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Doação de órgãos, um gesto de amor

A decisão de doar um órgão em vida, sendo a dádiva de rim a mais comum, exige do dador um sentido de solidariedade e de ajuda levado ao extremo de dispor de parte do seu corpo. É um ato humanitário de intrínseco valor ético. Vale a pena recordar, a este propósito, as palavras do Papa Bento XVI, proferidas no âmbito do Congresso Internacional de 2008 sobre o tema da doação de órgãos, Numa época como a nossa, com frequência marcada por diversas formas de egoísmo, torna-se cada vez mais urgente compreender quanto é determinante para uma correcta concepção da vida entrar na lógica da gratuidade. De facto, existe uma responsabilidade do amor e da caridade que compromete a fazer da própria vida uma doação aos outros, se quisermos verdadeiramente realizar-nos a nós próprios. (cf. Lc 9, 24). A transplantação é, hoje, reconhecidamente, o milagre da medicina do séc. XX e Portugal está ao nível do que de melhor se faz no mundo nesta área. Um sinal de esperança para todos os doentes cuja vida ou qualidade de vida dependem deste tratamento.

Apesar disso, continua a haver muitos doentes em lista de espera a aguardar transplante porque em todo o mundo a procura de órgãos excede o número de órgãos disponíveis. Muitos doentes acabam por morrer enquanto esperam por um órgão disponível de dador cadáver. O tempo de espera para o transplante renal é, em média de 5 anos. A escassez de órgãos é um problema universal e tende a agravar-se prevendo-se que nos próximos anos a procura de órgãos cresça devido ao aumento da sobrevivência e ao envelhecimento da população.

A doação em vida sendo a ultima ratio, pois, só é possível quando não esteja disponível um órgão de dador cadáver, é um tratamento alternativo muito importante para dar resposta às necessidades dos doentes e ultrapassar o problema da escassez de órgãos. O transplante com dador vivo garante melhores resultados em termos de sobrevida do doente e sobrevida do enxerto, sendo cada vez mais utilizado, principalmente para o tratamento da insuficiência renal terminal.

A doação em vida não só permite ao doente beneficiar de um órgão de melhor qualidade como libertar um lugar na lista de espera para que outra pessoa possa receber um órgão de uma pessoa falecida. Em Portugal, embora desde 1983 a doação em vida tenha aumentado significativamente, em particular em 2009, ano em que se atingiu uma taxa de 6 transplantes por milhão de habitante, a mais alta de sempre, o transplante com dador vivo está ainda bastante longe da mediana europeia, de 7,8 em 2013, Portugal teve neste ano uma taxa de 4,8 transplantes por milhão de habitante, e dos EUA onde cerca de 50% dos transplantes renais são de dador vivo.

Muitos passos têm sido dados no sentido de melhorar as hipóteses dos doentes no acesso à transplantação com dador vivo, tendo sido determinantes as alterações legislativas introduzidas pela Lei n.º 22/2007, de 29 de Junho, que passou a admitir a possibilidade de doação em vida independentemente de haver relação de consanguinidade, até então só admitida entre pessoas até ao 3.º grau de parentesco. Hoje em dia já é possível doar um órgão ao marido ou à mulher ou a um amigo. Esta lei foi de tal modo importante que de imediato foi sentido o seu impacto no índice de doação obtido. No ano seguinte à sua aplicação, em 2008, permitiu resolver o problema a 7 doentes, registando-se dois máximos, nomeadamente em 2010 com 21 casos de doentes que foram transplantados ao abrigo desta lei, e em 2012 com 28 casos.

Recentemente foi, também, aprovada outra medida legislativa, que visa assegurar ao dador vivo o direito a receber uma compensação estritamente limitada a cobrir as despesas e a perda de rendimentos relacionados com a doação. Trata-se do Despacho n.º 2055/2015, de 26 de Fevereiro, do Ministério da Saúde, que estabelece as condições de atribuição aos dadores vivos dos montantes compensatórios correspondentes a deslocações, alimentação, alojamento, medicamentos, e perda de rendimentos decorrentes da dádiva. O reembolso destas despesas deve, de acordo com o referido despacho, ser feito rapidamente, no prazo máximo de 30 dias pelo hospital onde foi efetuada a dádiva. Outros passos estão a ser dados para a protecção do dador vivo.

