A visibilidade pode fazer a mudança social
O ciclo Gender Trouble rastreia as questões de género e da sexualidade tal como vêm sendo tratadas pelas artes performativas.
Nem sempre estas são preocupações centrais dos espectáculos incluídos no ciclo Gender Trouble – no já apresentado altered natives’ Say Yes to Another Excess –TWERK, de Cecilia Bengolea e François Chaignaud, era sobretudo a dessacralização da energia sexual fora da intimidade e na forma dançada da música urbana contemporânea a mandar. Mas noutros casos, como o de Walking: Holding, a performance que a escocesa Rosana Cade apresenta em várias sessões a 30 e 31 de Maio, o questionamento e o confronto com o preconceito existente em comportamentos tidos como corriqueiros faz-se com a inteligência da encenação de uma situação aparentemente banal. Duas pessoas passeiam em público durante 15 minutos de mãos dadas, sujeitando-se aos olhares e julgamentos alheios. O ponto essencial é que só assim se pode assistir à performance – cada membro do público caminhará com seis pessoas diferentes por um percurso pré-definido, sejam elas do mesmo sexo, drag queens, de minorias raciais ou vestidas de forma facilmente etiquetada como indiciadora de violência.
“Quando fiz a performance pela primeira vez interessava-me expor o preconceito publicamente ao permitir que as pessoas percebessem como se sentem os casais do mesmo sexo que passeiam de mãos dadas e como pode ser intimidante apresentar uma identidade não-normativa em público”, conta Rosana Cade ao Ípsilon. A ideia surgiu-lhe da sua própria experiência como lésbica e do desconforto que sentia ao permitir-se esse singelo gesto de intimidade com a sua namorada. “À medida que tenho apresentado a peça, mais tenho pensado como temos uma percepção exagerada do preconceito que realmente existe. Vejo a performance como uma oportunidade para contestar a ideia de que algumas pessoas se deveriam esconder ou sentir desconfortáveis em público. Penso que a visibilidade é uma das mais poderosas ferramentas que podemos usar para instigar uma mudança social.”
Por muito que essa aura de intimidade instantânea estivesse já na base de Walking: Holding, Cade confessa-se surpreendida pela imediatez com que a situação quebra barreiras. “É de facto um gesto muito íntimo e que pode conduzir a uma ligação muito próxima entre duas pessoas mesmo que não usem a linguagem.” E de repente, não se é apenas um, mas um conjunto de dois, é-se interpretado e percepcionado em relação ao outro. “É uma experiência muito libertadora para algumas pessoas”, constata a artista. “Ensinam-nos repetidas vezes a recearmos os estranhos que encontramos na rua e a acção desta performance encoraja-nos a vê-los como humanos.”
E nada é tão eficaz nesta humanização, reconhece, como o toque: “O toque liga-nos como seres iguais de uma forma que a linguagem falada nunca conseguirá." As palavras pouco podem perante a aceitação e a transferência para o lugar do outro que os dois corpos prolongando-se conseguem. O ser para lá do corpo marca igualmente a performance de Mariana Tengner Barros, em palco a 31 de Maio, numa sessão partilhada com Uma Misteriosa Coisa, disse o e.e.cumming, de Vera Mantero. Neste solo em que surge nua, Mariana diz querer “construir e destruir imagens” com o seu corpo, colocando-se no papel de “escultora, modelo, escultura, figura, fantasma…”
O corpo político
Ao cobrir o corpo com espuma de barbear, Mariana Tengner Barros tenta criar em Après le Bain uma ilusão de velhice, ao mesmo tempo que faz um apagamento daquilo que julgamos saber sobre ela a partir do seu corpo nu. Por entre esses gestos, desenha-se um bigode com a espuma. “Gozava com uma ideia de homem, limitada a um símbolo”, descodifica. “Não me interessa manter esta dualidade que nos persegue. O corpo é só um invólucro, pode ser tudo, pode ser transgredido como cada um bem entender.”
Parte da transgressão que a bailarina propõe em Après le Bain passa pela fabricação de um sentimento de invasão da sua privacidade. A bailarina e coreógrafa coloca o espectador “no papel de voyeur não assumido, aquele que está a ver às escondidas (seguro no escuro do lugar do público num teatro)”, enquanto devolve o olhar “como a modelo nua de um quadro que olha para o senhor imperialista, o representante do poder”. “Mas neste caso o meu olhar não é passivo, nem é submisso, nem é envergonhado. É um olhar de alguém que o vai trair, aniquilar.” Ao querer com este solo tentar ser todos os corpos, para se libertar de modelos, restrições estéticas e éticas em relação ao que é ou não permitido fazer em termos de ornamentação, manifestação ou expressão, Mariana aproxima-se do discurso de Judith Butler, definindo o corpo como “uma performance constante”, “espectáculo puro”, “uma arma”.
Também na peça 69 Positions, da artista dinamarquesa Mette Ingvarsten, o corpo é apresentado como arma. Na sequência de uma pesquisa da representação da nudez e da sexualidade nas artes desde os anos 60, Ingvarsten concebeu uma visita guiada a este seu arquivo, conduzindo os espectadores através de livros, filmes, fotografias e performances, em que o uso da nudez como ferramenta de contestação do poder é uma constante. 69 Positions explora igualmente a ingerência do Estado no corpo de cada um, num movimento extremo de controlo do íntimo. Ingvarsten cita como excepção, em entrevista a Bojana Cvejic, a admissão do registo oficial de um sexo indefinido na Alemanha, desde Novembro de 2013, nos casos em que nos primeiros dias de vida de um bebé os genitais externos e os cromossomas não são esclarecedores em relação ao sexo, em vez de uma imposta política de administração de hormonas definidoras de género e de expressão sexual forçando, por vezes, as crianças a crescerem contra a sua natureza. Dividido em três partes, 69 Positions, no Maria Matos a 6 e 7 de Junho, finaliza com esse desconforto de um corpo controlado.
Ingvarsten, no entanto, procede ela própria a uma manipulação durante a visita guiada. “As pessoas entram na expectativa de se depararem com um dispositivo teatral e acabam por se encontrar num espaço fechado, de pé ao lado de muitas outras, sem a possibilidade de se sentarem. A visita guiada é também um pretexto para as manter assim, acompanhando-me através do espaço (…). Rapidamente se torna claro que o cerne da performance não é guiar o público através de uma exposição, até porque nunca lhes dou tempo para contemplarem qualquer documento.” Em cada momento, é a dimensão política do corpo e a relação entre as pessoas mediada pela presença da sexualidade que lhe interessa.
Também a 6 e 7 de Junho, o projecto catalão Akelarre Cyborg dirige um workshop de modificação dos corpos visando a criação de identidades híbridas, enquanto a KARNART apresenta entre 18 e 24 de Junho Hermaphrodita, um espectáculo montado a partir de um poema de Eugénio de Castro escrito em 1894, e por sua vez inspirado no mito de Hermafrodito. Tudo, talvez, contido na interrogação de Mariana Tengner Barros do “que importa se temos vagina, ou pila, as duas, nenhuma?” O corpo, como diz a coreógrafa, é só um invólucro.