“Mas como foi acontecer isto e ninguém soube, ninguém viu?”

Padrasto da criança de dois anos que morreu em Loures está preso preventivamente por suspeitas de tentativa de homicídio e maus tratos. Na véspera, mostrou-se chocado: “Viste aquele gajo que matou o filho bebé, em Oeiras?”

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Enric Vives-Rubio

Ainda na semana passada, viram passar os dois irmãos a caminho do jardim de infância, no agrupamento escolar, onde a esta hora se ouvem as brincadeiras de outras crianças.

A menina, que faria três anos em Junho, morreu no sábado, já no Hospital de Santa Maria em Lisboa, depois de dar entrada na véspera. No corpo, tinha sinais de ter sido violentamente agredida, segundo fonte da polícia. A autópsia realiza-se esta terça-feira. O irmão continuava, segunda-feira de manhã, internado no mesmo hospital, onde entrou no sábado, para observação e tratamento no decurso da investigação da Polícia Judiciária (PJ). “Um rapaz lindo” com os olhos claros da mãe, de 26 anos.

“Um dia vamos acordar e perceber que isto aconteceu no nosso bairro”, diz Luís David Furtado, como se um véu filtrasse a realidade, mas não o sol que cai a pique sobre a rua, no cimo de uma colina. “Hoje não acreditamos”, diz. A seu lado, à porta de casa, está um pequeno grupo de familiares e amigos.

O padrasto das crianças, de 28 anos, está preso preventivamente por homicídio tentado e maus tratos. Vive na rua ao lado. “Aqui somos todos vizinhos e amigos dele.” Parece impossível, diz Luís Furtado. Não apenas pelo que aconteceu; pela semelhança do caso com o da semana passada.

“Na véspera à noite, tínhamos estado aqui mesmo, a falar do caso do bebé morto pelo pai. E ele estava chocado. Perguntou-me: ‘Viste aquele gajo que fez aquilo ao filho?’. Ele não queria acreditar.”

Como ele, outros vizinhos e amigos acompanharam, incrédulos, as notícias da tragédia do bebé de seis meses que, no concelho de Oeiras, foi morto pelo próprio pai, depois de uma discussão com a mãe que exigia a separação. “Foi há menos de uma semana”, recorda uma vizinha. Mas aqui?

“Muitas coisas já antes aconteceram neste bairro”, continua Luís Furtado. “Mas como foi acontecer isto e ninguém soube, ninguém viu?”

O bairro é como uma pequena aldeia na freguesia de São Julião do Tojal, no concelho de Loures. Nestas ruas dos arredores da cidade de Lisboa, de pequenas casas inacabadas ou degradadas, paira o desamparo de quem vive num fim de mundo, em terra de ninguém. Todos aqui se conhecem. E de fora quase ninguém aqui vem.

A companheira e mãe das duas crianças “andava com um sorriso”, diz uma jovem que com ela convivia. “A miúda andava feliz. Vestia-se bem, saía à rua toda airosa”, continua uma vizinha. “Se sofria, era dentro dela.”

Foi no Mercado Abastecedor da Região de Lisboa, que se consegue avistar desta rua, e onde trabalha como empregada de limpeza, que a mãe das duas crianças recebeu o telefonema na sexta-feira. A menina já dificilmente respirava e uma ambulância tinha sido chamada. Terá sido por volta das 10h30, dizem pessoas do bairro, que perceberam o movimento das ambulâncias e de carros da polícia.

O padrasto terá começado por pedir socorro, dizendo que a menina tinha caído e estava mal. Ela já estaria inconsciente nos seus braços, quando ele transpôs, assustado, o portão de casa. Depois, passou o dia longe do bairro, incontactável. A polícia localizou-o na sexta-feira à noite, fora do Bairro do Zambujal, e deteve-o.

Os amigos negam a versão de televisões e jornais de que a menina terá sido espancada até à morte. Mostram-se revoltados. “A criança escorregou e caiu”, diz um amigo que não quer dar o nome. Outro fala de “negligência”. Não acreditam em maus-tratos mesmo se descrevem o amigo como um homem encorpado e alto, com quase dois metros de altura, que “intimida fisicamente”.

Quase cresceram com ele. Lembram-se especialmente dos anos depois de 2006, quando regressou de França. Viram nos últimos tempos como ele “estava a tentar fazer pela vida”. Sem trabalho, “fazia uns biscates.” O pai acusado da morte do bebé, em Oeiras, tinha tentado um tratamento para a dependência de álcool e de drogas. E neste caso? “A droga é mesmo feita para alucinar. Mas não justifica uma situação como esta. Sem apoios, ninguém se quer tratar. Quanto mais droga se tem, melhor”, diz Luís Furtado.

E descreve o amigo como um padrasto atencioso, desde que terá proposto à mãe irem viver com ele. Seria uma forma de ela fugir à terrível situação em que se encontraria depois de sair de casa dos pais, com dois filhos de duas relações anteriores. Supostamente a viver numa habitação sem condições, terá sido avisada de que as crianças lhe poderiam ser retiradas, diz-se no bairro.

A Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ) de Loures não dá informações. “Neste momento, não vamos prestar declarações”, disse ao PÚBLICO uma responsável. Também questionada, a Segurança Social não respondeu se a família estava referenciada como alguma vez tendo recebido o Rendimento Social de Inserção ou outro apoio.

“Aqui não há apoios. Para quem aqui vive, não há apoios”, continua Luís Furtado. Também não há incentivos, para se fazer ou refazer a vida. Confuso, sobre o amigo, desabafa: “Por que não fez ele mal só aos seus inimigos? Por que fez mal a duas crianças? E agora como vamos explicar às crianças do bairro o que aconteceu? Como vou dizer ao meu filho?”, questiona.

Não havia antecedentes criminais, nem nenhuma situação conhecida de maus tratos ou de violência doméstica anterior, de acordo com fonte da Polícia Judiciária (PJ). Num dos cafés do centro da vila, o homem é conhecido como “uma pessoa pacata” apenas de “vir comprar pão”.

Ninguém viu nada, não ouviu nada. “Dentro de casa, não sabemos o que se passava”, diz uma das vizinhas. Parecia uma família, como as outras. Só uma pessoa, nas redondezas, garante que a polícia rondava a casa muitas vezes e que nesta “sempre fechada” se juntavam lá “muitos rapazes”.

Dois cães grandes ladram e intimidam, do lado de dentro do pequeno quintal frente à casa onde as crianças estavam sozinhas com o padrasto. Foi o último dia de vida da menina de sorriso aberto, uma criança feliz, como será aqui lembrada. “Aquela menina morreu com um sorriso na cara, de certeza.” com Mariana Oliveira

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