Morreu o Nobel da Literatura alemão Günter Grass
O autor de O Tambor de Lata (1959), considerado por muitos a mais importante figura literária alemã do pós-guerra, tinha 87 anos.
Tinha acabado há poucos dias de terminar um livro de contos, poemas e desenhos, estava “cheio de planos literários” para o futuro próximo, e a sua morte apanhou os mais próximos de surpresa, disse ao PÚBLICO a directora do Instituto Alemão de Lisboa, Claudia Hann-Rabe, que logo após a morte do escritor falou com a sua secretária. “Estava de férias, voltou a Lübeck para se tratar desta infecção respiratória, tomou antibóticos durante um dia ou dois, e morreu de forma completamente inesperada”, diz Claudia Hann-Rabe.
Ainda segundo as informações recolhidas pela directora do Instituto Alemão de Lisboa, o funeral de Günter Grass será uma cerimónia “muito privada”, mas está já a ser preparada uma sessão oficial de homenagem ao escritor, que deverá ocorrer no dia 1 de Maio, data ainda sujeita a confirmação.
“Isto é muito triste. Um verdadeiro gigante, inspiração e amigo”, escreveu no Twitter o escritor Salman Rushdie.
Günter Grass foi ao longo da vida uma personagem controversa, algumas vezes contraditória, mas sempre com o cuidado (ou foi o acaso que assim o quis) de não se afastar muito daquilo que é “politicamente correcto” para o momento. Grass, um homem de esquerda que no debate público sempre criticou ferozmente os defeitos da Alemanha, foi visto por muitos, durante mais de 30 anos, como uma espécie de “consciência moral da nação alemã”.
A publicação do primeiro volume da sua autobiografia Descascando a Cebola (Casa das Letras, 2007), que descreve o período entre 1939 e 1959, quase atingiu a dimensão de escândalo nacional com a revelação de que aos 17 anos de idade se alistara voluntariamente nas SS. Mas a sua “honestidade tardia”, como alguns lhe chamaram, acabou por não manchar muito a imagem dos que sempre o viram como uma figura livre e desassombrada com os traumas alemães.
Depois de Descascando a Cebola, o escritor alemão escreveu A Caixa (Casa das Letras, 2009) para continuar a falar da sua vida, agora focando-se mais no campo familiar e não no político. Günter Grass escreveu aqui sobre o período entre 1959 e 1999, ano em que lhe é atribuído o Nobel, por retratar “a face esquecida da história”. Para a Academia Sueca, Günter Grass concedeu um novo começo à literatura alemã, “depois de décadas de destruição linguística e moral”.
Em 2011, com a publicação do terceiro volume da autobiografia, ainda inédito em português, Grimms Wörter. Eine Lieberserklärung (As Palavras dos Grimm. Uma declaração de amor), o escritor deu por terminada a sua longa actividade literária. Precocemente, como se constata pelo novo livro que afinal escreveu e deixou pronto a publicar. Quando da apresentação de Grimms Wörter em Bamberg (uma pequena cidade no norte da Baviera), disse numa entrevista ao PÚBLICO: “Falta-me o ânimo para escrever. Acabou o meu prazo de validade. Já escrevi tudo. Na minha idade, já se começa a ficar surpreendido quando chegamos à próxima Primavera. E eu sei o tempo que um livro pode demorar a escrever.” Mais adiante deixou um recado aos jovens escritores: “A minha geração parece ser a última que foi activa politica e socialmente. Os escritores mais jovens, especialmente os da última geração, parecem já não querer saber. Fazem mal, porque há cada vez mais temas onde poderiam ser úteis intervindo. E muitas razões para o fazerem.”
Membro da Academia das Artes de Berlim, Günter Grass, que ganhou o reconhecimento internacional com O Tambor de Lata, publicado em 1959, recebeu, além do Nobel, distinções tão importantes como o Prémio Literário Príncipe das Astúrias, o Prémio Internacional Mondello ou a Medalha Alexander-Majakovsky.
O Tambor de Lata é o primeiro volume da chamada Trilogia de Danzig (os outros são O Gato e o Rato e O Cão de Hitler), em que Grass recria com ironia e humor cáustico o ambiente da sua cidade natal, Danzig (actualmente a cidade polaca de Gdansk), antes e durante a II Guerra Mundial.
Na Alemanha, o escritor discutiu ao longo da sua vida ideias com veemência, sobretudo as do chanceler Helmut Kohl sobre a reunificação alemã, mas sempre invocando argumentos “fáceis” e que cairiam bem a muitos, sobretudo os que receavam a mudança, argumentos como o de que a divisão alemã foi uma maneira de proteger a Alemanha de si própria e, ao mesmo tempo, uma espécie de punição pelo Holocausto: “[…] face a Auschwitz, o pretenso direito à unidade alemã, no sentido de uma nacionalidade reunificada, não pode senão fracassar”, escreveu num ensaio. De entre todas as afirmações feitas na época, a que esteve mais perto da “incorrecção” política talvez tenha sido a de pôr em causa a legitimidade democrática do Bundestag, o parlamento alemão, para decidir sobre a unificação.
Grass foi um homem atormentado pelas possibilidades catastróficas da História (o futuro não lhe viria a dar razão). Com o passar do tempo, tornou-se cada vez mais um homem só no seu próprio partido, o SPD, o próprio Willy Brandt ora falava em “confederação de estados” à maneira suíça ora em integração do Leste no Ocidente.
