Luz deixa de ser Charlie Hebdo, mas será para sempre Charlie
O cartoonista principal do jornal satírico francês atacado por islamistas abandona a publicação em Setembro.
Renald Luzier, que assina como Luz, sobreviveu ao ataque por um capricho do destino: na manhã de 7 de Janeiro atrasou-se a chegar ao jornal. De então para cá, assegurou a maioria das primeiras páginas, tornando-se um símbolo da determinação e resiliência da redacção. Mas depois de meses de trabalho sem os seus colegas, Luz concluiu não ter condições para continuar: numa entrevista ao Libération – que acolheu o Charlie Hebdo nas suas instalações –, anunciou que deixará o jornal satírico em Setembro. “Por razões muito pessoais”, explicou, “para poder reconstruir-me e recuperar o controlo sobre mim mesmo”.
“É muito difícil, é um peso demasiado pesado para carregar sozinho. Para mim, fechar cada nova edição tornou-se uma tortura, porque nenhum dos meus colegas está aqui comigo. Passo noites seguidas sem dormir a convocar os desaparecidos, a perguntar-me o que será que Charb, Cabu Honoré, Tignous, teriam feito… é esgotante demais para aguentar”, confessou o cartoonista de 43 anos, que entrou no Charlie em 1992.
Em Abril, Luz disse que não voltaria a desenhar o profeta Maomé. “Já não me interessa.” A representação da imagem do profeta é considerada uma blasfémia para os muçulmanos – o facto de o Charlie Hebdo frequentemente publicar paródias com as crenças do islão foi um dos motivos apontados para a acção terrorista contra o jornal.
Na mesma entrevista, Luz explica que desde os atentados sente mais do que nunca a necessidade de desenhar. Esta quarta-feira, publica um “diário de bordo” em banda-desenhada, intitulado “Catharsis”, o seu relato sobre a vida quotidiana depois do massacre. “Pela primeira vez, não tinha medo de encarar uma página em branco. Em minha casa, olhava o papel e dizia: agarra o teu pincel, tudo é possível”.
Luz desmentiu que a sua saída do Charlie Hebdo esteja relacionada com os episódios de tensão e divergências internas que têm sido reportados em França, e alimentam as especulações sobre o futuro do projecto satírico. “Não tem nada a ver com isso”, garante, sem pôr em causa a viabilidade da publicação, quer do ponto de vista editorial quanto económico. “Vou deixar de ser Charlie Hebdo, mas serei para sempre Charlie”, garantiu.
Segundo a imprensa francesa, as divisões entre o pessoal têm a ver com a direcção editorial e a gestão do jornal, com alguns a criticarem a falta de transparência dos novos proprietários: depois do ataque, a empresa passou a ser detida pela família do antigo director Stéphane Charbonnier (Charb), assassinado em Janeiro (40%), pelo actual director Riss (40%) e por Eric Portheault, o director financeiro (20%).
Desde o início do ano, as receitas do Charlie Hebdo, que antes do atentado se debatia com graves problemas financeiros, já ultrapassaram os 12 milhões de euros, em donativos e vendas. Segundo a Radio France Internationale, os accionistas decidiram que os mais de quatro milhões de euros resultantes de doações seriam distribuídos pelas famílias das vítimas.
No início do mês, o Charlie Hebdo instaurou um processo disciplinar contra a jornalista Zineb El Rhazoui, uma socióloga franco-marroquina conhecida pelas suas críticas ao Ramadão e outras tradições do islão, contratada em 2011 na sequência da chamada Primavera Árabe. Segundo a própria, a medida foi tomada por causa das suas críticas à gestão, e ao facto de integrar o grupo de 15 dos 20 funcionários, entre os quais Luz, que exigem que o capital seja dividido em partes iguais por todos. Um porta-voz disse que o processo resultava “de uma série de incidentes relativos às suas obrigações para com o empregador”.
A notícia gerou uma onda de indignação e de protesto, com debates na imprensa e nas redes sociais a denunciar a “hipocrisia” do Charlie Hebdo. A contribuir para a polémica, esteve a atribuição de um prémio para a liberdade de expressão na PEN Literary Gala de Nova Iorque – a decisão levou 175 autores famosos a boicotar a cerimónia por causa do que entendem ser “a intolerância cultural” do Charlie Hebdo. “Ameaçam jornalistas mas ganham prémios de liberdade, que paradoxo”, criticou o médico Patrick Pelloux, um antigo colaborador do Charlie Hebdo, em declarações ao Le Monde.
Cartoonistas perseguidos
De acordo com um relatório do Comité para a Protecção dos Jornalistas (CPJ) divulgado nesta terça-feira, não existe qualquer diferença entre os jornalistas da imprensa, de meios audiovisuais ou dos cartoonistas no que se refere à censura, perseguição ou ameaças a que estão sujeitos quando o seu trabalho aborda temas “sensíveis” ou controversos – da religião à política.
Aliás, o relatório diz que pelo facto de os cartoonistas “comunicarem ideias complexas de uma forma que é acessível e compreensível para todas as ameaças”, estão particularmente em risco de acções retaliatórias ou violentas. Casos como o do Charlie Hebdo, atacado pelos irmãos Saïd e Cherif Kouachi, em Janeiro, são obviamente uma excepção, mas o CPJ assinala muitas situações de ameaças à morte por grupos militantes ou detenções arbitrárias por regimes autoritários, que forçaram vários profissionais ao exílio ou ao abandono da actividade.