Tudo sobre a revolução, de Ferguson a Ouagadougou
O rapper senegalês Didier Awadi foi a figura mais inspiradora da terceira edição do Atlantic Music Expo, que anteontem terminou em Cabo Verde. É a sua missão: “Não basta fazer belas canções de amor.”
Aos 45 anos, Awadi é um revolucionário em digressão, um revolucionário que finalmente (gratos, Tibass) encontramos no infernal trânsito entre Dakar, onde se orgulha de em 2012 ter forçado, na rua e nas urnas, a saída de um Presidente da República, Abdoulaye Wade, que pretendia manter-se em funções até que a morte os separasse (“Manifester c’est bon, voter c’est encore mieux” ficou, como slogan, para memória futura de uma rara transição democrática) e Ouagadougou, a capital do Burkina Faso pós-revolucionário que ele também ajudou a ganhar, contra “um Governo de criminosos profissionais”, com os manifestos pan-africanistas que desde 1998 vem gravando no seu Studio Sankara e que se tornaram a bandeira da juventude sónica local.
Não sabemos se é ele que anda atrás das revoluções ou se são as revoluções que andam atrás dele. Por exemplo agora: está na Cidade da Praia, onde no passado dia 30 centenas de cabo-verdianos, sobretudo jovens, se manifestaram contra o diploma que pretendia aumentar em 65% os salários da classe política num país de emigrantes e desempregados.
Convidado a participar na mesa-redonda que a terceira edição do Atlantic Music Expo, o grande mercado transatlântico com que desde 2013 Cabo Verde quer pôr-se no mapa das indústrias culturais, dedicou ao tema A revolução não será televisionada. Como é que a cultura está a construir um novo futuro, Awadi dividiu-se entre uma conferência, um concerto – lugar estranho, e de facto pan-qualquer coisa, esse onde Beyoncé, Shakira e White Stripes se cruzam com manifestos anti-corrupção e citações do anticolonialista Frantz Fanon no corpo gigante de um rapper que ainda há dias estava no Burkina Faso a reunir uma brigada para gravar um single colectivo em protesto contra a violência sexual da seita islamista radical Boko Haram na Nigéria, ou em Kinshasa a exigir a libertação de artistas detidos ilegalmente numa manifestação pró-democracia pelo Governo do General Kabila –, dezenas de entrevistas e os inevitáveis contactos com seguidores. Entre eles está Eleanor Dubinsky, americana de Ferguson que nunca mais cantou da mesma maneira desde que ouviu Sara Tavares mas de momento não pensa se não em atirar-se a um projecto de edição dos textos de Awadi na plataforma Kickstarter.
Awadi não esteve nos protestos de Novembro contra o assassinato do afro-americano Michael Brown por um polícia armado na cidade onde Eleanor cresceu, mas esteve em Chicago quando a América teve o seu primeiro Presidente negro, ainda que não seja ingénuo: “O Obama não é ninguém. É só um detalhe da História. De resto, políticos americanos fazem políticas americanas”, diz ao PÚBLICO dias depois da mesa-redonda. Certo, gostaria de editar os textos, embora a maioria do seu discurso seja “freestyle”: “A comunidade negra, mesmo na América, não é politizada. E se ficar por politizar estará sempre na cauda”, responde a Eleanor, que entretanto continua a acompanhar os estados de alma em Ferguson através do hip-hop que os motins geraram. “Há a canção do John Legend [Glory], e há muitas mais coisas a acontecer. Há muitos rappers em Ferguson, e uma longa tradição musical ligada ao jazz e aos blues de Saint Louis: o Miles Davis vem de lá, o Chuck Berry vem de lá, a Josephine Baker vem de lá… Mas não há estúdios, não há estrutura, não há negócio, não há indústria, não há tutoria, não há respeito… Pelo contrário, em Dakar, parece que as pessoas se organizam”, desabafa. Awadi, continua, “é um belo exemplo do que se pode fazer numa comunidade predominantemente afro-americana como Ferguson, para a qual a música pode funcionar como arma de propaganda ou de sedução mas também como agente de transformação”.
Autodeterminação
Até chegar a este patamar em que é consultor da Universal Music, em que força a aprovação de leis de direitos de autor no Senegal e atende o telefone a ministros congoleses para os ajudar a sair o mais ilesos possível de crises como a de Março em Kinshasa (conselho de Awadi: “Liberte-os, caso contrário vai criar um monstro”), Awadi estava ocupado a fundar o hip-hop em wolof, a língua da etnia dominante no Senegal, e a montar aquele que é até hoje um dos melhores estúdios de gravação daquela metade da África Ocidental, o Sankara, que actualmente emprega “entre 30 a cem pessoas, consoante as campanhas”.
Era, explica a uma plateia mais ou menos siderada, uma questão de autodeterminação, género os artistas africanos seriam independentes ou não seriam. “Creio que sim, a revolução será televisionada; já estamos na batalha dos conteúdos e temos de ser nós a produzi-los e a vendê-los, para que se pareçam connosco, para que tenham os nossos códigos mentais, as nossas referências. É o tipo de missão de que temos de ocupar-nos; não basta fazer belas canções de amor. Quando estás numa sala e há 30 ou 40 mil pessoas que levantam a mão quando abres a boca, já não é só um espectáculo.”
Tão ou mais importante do que o estúdio onde ganha dinheiro é a rede de protecção que Awadi e outros activistas afro-americanos parecidos com ele construíram: “De cada vez que um artista é ameaçado, todas as pessoas se levantam. E os Governos têm medo do Tribunal Penal Internacional. Claro que pode ser perigoso, mas quando somos numerosos…”
Isso, sublinha, é o papel que os artistas têm de fazer em África. Depois há o papel que têm de fazer no resto do mundo ocidentalizado: “Os programadores de festivais adoram convidar músicos africanos. Cantam, dançam, tocam tambor, sorriem! Mas é preciso que os ocidentais saibam que há uma parte da juventude que não tem meios para ser feliz. O estúdio, à sua escala, serve para que os músicos senegaleses possam existir artisticamente sem viagens forçadas à Europa e sem formatações. O nosso hip-hop é verdadeiramente do Senegal. Tem as nossas percussões, as nossas melodias, os nossos cantos tradicionais, as nossas línguas.” E depois tem Shakira, Beyoncé e White Stripes, “porque é necessário”: “Se és demasiado político, as pessoas fogem. É preciso piscar-lhes o olho aqui e ali, encontrar astúcias para as fazer chegar às tuas ideias. E a minha ideia é que África já é o futuro. A África de hoje é urbana, tem as mais altas taxas de população jovem e de matérias-primas do mundo, não permite que os ditadores decidam por si, está pronta a assumir as suas responsabilidades. Acho que há um complexo que finalmente está prestes a morrer nas cabeças africanas.”
De regresso à plateia, a história de Awadi parece ser comum. Mamou Daffé, o director do Festival Sur le Niger que há meses organizou uma Caravana Cultural pela Paz disposta a percorrer o Mali e fazer activismo contra a opressão islamista, levanta-se para dizer que “ouvir o Didier [lhe] dá esperança no continente”. E depois há Teshome Wondimu, o fundador da ONG Selam, com bases em Estocolmo e em Adis Abeba: “Precisamos de mil Awadis em África.”
Um herói local, Awadi? “Não, não me vejo como um herói. Sou um activista musical, um agitador. A nossa rede fez pequenas mudanças. Não é ficção: vivi isso, vi a revolução a acontecer.” E não foi pela televisão.
O PÚBLICO viajou a convite da Tumbao