O Instituto Português do Sangue e da Transplantação, IP, entregou recentemente ao Ministério da Saúde uma proposta de Decreto-Lei que visa estabelecer as prestações a que o dador vivo terá direito em caso de morte, invalidez definitiva ou de internamento hospitalar decorrente de complicações do processo de dádiva e colheita.

Esta proposta contempla, ainda, o seguro de vida obrigatório do dador vivo de órgãos que os estabelecimentos hospitalares responsáveis por assegurar as referidas prestações devem celebrar para garantia das mesmas. Uma das prestações que se pretende garantir aos dadores é um capital mínimo em caso de morte ou de invalidez definitiva decorrente do processo de dádiva. Pese embora o baixo risco associado à doação em vida dado só serem aceites como dadores pessoas com estado de saúde considerado bom ou excelente comprovado através de um rigoroso protocolo clínico de selecção e as estatísticas indicarem que os dadores vivos vivem mais tempo e com melhor saúde do que a população em geral, comparando grupos etários, a verdade é que não podemos ignorar que há risco, ainda que mínimo.

Pretende-se com esta proposta de decreto-lei resolver um problema que há muito preocupava não só as pessoas que se disponibilizam para a dádiva em vida, mas também os próprios doentes àqueles ligados afectivamente e os médicos que acompanham todo o processo de dádiva. Até agora os dadores vivos só tinham a palavra do médico como garantia, não havendo uma lei que lhes assegurasse uma compensação imediata em caso de morte ou invalidez relacionados com a dádiva e colheita de um órgão.

É certo que são precisas boas leis para garantir uma protecção eficaz e plena dos dadores vivos mas também é certo que elas não são suficientes para por si só aumentarem a doação em vida. Onde estamos a falhar, então? Seremos nós, portugueses, menos solidários que os cidadãos dos outros Países, por exemplo, os Espanhóis, aqui tão próximos, que tem uma taxa de doação em vida muito superior à nossa? Não creio. O povo que somos é por tradição solidário. O que falta é mais consciencialização social, a necessidade de um transplante pode bater-nos à porta quando menos esperamos. É preciso aumentar o nível de informação sobre a doação em vida, sobre os seus importantes benefícios terapêuticos, desenvolver mais campanhas de sensibilização, e aumentar o nível de esclarecimento junto das famílias dos doentes que são os seus principais potenciais dadores. É necessário desmistificar o tema da doação em vida, combater os receios, os medos.

Se alguém que nos é próximo necessita de um rim para viver melhor e nós temos dois rins, porque não ajudar dispondo de um?

Podemos viver apenas com um rim e está comprovado que os dadores por serem mais acompanhados do ponto de vista médico vivem até mais anos do que os não dadores. Mas igualmente importante é libertar o doente desse constrangimento enorme que é encontrar no seio das suas relações afectivas alguém que esteja disposto a doar-lhe um órgão. Esta abordagem direta do doente aos seus familiares e amigos pode, nalgumas situações, criar conflitos, pois, certamente, não será fácil para quem necessita de um transplante e está em sofrimento lidar com uma eventual recusa de alguém que lhe é próximo. Muitos doentes inibem-se de falar e pedir um órgão à família. Daí que, para o aumento da doação em vida, me parece essencial que esta abordagem seja feita por um porta-voz escolhido pelo doente que pudesse de uma forma sigilosa abordar a sua família para tentar encontrar um possível dador. A criação de um curador do dador vivo, alguém que pudesse acompanhar todo o processo de dádiva e colheita em articulação com as unidades de transplantação, responsável por ajudar os doentes a encontrar o porta-voz mais adequado a cada circunstância e por estabelecer os contactos com a família do doente, é outra das medidas que se encontra a ser desenvolvida pela Coordenação Nacional da Transplantação do Instituto Português do Sangue e da Transplantação.

Jurista especialista da Coordenação Nacional da Transplantação do IPST, IP

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