Na década de 1990, algumas obras de fôlego procuraram dar sentido ao século que acabava. Francis Fukuyama, em O Fim da História e o Último Homem (1992, tradução portuguesa na Gradiva) argumentou que, com a queda do Muro de Berlim e o triunfo da democracia liberal, se assistia à homogeneização do mundo global, no qual os Estados deixariam de encontrar razões para a guerra. Poucos anos depois, Samuel P. Huntington, em O Choque das Civilizações e a Mudança na Ordem Mundial (1996, tradução na Gradiva), viu na globalização uma força geradora de conflitos e não de consensos. A homogeneização, de que falava Fukuyama, dizia apenas respeito ao comportamento das elites minoritárias. Por isso, a difusão dos valores ocidentais, associados à democracia liberal, só poderia promover resistências e choques. Enfim, segundo Huntington, melhor seria que os EUA seguissem uma política mais isolacionista, que pudesse evitar o choque das civilizações.
Ao lado de tais debates, promovidos no interior de uma ciência política em ascensão, alguns livros de história tentaram outros caminhos. O mais importante, no desencadear de uma série de debates de larga repercussão, foi A Era dos Extremos: História Breve do Século XX (1918-1991) (1994, tradução na Presença), da autoria do historiador marxista britânico Eric Hobsbawm. Nele, os acontecimentos-chave correspondem à seguinte sequência e transformaram-se num padrão utilizados por outros historiadores: final da Grande Guerra, Revolução Russa de 1917, recessão ou depressão, ascensão nazi na Alemanha e impacto da Segunda Guerra, a rivalidade nuclear entre os dois grandes blocos e as décadas da Guerra Fria. Hobsbawm viu o fim do comunismo como uma tragédia, pois considerava que com ele deixavam de existir alternativas válidas, no sentido da criação de uma sociedade mais justa e igualitária. Não escondeu, também, que o comunismo tinha sido uma das principais trincheiras de combate aos totalitarismos fascistas e ao capitalismo em geral.
Em 1998, Marc Mazower entrou pela porta grande dos referidos debates, quando publicou The Dark Continent, traduzido agora como O Continente das Trevas: O Século XX na Europa. Nele, equipara o comunismo a um tipo de totalitarismo, embora insista mais nas crueldades perpetradas pelo fascismo e pelo nazismo, com o seu modelo de Estado autoritário. Talvez o faça por considerar que “o impacto do comunismo na democracia — por muito importante que tenha sido — foi em geral mais indirecto e menos ameaçador do que o desafio representado por Hitler”. Mas não é só no diálogo crítico que mantém com Hobsbawm que Mazower desenvolve os seus argumentos. É também através de uma crítica acerca das perspectivas da democracia liberal, mobilizadas de forma optimista e pessimista, respectivamente, por Fukuyama e Huntington, que Mazower desenvolve, analítica e historicamente, as suas interpretações da Europa no século XX.
Assim, o livro em causa pode ser lido como uma ampla discussão do mito historiográfico do liberalismo aplicado ao seu continente de origem: a Europa. Conforme Mazower explica, com o fim da Grande Guerra e das monarquias absolutas dos Hohenzollern, HabsburgO e Romanov, a Europa viu-se frente a três alternativas: democracia liberal, fascismo e comunismo marxista. O primeiro modelo, de uma democracia parlamentar à inglesa, não passou de uma experiência, isolada e fugaz. Os povos europeus, sobretudo do Leste, necessitavam de pão, segurança, terra e autodeterminação, tudo objectivos que não poderiam ser satisfeitos pela democracia. Sobretudo na Europa do Leste, “o fraco enraizamento da democracia na tradição política europeia permitia explicar por que razão os regimes antiliberais se estabeleceram com tanta facilidade e sem grandes protestos”.
Mas o sucesso dos regimes autoritários no período entre as duas guerras não se deveu apenas à falta de enraizamento das democracias a Leste. Apesar de pontual, uma das explicações mais subtis está no facto de um jurista de excelência como Hans Kelsen, um judeu que acabou por partir para o exílio e com uma indiscutível orientação democrática, ter igualmente reconhecido a “crise do sistema parlamentar” e proposto o reforço do executivo. Uma tal crise parlamentar era também visível, após 1918, quando os governos duravam oito meses na Alemanha e na Áustria, cinco em Itália e, depois de 1931, em Espanha, menos de quatro meses; por sua vez, em França, o tempo médio dos governos era de dez meses, entre 1870 e 1914, de oito entre 1914 e 1932, e baixou para os quatro meses entre 1932 e 1940. Enfim, “o impasse parlamentar levou a que se apelasse ao reforço do poder executivo”.
Por sua vez, a democracia era odiada pelos conservadores, por dar poder ao povo, pelos fascistas, por centrar o jogo político na intervenção das elites parlamentares, e pelos comunistas, por se apoiar na burguesia. Quanto à capacidade atractiva do fascismo, se este estava virado para o passado, também incluía aspectos bem modernos, sobretudo no que dizia respeito a uma política de massas, ao intervencionismo estatal e a alguns aspectos de um Estado-providência. Como bem define Mazower, este último modelo estatal, articulado com o racismo nazi, excluía grupos inteiros dos benefícios usufruídos pela “comunidade nacional”. Por sua vez, a “sacralização da política” de que falava Emílio Gentile — que envolveu o culto do líder e gastos sumptuosos em edifícios, comícios, exposições de propaganda e publicações — recorreu a instrumentos bem modernos que iam da disseminação de propaganda pela rádio ao alargamento da literacia ou ao aumento da escolaridade, sem esquecer a militarização da vida colectiva em geral.
