Um autógrafo, se faz favor
É aquela altura do ano: escritores e leitores, cara a cara, no parque. O que é que dizem um ao outro? A 85ª Feira do Livro de Lisboa começa hoje
José Luís Peixoto: Muitas vezes prolongo as sessões de autógrafos para lá do que estava previsto, pelo prazer que me dão. Nos últimos anos não tenho ficado menos de cinco horas seguidas. Nesses dias autografo sempre centenas de livros. São dias em que fico extremamente cansado.
José Rodrigues dos Santos: Muita gente vem carregada de casa com livros. São pessoas que já sabem que vou estar na feira. Normalmente, quando chego, tenho 100, 150 pessoas à minha espera. Aí não dá para conversar muito. É sempre uma conversa limitada.
Dulce Maria Cardoso: Há autores que falam muito. Que sentam o leitor e fazem perguntas. Eu não sou assim. Tenho medo de os maçar. São os leitores que decidem o tempo que ficam.
Richard Zimler: Não quero que as pessoas esperem muito tempo para conseguir um autógrafo meu. Por isso faço questão de não conversar muito tempo com as pessoas. Fico muito ansioso porque esperar meia hora por um autógrafo é um exagero. Há outros escritores que fazem precisamente o contrário. Falam 15 minutos com cada pessoa para prolongar a fila. Querem mostrar que são populares. É uma técnica.
Afonso Cruz: Uma fila deixa-me um pouco pressionado. Se tenho duas pessoas à espera já começo a despachar. Há autores que sabem lidar com isso melhor. Não creio que a feira do livro seja o melhor lugar do mundo para falar com as pessoas [risos].
José Luís Peixoto: Não sei se me fica mal ou bem dizer isto, mas muitas vezes as pessoas esperam duas horas na fila. Isso também tem a ver com o facto de eu tentar que as minhas dedicatórias não sejam iguais para toda a gente. Tento que o livro fique personalizado. Que partilhemos um momento. Se não for assim também não vejo qual é o sentido de escrever o nome e algumas palavras num livro. O que é importante é aquele momento, aquele encontro. E mostrar às pessoas que quem escreveu aquele livro também é uma pessoa.
Dulce Maria Cardoso: Já tive um rapaz que me disse: “Zanguei-me com a minha namorada. Por favor, faça-me uma dedicatória que me reconcilie com ela.” Fiquei muito comovida e esforcei-me bastante [risos]. Mas não há duas conversas iguais. Há pessoas que são naturalmente tímidas e que querem só a assinatura. Aliás, já é um grande esforço pedirem para lhes assinar o livro.
Richard Zimler: Às vezes são muito tímidos e só dizem “Um autógrafo, se faz favor” e eu pergunto de onde são só para começar uma conversa.
José Luís Peixoto: Já me aconteceu encontrar familiares que eu não conhecia nas sessões de autógrafos. É um momento em que se está ali exposto para qualquer pessoa que queira esperar.
Dulce Maria Cardoso: Uma vez um senhor disse-me que tinha ficado muito incomodado com Os Meus Sentimentos. Eu disse que não podia fazer nada. A não ser devolver-lhe o dinheiro do livro. E ele disse: “Não, não, o incómodo já cá está”. Mas é um caso extremado, não é habitual.
Richard Zimler: No ano em que publiquei Goa e o Guardião da Memória, 2005, o livro saiu uma semana antes da minha sessão na feira do livro, então eu tinha pessoas constantemente à minha espera para lhes assinar o livro. Para Stephen King ou Salman Rushdie isso pode ser uma coisa quotidiana, mas para mim não. Só que, ao mesmo tempo, estava lá uma senhora completamente doida que começou a gritar que eu não era judeu, que era um nazi alemão. As outras pessoas riram-se, mas era muito difícil assinar autógrafos tendo uma pessoa a gritar coisas bárbaras atrás de mim. Soube mais tarde que ela tinha ameaçado o Saramago antes de mim… E a polícia não fez nada. Foi uma experiência terrível para mim porque ninguém fazia nada. Nos Estados Unidos alguém chamaria a polícia.
Dulce Maria Cardoso: Evidentemente, quem não gosta do nosso trabalho não vai lá ter connosco. Quem vai ter com os autores, timidamente ou mais à vontade, é quem gosta do trabalho. É um encontro que dura aquele tempo. Não crio uma afinidade. Uma pessoa com quem não me identifico nada pode adorar os meus livros.
Mário de Carvalho: Não me recordo de ter falhado nenhuma feira do livro desde que comecei a publicar em 81. Já cá cantam muitas feiras do livro. Até hoje não tive um único incidente desagradável.
José Luís Peixoto: Em 2001, quando tinha acabado de receber o Prémio José Saramago por Nenhum Olhar, o livro tinha uma enorme cinta vermelha que dizia “Prémio José Saramago” e havia pessoas que vinham ter comigo a pensar que eu era o Saramago!
