Branco sobre azul
Ainda que visto ao longe, é já um ícone incontornável na paisagem arquitectónica da marginal Matosinhos-Porto. Um óvni, um botão de rosa branco, um rolo de papel desfolhado sobre o mar, um peixe fora de água?... “Quem dera que fosse um peixe ou uma ave; mas nós, humanos, fazemos coisas bem mais rudes”, diz o arquitecto do novo terminal de passageiros do Porto de Leixões, Luís Pedro Silva.
Por agora, é ainda de automóvel que acedemos ao novo terminal de cruzeiros, para visitarmos a nova estação de passageiros, cuja inauguração foi inicialmente anunciada para o dia 20 de Maio, mas entretanto adiada e transferida para uma data ainda a anunciar. No futuro, esse acesso passará a ser feito por uma entrada mais a Sul, que será transformada em passeio público com ligação directa à malha urbana de Matosinhos – e, quem sabe, talvez se possa mesmo chegar lá num velho eléctrico, a ligar este novo porto turístico à Ribeira portuense.
A pouco mais de uma semana da inauguração do novo edifício, o Ípsilon visitou-o guiado pelo arquitecto que o desenhou, Luís Pedro Silva (Oliveira de Azeméis, 1971), uma figura pouco conhecida da Escola do Porto, tão discreta que quase parece pedir desculpa por ter assinado uma obra ainda distante da vista, mas com inegável impacto no recorte da marginal de Matosinhos.
Acedemos à nova estação seguindo a rua junto ao Molhe Sul, que, num futuro que a Administração dos Portos do Douro e Leixões (APDL), a dona da obra, aponta para o final do próximo ano – e que o arquitecto espera ver efectivamente concretizado, pois trata-se de “um arruamento decisivo para o usufruto do edifício em plenitude” –, servirá como passeio público colectivo, com um percurso pedonal paralelo à cota alta.
Depois de passarmos por baixo de um pórtico, o edifício que quase parece um botão de rosa branco, sempre a espelhar o azul do mar e a cor do céu, ergue-se como um rolo de papel a desfolhar-se em superfícies lisas, transparências e mangas de acolhimento de visitantes e passageiros.
Há quem lhe chame um óvni – e a associação com o “meteorito” Casa da Música surge sempre como inevitável –, ou então um peixe fora de água . Mas, apesar de lembrar que a sua obra custou apenas cerca de um quinto da de Rem Koolhaas, Luís Pedro Silva contorna a questão dizendo não ver a arquitectura como “um problema de autoria”, mas antes de “resposta a um conjunto de circunstâncias”, que começam no cliente e no programa e passam pelo lugar e pelo contexto. “A arquitectura é a síntese destes vários factores, que depende mais da pergunta que eles fazem do que do modo como se lhes responde”, diz este arquitecto, mestre em Planeamento e Projecto do Ambiente Urbano pelas faculdades de Arquitectura e Engenharia da Universidade do Porto (UP).
Mas não lhe desagrada a associação à imagem de um óvni ou de um peixe. “Quem dera que soubéssemos desenhar organismos assim: um peixe ou uma ave – seria uma delícia! Mas nós, humanos, fazemos coisas bem mais rudes."
Entre o fechado e o aberto
O convite a Luís Pedro Silva para projectar a nova estação de passageiros do porto de Leixões surgiu naturalmente depois de o arquitecto ter integrado a equipa da empresa que, em 2003-04, foi escolhida pela APDL para definir o novo plano estratégico para este lugar. O objectivo então estipulado foi "ligar o desenvolvimento comercial e a aposta no turismo marítimo com a socialização do porto”, nota o arquitecto. A primeira etapa – que seria concluída em Abril de 2011 – foi a construção de um novo cais de acostagem, que foi já projectado por si. Seguir-se-iam um porto de recreio equipado com uma doca seca – actualmente ainda em fase de acabamentos – e depois a nova estação de passageiros.
Luís Pedro Silva, que iniciou a carreira com pequenas obras na sua terra natal – a remodelação de uma moradia e um arranjo urbanístico –, explica que a sua preocupação primeira foi “juntar toda a informação crítica” que permitisse que o novo empreendimento fosse “eficaz e ficasse ao serviço tanto do Porto de Leixões como da comunidade”. O desenho inicial do edifício surgiu em 2006, mas o arquitecto diz que não tem “nada de transcendente”. “Temos um braço que vem ao navio, outro que vai à curva do molhe, outro que leva à cidade e depois outro que cai dentro do edifício”, descreve, para explicar que o seu projecto resultou da “síntese destes movimentos e fluxos”.
