Festival de Música de Setúbal mobiliza 1500 jovens, inspira-se no clima e é para todos
Pelo quinto ano consecutivo, Setúbal enche-se de música no final de Maio. Músicos profissionais e amadores dão concertos conjuntos em vários espaços da cidade. E ninguém fica de fora. É um festival internacional e inclusivo. Começa nesta quinta-feira.
“Como um cozinheiro mistura ingredientes, sempre gostei de misturar géneros musicais”, diz ao PÚBLICO Ian Ritchie, director artístico do Festival de Música de Setúbal, que este ano tem por tema o clima.
Este músico, que esteve para ser “apenas cantor, barítono”, já tinha escrito: “O programa deste festival oferece-nos respostas criativas apresentadas pelos nossos jovens, numa reflexão sobre o espaço natural que habitam, as diferentes estações do ano, os elementos meteorológicos e o clima, que influenciam, todos eles, a forma como pensamos e vivemos diariamente as nossas vidas.”
A grande originalidade desta festa e o que lhe tem trazido reconhecimento internacional, segundo Ian Ritchie, “é juntar pessoas comuns com artistas consagrados, e não é só por um ou dois dias”. E explica: “Essa ligação começa muito antes do festival e perdura para lá dele, através de uma plataforma de comunicação que criámos entre todos.”
O músico descreve assim o processo: “Envolvemos as crianças num projecto musical, começamos pela base, pelo chão. Mas de um chão de onde se possa ver as estrelas. As crianças precisam disso. Depois, fazemos com que as estrelas desçam à terra.” Crianças e “estrelas” acabam a tocar juntas na cidade.
Eis os convidados: violinista anglo-sueco Hugo Ticciati, Orquestra de Câmara Portuguesa, duo do pianista João Paulo Esteves da Silva com a cantora/actriz Ana Brandão, trombonista John Kenny e o seu ensemble de metais Pandora’s Box, maestro Pedro Teixeira, a dirigir o grupo vocal Officium Ensemble, e o guitarrista Pedro Jóia com os seus convidados. A organização é da responsabilidade da Associação Festival de Música de Setúbal (A7M) e conta com o apoio da fundação britânica Helen Hamlyn Trust e do Município de Setúbal.
A grande novidade deste ano é a participação da Ensemble Juvenil de Setúbal, uma orquestra inclusiva que ainda não tem um ano de existência, é apoiada pela Fundação Calouste Gulbenkian e junta músicos com formação clássica a outros sem formação musical (percussionistas), integrando ainda jovens com necessidades educativas especiais.
A orquestra vai interpretar peças escritas especialmente para ela por jovens compositores portugueses (Daniel Bernardes e Luís Salgueiro) e do Reino Unido (Dan Stern) e também uma adaptação das Quatro Estações, de Vivaldi, por Sara Ross.
Para Ian Ritchie, este grupo permitiu “subir um degrau na pirâmide de inserção que a música permite”, como disse na sessão de apresentação do festival, na Casa da Cultura, onde estiveram presentes o director da A7M, Óscar Mourão, e o vereador da Cultura, Pedro Pina.
O director artístico, que já foi programador do Festival de Londres, acredita que um projecto de “orquestra democrática” leva a que “os jovens se fortaleçam pela união e relação intergrupos e faz com que brilhem e cresçam”.
Não saber ler partituras
Pedro Condinho, um dos responsáveis pela Ensemble Juvenil de Setúbal (em conjunto com Fernando Molina e Rui Borges Maia), já tinha falado com o PÚBLICO sobre alguns aspectos do funcionamento da orquestra. Um deles foi a necessidade de adaptar as partituras para os miúdos da percussão sem formação musical clássica: “Quando viram as pautas, ficaram em pânico. Diziam para o [Fernando] Molina: ‘Professor, nós não sabemos ler isto’.”
Um sistema de numeração resolveu o problema, “e assim já conseguem situar-se na música e perceber em que momento estão”, explica o músico responsável pelos jovens com necessidades especiais e habituado a fazer adaptações para facilitar a comunicação.
Pedro Condinho diz que da orquestra fazem parte “três pessoas com o espectro do autismo, dois com 22 anos e um com 17, uma rapariga com défice cognitivo, 28 anos, e um menino da APPACDM [Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental], com 15 anos, a nossa mascote”. Em princípio, só aceitariam músicos a partir dos 16 anos, “mas é um miúdo que toca tão bem percussão que decidimos integrá-lo”.
