A relação entre a Colômbia e García Márquez? É complicado
Homenageado na Feira Internacional do Livro de Bogotá, um ano depois da sua morte, Gabo, “el único Nobel”, é para os colombianos motivo de orgulho mas também ressentimento
Ao contrário dos anos anteriores, a feira, conhecida como FILBo, não tem um país-convidado (Portugal foi-o em 2013). Ou, pelo menos, um país-convidado que seja real. Numa homenagem ao universo literário de García Márquez, Macondo, o lugarejo de casas de barro e cana do coronel Aureliano Buendía e de toda a sua prole em Cem Anos de Solidão, é o protagonista desta edição.
O que se traduz num pavilhão central com três mil metros quadrados, onde os visitantes se acotovelam para ver o bigodinho circunflexo de um Errol Flynn crioulo (Gabo aos 21) ou uma bananeira aprisionada dentro de um espelho caleidoscópico. Meninas de braço dado em traje de colégio, casais com carrinhos de bebé, pensionistas, crianças, garotas de canudos rasta, comitivas de fato e gravata: o país inteiro parece estar a passar por Macondo, numa demonstração de unanimidade e reconhecimento de um património colectivo.
Mas a relação dos colombianos com o seu Nobel da Literatura é mais ambivalente do que idolatrada. “Admiramo-lo muito. Ganhou o Nobel. É um orgulho para a Colômbia”, diz Silvia, uma pensionista, enquanto visita a exposição dedicada a Macondo. “No entanto, ele estava afastado da Colômbia, da sua pátria. Em contrapartida, amava o México – aí viveu e morreu.”
Gabriel García Márquez morreu no México, onde escreveu Cem Anos de Solidão, onde nasceu o seu segundo filho, Gonzalo, onde perseguiu o sonho de se dedicar ao cinema, e onde se exilou em 1981, depois de tomar conhecimento de que o Governo conservador de Julio César Turbay se preparava para o deter e interrogar por suspeitar de que o escritor teria ligações ao M-19, o segundo maior grupo de guerrilha colombiano depois das FARC.
Quando Gabo morreu, criou-se a expectativa na Colômbia de que os seus restos mortais viriam para o seu país de origem. O presidente da câmara de Aracataca, a aldeia nortenha onde o escritor nasceu e que inspirou a Macondo de Cem Anos de Solidão, anunciou que as cinzas deveriam ser trazidas e depositadas ali. Mas nem depois de morto, o escritor saiu do México.
E até hoje, ao que parece, há entre os colombianos ressentimento por Gabo ter vivido tanto tempo fora do seu país.
“Mas é uma tontería”, atalha Conrado Zuluaga, um dos maiores especialistas em Gabriel García Márquez. “Quando García Márquez saía à rua no México, as pessoas reconheciam-no, mas deixavam-no em paz. Aqui não. Ele veio uma vez a esta feira. E a multidão entupiu o stand. Mas não era uma multidão de admiradores fervorosos. Era uma multidão de lagartos. De gente que queria que ele autografasse um papel – não um livro, mas um papel. Ou que escrevesse uma carta de recomendação. Ou que fosse a um almoço com um senador. À noite teria cinco cocktails... E a que horas trabalhava?”
Uma das recriminações que se ouviam com mais frequência na Colômbia sobre Gabo é o facto de, “sendo ele tão famoso e tendo tanto dinheiro”, aponta Zuluaga, “nunca ter construído o aqueduto de água potável em Aracataca”. A terra natal do Nobel carece de água potável permanente porque diversos projectos para renovar um velho aqueduto nunca avançaram.
“Na Colômbia, isso acontece muito: quando um escritor ou alguém se converte numa personalidade pública, deve fazer o trabalho que supostamente caberia ao governo civil. É uma tradição nossa”, diz Mario Jursich, director da revista de cultura El Malpensante.
Outro motivo de incómodo para muita gente num país onde a direita tem tido o monopólio da governação: García Márquez sempre foi de esquerda. Ao contrário de boa parte da América Latina, onde a esquerda chegou ao poder nos últimos anos, por via das urnas, na Colômbia a esquerda civil tem tido pouca margem de acção no espaço público por causa dos movimentos de guerrilha, a esquerda armada.
García Márquez “nunca ocultou a sua relação com Fidel Castro”, nota Mario Jursich. “Recriminam-lhe que nunca tenha feito declarações públicas contra a ditadura cubana, que tenha sido cúmplice dela. Muitos continuam a pensar que ele estava secretamente associado a grupos guerrilheiros.”
Mas lêem-no?
Conrado Zuluaga disse-o publicamente noutro dia: o lugar onde menos se lê García Márquez é a Colômbia. Pode ter sido uma daquelas frases para abanar o politicamente correcto – Zuluaga é um sexagenário irreverente. Gabo é leitura obrigatória no sistema escolar colombiano. E o pavilhão de Macondo, onde Zuluaga moderou um debate na véspera, está cheio de público.
“Ah, sim, mas isso é porque os colombianos adoram parques temáticos”, diz. “Não se deixe desconcertar por isso. Se fosse o Peru ou qualquer país, a fila iria até à entrada. Toda a gente tem em sua casa García Márquez, por supuesto. Mas quantos o lêem? Isso é outra história.”
A verdade é que até agora – até à hora da sua morte – era difícil encontrar os livros do Nobel nas livrarias colombianas. Em 2011 a Editorial Norma, que publicava os livros de García Márquez na Colômbia, mudou o seu modelo comercial, abandonando os livros de ficção para se concentrar em livros escolares. Apesar de conservar os direitos de publicação de García Márquez, a Norma privilegiava apenas os títulos que faziam parte dos programas escolares e negligenciando os outros. Simultaneamente, passou a trabalhar exclusivamente com grandes superfícies, praticando margens que eram proibitivas para as livrarias independentes.
“Um turista norte-americano ou europeu que chegasse aqui quisesse Cem Anos de Solidão em espanhol, não encontrava o livro”, conta Conrado Zuluaga. Alguns livreiros encomendavam Cem Anos de Solidão na Amazon. Outros pediam a amigos que lhes trouxessem exemplares das suas viagens.
O panorama mudou em Novembro do ano passado, quando a Penguin Random House adquiriu os direitos de publicação de García Marquéz na Colômbia. É a primeira vez que toda a obra do escritor está editada em versão de capa mole, de bolso e de capa dura, nota Zuluaga.
O que quer dizer que a morte “sossega algumas coisas”, como refere Mario Jursich.
“Há quem defenda que se devia comprar a casa de García Marquéz em Cartagena e fazer um museu. Para quê? O melhor sítio onde pode estar é na memória das pessoas. Não precisa de uma casa, nem de uma estátua. Ainda para mais, ele detestava essas coisas”, defende Conrado Zuluaga, de quem Gabo disse uma vez “este senhor sabe mais de mim que eu mesmo”.
Talvez agora possa haver uma relação mais cordial entre a Colômbia e Gabo, espera Mario Jursich.
“Ele já morreu, já não pode fazer nada, já não pode construir aquedutos, já não pode pôr água potável. Pode ser o início de uma nova etapa. Uma nova etapa em que irão surgir coisas novas ou menos conhecidas. Suponho, por exemplo, que em algum momento se publicará a correspondência de García Marquéz. Sei que há um livro inédito que ele não conseguiu terminar. Ele deu montes de entrevistas, muitas delas geniais – em algum momento teremos volumes de entrevistas. Creio que isso pode mudar o retrato.”
O PÚBLICO viajou a convite da agência Invest In Bogotá e da Embaixada de Portugal em Bogotá