Afonso Cruz: Todos os anos tenho alguns leitores que são muito fiéis, que compram os livros todos. Às vezes oferecem-me coisas. Viram numa entrevista que eu gostava não sei de quê e decidiram comprar para me oferecer. Ou um objecto que tinham lá em casa e que tem a ver com a história de um livro. Às vezes é um disco que lhes diz muito e que acham que tem a ver comigo.
José Luís Peixoto: Há pessoas que levam presentes. Os mais comuns são livros ou manuscritos. Recebo sempre, agradeço, mas não tenho o hábito de fazer leituras a pedido. E esclareço logo, se a pessoa tiver essa intenção, que não vou fazer isso. Gosto de escolher os livros que leio. Não me sinto na obrigação de ler livros porque alguém me pede. Compreendo: não foi assim há tanto tempo que eu queria que alguém lesse o que eu escrevia e me desse alguma orientação. Mas a verdade é que não posso fazer esse papel.
Gonçalo M. Tavares: Há leitores que aparecem na feira do livro que são coleccionadores de primeiras edições, por vezes até coleccionadores de primeiras edições de traduções ou de contos em antologias. Gosto de perceber o mecanismo e os rituais do coleccionismo e tenho prazer em falar com estes bibliófilos. Enfim, há coleccionadores completamente disciplinados que encontro uma vez por ano na feira.
Mário de Carvalho: Muitas vezes as pessoas não compram os livros para elas. Compram para os filhos, para o marido, para o namorado.
Dulce Maria Cardoso: Há pessoas que aproveitam para comprar os livros e pedir autógrafos para depois darem como prenda de aniversário ao longo do ano. Também acontece, quando é o livro do dia, as pessoas comprarem e depois aproveitarem para pedir um autógrafo já que está ali o autor.
Mário de Carvalho: Às vezes, em certas bancas, vê-se os autores sozinhos, com ar triste, divagante. Apetece chegar lá e fazer-lhes companhia. No início, quando ainda tinha poucos livros publicados, tinha poucos leitores. Não é nada de acabrunhante.
Richard Zimler: Em anos em que não tenho um livro novo, obviamente as filas são menores. Mas tudo bem, nunca fico ansioso. A feira do livro é uma experiência lúdica. Não estou lá só para vender livros.
Dulce Maria Cardoso: Quando não há leitores e fica ali o autor exposto, o que também acontece, não é assim tão terrível. Escrever é como lançar um bilhetinho dentro de uma garrafa e ficar à espera.
Mário de Carvalho: No ano passado estive ao lado de um jovem escritor que escrevia livros sobre intrigas de alto gabarito no Vaticano. Enquanto eu ia tendo o ritmo normal - vinha um leitor e depois outro -, ele tinha uma grande fila. É a diferença entre o bestseller e um autor do meu tipo.
José Luís Peixoto: Normalmente, quando chego, já há uma fila de várias dezenas de pessoas à espera. Às vezes, ainda não saí de casa e já a editora me está a pressionar.
José Rodrigues dos Santos: O reconhecimento da televisão acontece, mas é muito minoritário. O público médio de televisão não compra livros. A motivação de ser uma figura pública não é relevante. Aliás, muitas vezes é motivo de desconfiança.
Dulce Maria Cardoso: As pessoas tendem a pensar: “Se ela escreve isto, é porque é assim.” Em França, quando saiu Os Meus Sentimentos, reparei que havia uma fila toda de senhoras muito gordinhas que, quando viram que eu era magra, se sentiram traídas. Tinham criado uma expectativa por eu escrever em pormenor sobre uma personagem que é gorda. Quem me lê pode saber muito de mim, mas ainda fica uma enorme parte por descobrir. O autor está em desvantagem em relação ao desconhecido, ao leitor. O leitor parte com imensa informação e nós não sabemos quem temos à frente. Mas ter este problema é um enorme privilégio.
Richard Zimler: Quando comecei a assinar livros, em 1997-98, as pessoas eram mais tímidas. Havia menos contacto entre escritores e público. Não havia Internet, Facebook. As pessoas ficavam intimidadas. Isso mudou muito nos últimos anos. Qualquer pessoa pode escrever-me um email ou no meu Facebook.
José Luís Peixoto: Faço muita questão de ir à feira do livro. Por acaso, este ano vai ter que ser com certo sacrifício. Vou estar num encontro em Montpellier e vou ter de sair às cinco da manhã para conseguir estar cá a horas decentes. Mudei o voo, que estava marcado para as 11h. Mas, pronto, espero dormir no avião.
Dulce Maria Cardoso: Quando estou muito aflita a escrever, sozinha, e me apetece sair porque está um dia de sol, lembro-me desta experiência de pessoas, anónimas, que se comoveram com os livros, que me dizem que estão à espera do próximo. Está justificada a arte com este tipo de declarações. É uma espécie de reservatório para dias muito intranquilos.