O contrabaixista fala com entusiasmo de um instrumento adaptado para pessoas com necessidades especiais, o skoog. Descrição: um cubo esponjoso, colorido, macio, sem arestas e com umas bolas salientes. Parece um brinquedo e funciona assim: “É uma espécie de sintetizador, em que tu podes escolher, por exemplo, o som de um xilofone ou de um clarinete. Mas apenas um de cada vez.” Qualidades: “Com ele, podemos trabalhar ao mesmo tempo a parte motora e a parte sensorial. E é uma outra forma de aprendizagem da leitura musical.”
No festival do ano passado, ainda antes da formação da Ensemble, foi usado num concerto à beira-rio. “Pusemos uma rapariga que só tinha uma mão e também uma miúda do Conservatório a tocar”, conta o músico. “Resultou muito bem.” Outra característica útil do skoog: “Pode-se regular a sensibilidade do toque, obtendo uma resposta mais ou menos retardada em função das limitações motoras de quem o usa.”
A formação desta orquestra inclusiva tem também outro propósito, “o de integrar comunidades de imigrantes que tocavam música no seu país de origem e que, aqui chegados, a abandonaram. No fundo, queremos dar-lhes e dar-nos a oportunidade de fazer música em conjunto”.
Tocar depois da guerra
O orgulho de Ian Ritchie pela presença de uma orquestra inclusiva advém da sua sempre presente “preocupação social” nos programas que desenvolve. Ao PÚBLICO, recordou o seu trabalho “na Bósnia, com traumatizados da guerra”. Disse ainda que “todas essas experiências, mais de 20 anos em projectos que nos fazem crescer e ser salvos através da música, são aplicadas neste festival”.
Por isso convida toda a gente a assistir a qualquer um dos concertos, já que quis criar um “programa equilibrado, atendendo a diferentes gostos e reflectindo a diversidade cultural da própria região de Setúbal”.
O concerto inaugural, na quinta-feira (dia 28) à noite, espelha bem o espírito dos dias que se vão seguir. No palco do Fórum Municipal Luísa Todi, reúnem-se a Orquestra de Câmara Portuguesa, a Academia de Música de Belas-Artes Luísa Todi e o Conservatório Regional de Setúbal, num concerto dirigido por Hugo Ticciati. O que se vai escutar são As Quatro Estações, de Antonio Vivaldi, e As Quatro Estações de Buenos Aires, com arranjos de Altube e Desyatnikov, do compositor Astor Piazzola.
Na sexta-feira de manhã, a música percorre a cidade. Começa com uma demonstração de percussão no Auditório José Afonso (10h30) e desfila pela avenida até ao Fórum Luísa Todi (11h30).
Para lá da música
Nesta edição, o âmbito do festival extravasa a música, alargando-se a outras áreas culturais, mas mantendo o mote, o clima. Assim, uma parceria com a galeria de arte Casa da Avenida permitirá escutar na sexta-feira à tarde (17h) O Tempo da Douda Correria, poesia dita e lida, com acompanhamento musical por João Paulo Esteves da Silva. Uma performance que tem por cenário a exposição Poética do Tempo, de Graça Pinto Bastos e Maria João Frade.
No fim-de-semana, haverá conversas com o neurocientista António Sampaio Correia e o meteorologista Luís Pessanha sobre a influência do clima no comportamento humano (com apontamentos poéticos de alunos da Escola Secundária D. João II) e também se discutirá a forma como a arquitectura, a climatização e a energia olham para o clima, com Fernando Ziegler, João Frade e Jorge Mendonça e Costa.
Na data de encerramento do festival (31 de Maio), o dia começa no Moinho de Maré da Mourisca, no estuário do Sado, num encontro entre estudantes de ensino artístico e alunos de ensino especial. Respectivamente, do Grupo de Música Contemporânea do Conservatório Setúbal e do Externato Rumo ao Sucesso. O cicerone será o músico inglês John Kenny, com o seu misterioso e milenar instrumento Carnyx, e os maestros e mentores da iniciativa, António Laertes e Pedro Condinho.
Tudo terminará à noite (21h) com o espectáculo Maré Alta, em que participam Pedro Jóia (guitarra), João Frade (acordeão), Norton Daiello (baixo eléctrico) e Ensemble Juvenil (percussão).
Ian Ritchie, que gosta de estar a par dos estudos de neurociências aplicados à música, “com todas as mudanças que imprime nas conexões cerebrais”, diz-se uma pessoa feliz: “Sou feliz porque a música está a fazer a diferença, a mudar a vida de muitos miúdos.” E não tem dúvidas: “Algo que acontece genuinamente e num verdadeiro sentido local torna-se muito mais fácil de internacionalizar.”