Em 2012 foi considerado persona non grata por Israel, depois de ter comparado a acção deste país com os regimes ditatoriais. Ficou proibido de entrar naquele estado, tendo recebido até críticas dos próprios alemães. Houve mesmo um pedido à Academia Sueca, que foi rejeitado, para que fosse retirado o Nobel da Literatura ao escritor.
Também em 2012, o escritor publicou um poema de apoio à Grécia. Chamou-lhe A Vergonha da Europa e não se conteve nas críticas à atitude da chanceler alemã Angela Merkel. O Nobel da Literatura lembrava a história da Grécia, a quem a Europa muito deve. “Tu vais definhar privada de alma sem o país que te concebeu, tu, Europa”, escreveu Günter Grass, num poema com 12 estrofes de dois versos cada.
Cozinhar para os tradutores
Günter Grass tinha uma relação com Portugal. O escritor passava pelo Algarve, onde tinha uma casa no concelho de Portimão, e onde expunha a sua obra como artista plástico no Centro Cultural de São Lourenço, em Almancil.
João Barrento cruzou-se várias vezes com Günter Grass, desde meados dos anos 1970. A primeira delas, lembra este especialista em cultura e literatura alemãs, foi a seguir ao 25 de Abril, em 1975 ou 76, quando o Nobel veio a Portugal a convite de Mário Soares e do Partido Socialista para falar da sua visão do socialismo democrático. “Logo aí se percebeu que tinha um espírito particularmente crítico e que não o assustavam as polémicas. A sua perspectiva, muito ligada à do SPD alemão dessa época, não caiu bem a muitos socialistas portugueses nessa fase aguda de revolução, mas isso não o incomodou nada. Era inflexível no que tocava às suas convicções.”
Na queda do Muro de Berlim, em 1989, o escritor associa-se aos movimentos que tentam travar o processo histórico da reunificação no que tinha de negativo, explica Barrento. Reconhecendo que o regime da antiga República Democrática Alemã (RDA) estava desgastado, Grass queria salvar o que nele havia de bom, integrando-o na nova ordem que surgia. “Uma Alemanha unida não significava, para ele, a descaracterização completa da antiga RDA, não implicava que se deitasse fora o bebé com a água do banho, não implicava transformá-la numa espécie de satélite da Alemanha Federal.”
Olhar para a história, e sobretudo para a história alemã, era algo que Günter Grass fazia recorrentemente dentro e fora da literatura. Aliás, frisa Barrento, a sua obra – romance, poesia e teatro – é indissociável da sua participação cívica e política (e vice-versa). “Nele o lado político – muito intenso – e o literário nunca se dissociam, nunca se afastam sequer. Por isso podemos dizer que ele é um escritor visceralmente político, mesmo na poesia.”
Há nele, continua Barrento, que traduziu alguma da poesia do Nobel para o antigo Diário de Lisboa, uma forte consciência do passado alemão e das implicações que esse passado tinha no presente, fosse o do pós-Segunda Guerra, fosse o do projecto de uma Europa unida, com todas as suas cisões latentes. Uma Longa História (Presença, 1998), reconstrução ficcionada da Alemanha desde o império de Otto von Bismarck (século XIX), é uma das obras em que se torna absolutamente evidente a sua relação com uma grande memória colectiva que, em livros como Descascando a Cebola, a polémica autobiografia, se transfere para o plano pessoal para fazer um zoom sobre o seu próprio passado, nomeadamente da sua ligação às Waffen SS, episódio de que não se orgulha mas que não rejeita. “Assumir que fez parte das SS – foi recrutado ainda muito novo, como muitos jovens alemães – não o iliba de responsabilidade e ele sabe disso. Günter Grass é o primeiro a reconhecer que há um grãozinho [de responsabilidade] que lhe cabe a ele.”
Neste esforço de “relativização de si mesmo”, o escritor aprofunda dois dos temas que atravessam várias das suas obras – o da relação dos alemães com a Alemanha, e o da relação da Alemanha com a Europa desde o século XIX, quando começa a afirmar-se como uma potência. “Esta é uma memória problemática e Grass não lida bem com ela, com a vontade de poder da Alemanha, com o desejo de dominação que, na sua opinião, conduz a um caminho desastroso.”
Ao escritor atento às convulsões da história e às do seu próprio tempo, acrescenta Barrento o lado “extremamente humano” e a “integridade impressionante” de alguém que tinha muito jeito para comunicar, para chegar aos outros. O germanista, que defende que o essencial da obra de Grass está já traduzido para português, esteve mais próximo do Nobel em 2005, numa viagem a Gdansk, na Polónia, em que o autor se rodeou de tradutores da sua obra. “Dava grande importância aos tradutores, gostava de ouvir as suas opiniões e de saber que relação mantinham com os seus livros.” Alimentar essa relação passava, também, por alimentar os próprios tradutores, recorda João Barrento: “Ele punha-se a cozinhar e a conversar. Discutia-se muita coisa na cozinha.”
É nos seus maiores romances, continua, que Günter Grass demonstra a sua habilidade para renovar a língua. Uma renovação que não passa pela invenção de palavras, como fazem tantos outros escritores, mas por uma “força que vem da imaginação”: “Ele cria figuras com linguagens específicas e com uma força muito grande. E isto usando a língua em todos os seus extractos históricos, da Idade Média até hoje.”
Notícia actualizada às 18h00 para dar conta do livro inédito que Günter Grass terminou poucos dias antes de morrer.