É por isso que Carneiro não avança nomes para a próxima temporada lírica e sinfónica (Setembro 2015-Junho 2016), mas assegura que nela deverão estar representados vários períodos da história da música e não esconde que gostaria de regressar a John Adams. Foi, aliás, numa ópera do compositor norte-americano - A Flowering Tree, peça que fez também no Chicago Opera Theater e com a Orquestra Gulbenkian, em Lisboa e Paris - que trabalhou pela primeira vez com Rui Horta. “Fizemos uma versão concerto que tinha algumas partes encenadas… Damo-nos bem juntos porque ambos ouvimos o que o outro tem a dizer. E o Rui tem muito carisma, uma mentalidade aberta, e é muito prático.” Pragmatismo é, aliás, uma qualidade que o coreógrafo também reconhece na maestrina. “Temos uma enorme cumplicidade, a Joana e eu, e foi dessa cumplicidade que saiu o convite para que eu viesse fazer ópera ao São Carlos.”
Horta, que sempre se deixou fascinar pelo género que, por definição, é um “híbrido” – a multidisciplinaridade de linguagens e recursos é uma das marcas do percurso deste criador que parte da dança para chegar a muitos outros lugares –, fez deste Rake’s um novo desafio. A obra, que integra o reportório de boa parte dos teatros de ópera internacionais, também está no currículo de grandes referências do mundo da arte, com destaque para George Balanchine, o coreógrafo ligado à sua primeira apresentação nos Estados Unidos, os encenadores Robert Lepage e Peter Sellars e o pintor David Hockney, que assinou a cenografia numa montagem de 1975.
“É uma obra complicada, mas eu não me importo, porque gosto de coisas complicadas”, garante. “E quando se tem alguém como a Joana Carneiro à frente da orquestra tudo se torna mais fácil para o encenador, que numa ópera se deve obrigar a um exercício de humildade – é a música que vem primeiro, é ela a primeira a falar.”