Sinais de vida do melhor cinema no concurso do IndieLisboa 2015
A 12.ª edição do festival lisboeta teve uma das melhores selecções competitivas de sempre. Balanço de um certame que termina este domingo com o anúncio dos premiados.
Não estamos muito distantes da tendência de ler as escolhas de programação de um festival de cinema como um adivinho o faria, à procura dos segredos, dos significados ou dos percursos ocultos nas entrelinhas – como se a programação fosse um desafio que o observador tivesse de resolver. A verdade é que as coisas não são assim tão pensadas: o que realmente faz um “bom ano” de uma competição é tão obra do acaso (ou seja, dos filmes que existem nesse ano) como das mãos dos programadores (ou seja, da escolha que fazem por entre esses filmes).
Falar do concurso do IndieLisboa em 2015, que termina este domingo com o anúncio do palmarés numa cerimónia oficial ao fim da tarde, é por isso falar de uma excelente colheita, talvez a melhor de sempre do festival, com mais de metade dos onze títulos escolhidos para a competição internacional bastante acima da média. Mas é também perguntar se essa escolha de filmes representa mais alguma coisa para lá da ideia de “um bom ano”.
Há uma armadilha inerente: o Indie parece ter atingido o ponto em que os filmes a concurso parecem corresponder a uma “grelha” ou a um “caderno de encargos” - um documentário, um filme-ensaio de artista, um filme iraniano, um romeno, um brasileiro, um filme de uma cinematografia obscura, um filme da América Latina, um independente americano feito por tuta e meia...Mas também é verdade que os melhores filmes do concurso subvertem abertamente essas gavetas, expressando uma visão pessoal de cineasta que se alimenta desses modelos mas os explora de outras maneiras.
Listen Up Philip de Alex Ross Perry é menos uma comédia negra sobre o egoísmo do que a continuação do olhar de um cineasta sobre gente desagradável; Une jeunesse allemande, de Jean-Gabriel Périot, é menos um documentário sobre a geração de cineastas e pensadores alemães que cresceu nos anos 1960 do que o prosseguimento do trabalho do realizador francês com a manipulação de materiais de arquivo para questionar o mundo em que vivemos.
Claro que essa personalidade de realizador não é forçosamente incompatível com um filme “pensado” para agradar – Melbourne do iraniano Nima Javidi é, ao mesmo tempo, um drama de câmara bem gerido e uma evidente colagem a um novo modelo de cinema iraniano pós-Kiarostami, corporizado no sucesso internacional de Asghar Farhadi e da sua Separação. O problema é que essa coexistência acorda o cínico que há no observador, ao ponto de a frescura de Güeros, do mexicano Alonso Ruizpalacios, e de Ela Volta na Quinta, do brasileiro André Novais Oliveira, ou da melancolia de Christmas, Again, do americano Charles Poekel, serem num primeiro momento vistas com desconfiança, antes de se revelarem como muito mais inteligentes.
Estes são filmes que se inscrevem também eles numa lógica de género (a entrada na idade adulta, a narrativa familiar, a crise pessoal), mas que a convocam de modo pessoal, inteligente e abertamente fora do baralho. As suas referências não são usadas como modelo reproduzido cegamente mas, precisamente, apenas como referências norteadoras.
O que também leva a outra questão: um festival reforça os lugares-comuns ou transcende-os? Não é uma pergunta levantada exclusivamente pelo Indie, mas é uma questão à qual os festivais “de classe B”, como o certame lisboeta, parecem ser mais vulneráveis, por lhes ser mais difícil obter aqueles exclusivos com que qualquer festival sonha, e pela proliferação cada vez mais visível de um determinado tipo de filme que parece apenas viajar no circuito de festivais.
Isso sentiu-se este ano, por exemplo, com Koza, do eslovaco Ivan Ostrochovsky, Sivas, do turco Kaan Müjdeci, ou Quand je ne dors pas, do francês Tommy Weber. Apesar das suas qualidades intrínsecas, são títulos que parecem condenados, pelo seu tema, pela sua dificuldade em trazerem algo de original, ou pelas circunstâncias de produção e distribuição das suas cinematografias, a não existir fora das exibições em festivais.
É uma questão que parece estar no centro das dificuldades de uma competição nacional condenada pelas circunstâncias a ter de se contentar com “o que há”. Num momento em que a produção local continua a desenrascar-se como pode, é perfeitamente compreensível que um cineasta português com currículo prefira a exposição internacional garantida por Cannes ou Berlim a estrear num festival mais pequeno que não tem o mesmo impacto. Mas a verdade é que, ao fim de 12 anos, ainda o Indie não se conseguiu impôr como “primeira escolha” para o cinema português, e por motivos que não são exclusivamente de sua responsabilidade – antes de uma produção intermitente e de um circuito de exibição e distribuição que pouco pensa “fora da caixa”, numa pescadinha de rabo na boca que parece não ter solução à vista.
É pena, porque este ano há um filme que está ao nível do concurso internacional - o notável documentário de Catarina Mourão A Toca do Lobo, espantoso exercício de memória que desenha uma transversal do Portugal pré-1974 através dos não-ditos da própria família da realizadora, ao mesmo tempo clássico na sua adesão aos ritmos do documentário e moderno na maneira como os trabalha de modo profundamente pessoal. Só que, num país onde o melhor cinema (qualquer que seja a sua origem) tem cada vez menos espaço nas salas (e, quando o tem, só a espaços consegue encontrar público), um festival como este ganha uma dimensão adicional, de “escapatória” ou “escoamento” para obras que de outro modo não chegariam até nós – mas que, numa ironia inescapável, dificilmente vão existir fora dele.
Basta pensar, por exemplo, em dois dos filmes portugueses mais interessantes exibidos a concurso no Indie, Balaou de Gonçalo Tocha (2007) e Guerra Civil de Pedro Caldas (2010). O primeiro apenas viu edição em DVD anos mais tarde, depois de É na Terra Não é na Lua se ter tornado numa sensação internacional; o segundo continua até hoje preso num limbo legal sem hipótese de ter exibição comercial.
Seja como for, é nisso que o Indie faz todo o sentido: como uma celebração do cinema enquanto expressão artística que transcende gavetas e catalogações, como manifestação de resistência à massificação, como porta-estandarte de uma maneira de pensar o cinema e a cultura independente da dimensão funcional. E o facto da selecção competitiva de 2015 ter sido uma das melhores de que nos lembramos em 12 anos de festival quer dizer que, afinal, ainda há espaço para a surpresa e para a descoberta.