Até que ponto é que o fascismo foi preparado pelos mesmos que se lhe vieram a opor? Assim parece ter acontecido, não só do ponto de vista dos grandes festivais de política de massas, como nas suas formas mais concretas de políticas imperiais e coloniais, em África e na Ásia, inspiradoras das políticas racistas dos nazis. Conforme argumenta Mazower, “numa época de colonialismo e darwinismo social, o conceito de hierarquia social era ubíquo, e poucos europeus de esquerda ou de direita não acreditavam em algum tipo de superioridade racial ou rejeitavam a sua importância para a política colonial”. Como já tinha sido sugerido por Hannah Arendt, Hitler apropriou-se do legado do imperialismo europeu, para desenvolver os seus próprios projectos de um império pan-europeu, virado sobretudo para Leste. Podendo dizer-se o mesmo do comunismo: não será este, como Mazower sugere com um irónico trocadilho, o último estádio do imperialismo? Enfim, o legado sangrento do fascismo e do comunismo acabou por consistir em guerras mundiais, genocídios e limpezas étnicas.
A Segunda Guerra, com os seus 40 milhões de mortos, foi o ponto culminante da violência do século XX. Tal número ultrapassou, em muito, os milhares de vítimas das guerras franco-prusssiana de 1870-1871 (184 mil mortos), Boer ou dos Balcãs, bem como os oito milhões da Primeira Guerra Mundial. A violência também foi muito maior entre os civis, talvez metade daquele número, o que era um facto inédito. A destruição aconteceu sobretudo a Leste, podendo dizer-se que as baixas britânicas e francesas representaram apenas um décimo das alemãs. A União Soviética contabilizou as perdas maiores: dez milhões de civis, três milhões de prisioneiros de guerra pela fome, e 6,5 milhões nos combates da Frente Leste. As politicas genocidas de grupos étnicos e nacionais foram a forma mais extrema de violência, provocando “rombos enormes no tecido social e material”.
O período posterior à Segunda Guerra é abordado por Mazower de forma mais narrativa e menos analítica. Não existe, por exemplo, nenhuma explicação acerca do processo de integração europeia. Mas há alguns temas fortes. Por exemplo, o intervencionismo do Estado passou a ser considerado a forma de moderar o capitalismo e os europeus entregaram-se a um estatismo em que os principais líderes incentivaram o recurso ao planeamento técnico e a formas de engenharia social. Os compromissos ideológicos pertenciam ao passado, a ponto de se poder dizer, como sugere Mazower, que os europeus aceitaram a democracia no momento em que deixaram de acreditar na política.
Ou seja, depois de 1945, a Europa não ficou reduzida à escolha entre o capitalismo de mercado dos Estados Unidos e o comunismo soviético. O intervencionismo do Estado, o planeamento económico, directa ou indirectamente inspirado em Lord Keynes, e as políticas de bem-estar social da França, Grã-Bretanha, Suécia e outros países foram tanto uma reacção ao falhanço do capitalismo de mercado de 1929 quanto ao modelo comunista do controlo sobre o Estado. Acreditava-se, com razão, que Estado-providência e crescimento económico andavam a par, tendo sido necessário chegar aos anos de 1980, com o Governo Thatcher, para se assistir à generalização da ideia contrária, segundo a qual a despesa pública travava o crescimento económico. Claro que houve diferenças no modo de levar à prática esse mesmo Estado-providência. Por exemplo, as ambiciosas políticas públicas de habitação da Alemanha e da Grã-Bretanha contrastavam com a especulação e a indiferença estatal do Sul da Europa, de Roma a Atenas. Não foi, também, por acaso que o anti-americanismo se difundiu, porventura à excepção dos estratos sociais mais baixos atraídos pela cultura popular; sobretudo entre intelectuais e defensores da alta cultura foram evidentes os medos da “americanização”.
Não se esqueça, ainda, que no período posterior à Segunda Guerra, com a Alemanha de Leste na liderança, algumas democracias do bloco soviético alcançaram um indiscutível crescimento industrial. Facto tanto mais importante quanto não beneficiaram de qualquer ajuda ou incentivo dos Estados Unidos. Quanto à Guerra Fria, os dois blocos alcançaram um acordo durante as conferências de Guerra: tanto Moscovo como Washington procuraram não se meter nas esferas de influência do opositor. Propaganda, espionagem e competição económica actuaram como mecanismos compensatórios e instrumentos de actuação, substituindo o recurso ao poder militar. Os conflitos fronteiriços não degeneraram em violência, como sucedeu em 1914, criando assim espaço para a recuperação económica.
Em síntese, para Marc Mazower, a Europa do século XX não se define pelo seu apego aos valores e às práticas das democracias liberais, mas por uma reacção à violência que atingiu o seu máximo durante a Segunda Guerra. É, aliás, olhando para trás, para esse passado em que o número de mortos representa a ambição dos projectos em causa, que se poderá constatar, hoje, que “a Europa sofra de exaustão ideólogica e que a política se tenha tornado numa actividade desprovida de qualquer visão”.