E havia que responder às questões práticas. “Tinha de haver uma cobertura para abrigar as pessoas, uma parede para suportar uma rampa, uma pala para abrigar os autocarros... Esses elementos vêm mais ou menos laminados e, quando chegam aqui, não se descaracterizam – levam a que as formas, e aquilo que se lê entre o fechado e o aberto, seja assim mesmo”, explica Luís Pedro Silva, à entrada da estação.
Empatia
Num primeiro momento, imaginou-se que a estação de passageiros pudesse incluir uma área comercial e um espaço de restauração para mais facilmente atrair a atenção dos habitantes da área metropolitana contígua, complementarmente ao fluxo de turistas. Acabaria por ser a UP a assumir uma parceria com a APDL para aí instalar o seu Centro Interdisciplinar de Investigação Marinha e Ambiental (Ciimar), também conhecido como Pólo do Mar, actualmente com departamentos entre o Porto e Matosinhos – esta decisão viria a facilitar a candidatura aos dinheiros comunitários, tendo os custos globais, orçados em pouco mais de 50 milhões de euros, sido divididos em partes iguais com a APDL.
A estação de passageiros estratifica-se em oito pisos, construídos sobre estacas. O mais próximo do fundo do mar (cerca de dois metros abaixo do nível da água) é a cave, que acolhe um biotério do Ciimar (um aquário com animais e algas), um parque de estacionamento (90 lugares), uma área técnica e equipamentos de apoio ao porto de recreio. O piso ao nível do solo abre-se num átrio amplo, com um espelho de água ao centro e integralmente iluminado por luz natural, a partir do qual o edifício sobe em espiral – que inclui mesmo uma rampa até à cobertura. Este é o piso da recepção aos visitantes, com um balcão em granito, que contrasta com o revestimento geral em pequenos módulos de cerâmica branca, fabricados em Aveiro. O piso acima é a sala de embarque, com os obrigatórios serviços de check-in, alfândega, fronteira e também uma sala de espera com cafetaria. Daqui, os turistas têm uma ligação directa tanto aos navios como aos autocarros que os esperam no parque exterior – na última informação divulgada, a APDL aponta para uma expectativa de 125 mil passageiros só até final do corrente ano.
Os pisos 2 e 3, bem como os mezaninos que duplicam o seu espaço, estão quase integralmente afectos aos serviços do Pólo do Mar, com quase uma centena de salas e gabinetes que deverão acolher três centenas de pessoas ligadas ao trabalho e à investigação em áreas como a oceanografia, a microbiologia, a nutrição, a ecofisiologia, a toxicologia, a robótica, etc… Cada um dos gabinetes responde às exigências específicas do seu ocupante – explica Luís Pedro Silva –, mas “mantendo uma matriz comum” na organização do espaço.
O piso 3, na face virada ao Atlântico, ostenta um dos espaços mais arrojados da construção, com uma parede inclinada de 14 metros a abrir para uma vista única sobre o oceano. Aqui fica a galeria de divulgação científica, apoiada por uma pequena Sala de Actos (um auditório revestido a veludo azul, equipado com uma régie e máquinas de projecção), mas que pode acolher os eventos mais diversos – e que será partilhado pela UP e pela APDL. Um pequeno restaurante, também em dois níveis, completa a oferta deste piso, a partir do qual se pode sair novamente para a rampa exterior que leva à cobertura. Aqui, uma bancada, resguardada da nortada e que pode acolher até 1.800 pessoas, proporciona também uma vista fantástica sobre a costa urbana.
“Espero que a obra seja bem acolhida, bem usufruída, que sirva quem cá esteja dentro e quem cá venha”, diz Luís Pedro Silva, não iludindo, contudo, algum inconformismo relativamente ao estado final do seu projecto. “Satisfação é uma coisa sempre transitória na vida”, diz, respondendo à questão sobre se o resultado agora visível corresponde ao que tinha idealizado. “Hoje em dia, as questões económicas sobrepõem-se a essa empatia com o que se faz, e o resultado é o reflexo disso. Quando dependemos de equipas, por esses factores sempre exteriores ao trabalho, acabamos por chegar a resultados que são bastante menos consistentes do que poderiam ser”, acrescenta numa espécie de desabafo, a que não terão sido estranhos os constrangimentos de uma gestão orçamental que o obrigou a baixar em cerca de três milhões de euros (de 28 para 25) o montante inicialmente previsto.
Apetece regressar a Pessoa/Álvaro de Campos e à Ode marítima: “Tudo isto hoje é como sempre foi, mas há o comércio;/ E o destino comercial dos grandes vapores/ Envaidece-me da minha época!”.