Congresso da ANMP entre a ameaça de ruptura e apelos à unidade
Mais de 1500 autarcas reúnem-se esta sexta-feira e sábado em Tróia em congresso para debater e reflectir sobre o poder local. A polémica em torno da descentralização de competências promete marcar o encontro.
O “ataque à autonomia das autarquias” e a descentralização de competências, que o Governo considera uma das “reformas do Estado mais importantes”, têm merecido críticas sucessivas do presidente da ANMP, Manuel Machado, que ainda esta semana veio dizer que esse ataque compromete “a capacidade de resposta dos municípios às necessidades das populações".
O também presidente da Câmara de Coimbra tem vindo a alertar para a perda de autonomia das autarquias com a intromissão do Governo em matérias que, constitucionalmente, pertencem à esfera do poder local. Para o líder da ANMP, “os constrangimentos financeiros e burocráticos do Estado acabam por servir para legitimar por parte do Governo todo o tipo de intromissões na autonomia das autarquias locais, o que é inaceitável”.
O acesso a fundos comunitários é outro tema forte da reunião magna dos autarcas, que decorre até amanhã, no concelho de Grândola, sob o lema “Afirmar Portugal com o Poder Local”. Na programação do Portugal 2020, assiste-se a uma mudança substancial no paradigma de financiamento comunitário, direccionando-se a maior parcela de fundos para a economia (competitividade, internacionalização e emprego), para a eficiência no uso de recursos e para a inclusão social. Neste contexto, os municípios passam a assumir responsabilidade importante em novos domínios como a inclusão social.
O presidente da Câmara de Grândola, António Figueira Mendes (PCP), espera que o “congresso venha a unir os autarcas no sentido de poderem, junto da administração central, alterar a situação que se tem vivido nos últimos dois ou três anos, sobretudo”. Mas as declarações do presidente da mesa do congresso, Carlos Carreiras (PSD), esta semana, lançaram o rastilho de que a “ruptura” pode acontecer em pleno conclave do poder local.
O também presidente da Câmara de Cascais teme que o congresso seja palco de “uma radicalização de posições, impulsionada pelo PCP”. "Não escondo algum receio de haver uma radicalização por um grupo de autarcas do PCP que têm radicalizado o seu discurso e que têm arrastado alguns autarcas socialistas. Por isso, não escondo uma possibilidade de ruptura no congresso", declarou ao PÚBLICO o autarca, que alerta para o perigo de a “vertente partidária se sobrepor à vertente do poder local”.
O que foi logo rejeitado por Vítor Proença, presidente da câmara de Alcácer do Sal e um dos dois membros comunistas do conselho directivo da ANMP. “Quem tem radicalizado uma actuação agressiva contra o poder local, contra a sua autonomia e prejudicando os serviços públicos e as suas populações é a maioria PSD/CDS-PP”, disse ao PÚBLICO, acrescentado que os eleitos do PCP "são pela convergência, mas não a qualquer preço".
Rui Moreira ausente, mas ao lado da ANMP
Num congresso que não é electivo, há alguns autarcas de peso que estarão ausentes, como o presidente da Câmara do Porto, mas isso não significa que Rui Moreira não esteja de um modo geral em sintonia as posições da associação de municípios. O socialista Basílio Horta (Sintra) e o social-democrata Ricardo Rio (Braga) também não irão a Tróia.
Relativamente à questão da descentralização de competências, Carreiras diz que do congresso tanto “pode sair uma forte contestação como também pode sair um forte apoio”.
Já a socialista Maria Luz Rozinha, ex-presidente da Câmara de Vila Franca de Xira, acredita que o congresso “vai ser uma jornada importante em defesa da autonomia do poder local”. Luz Rosinha, que António Costa chamou para o secretariado nacional do PS, reclama para o país “uma real descentralização e não de uma mera contratualização com os municípios, transformando-os quase em prestadores de serviços”.
A ex-autarca deixa claro que o PS “nada tem a objectar que alguns dos seus municípios venham a contratualizar com o Governo essas medidas, desde que salvaguardados todos os aspectos que se possam tornar problemáticos”.
O comunista Bernardino Soares, vice-presidente da mesa do congresso, diz que a “descentralização é uma questão importante, porque há um amplo consenso de que não deve haver delegação de competências casuísticas”. O também presidente da Câmara de Loures defende, em declarações à Lusa, que “há competências que devem ficar na administração central, principalmente a saúde, mas também a educação”. Porquê? Porque – frisa – “entendemos que não devem ser delegadas” para assegurar a universalidade do acesso dos cuidados”.
“Ao mesmo tempo que o Governo tenta levar algumas autarquias a assumirem competências que deviam ficar na administração central, está a retirar competências que tradicionalmente sempre foram desenvolvidas pelos municípios, como nas águas e nos resíduos”, insurge-se.
O independente Guilherme Pinto, que lidera a Câmara de Matosinhos, vai ao congresso defender uma política de confiança entre os vários níveis da administração. “Hoje temos um custo enorme que é pago pelas populações devido a leis que são produzidas com base num princípio de desconfiança de poderes. Não faz sentido, por um lado, descentralizar e, por outro, os autarcas terem de responder a uma miríade de tutelas ou de entidades que intervêm no trabalho dos autarcas”, insurge-se o autarca que já foi socialista.
Durante dois dias, mais de 1500 autarcas vão debater e reflectir sobre o poder local. Pela primeira vez, o Congresso terá um painel de conferencistas convidados que abordarão os principais temas na perspectiva de cidadãos que não são autarcas. O deputado António Filipe (PCP) abordará "A autonomia do Poder Local", o ex-ministro da economia Augusto Mateus "Os Novos Desafios do Poder Local no Portugal 2020", o fiscalista António Lobo Xavier falará sobre "O Financiamento do Poder Local" e o economista João Salgueiro sobre "O Poder Local e a Competitividade económica de base territorial".
O conclave conta com a presença do secretário de Estado da Administração Local, Leitão Amaro, na abertura, e com o ministro adjunto e do Desenvolvimento Regional, Miguel Poiares Maduro, no encerramento.
A lei da polémica
O decreto-lei 30/2015, publicado em Fevereiro em Diário da República, estabelece o regime "de delegação de competências nos municípios e entidades intermunicipais no domínio de funções sociais". A delegação de competências é feita através de "contratos interadministrativos", e para além da educação, o diploma prevê a transferência de competências na área da saúde, segurança social e cultura.
As entidades municipais podem assumir competências na gestão do ensino básico e secundário, com excepção do pessoal docente, e no funcionamento de unidades de saúde, ficando de fora médicos e enfermeiros, que em ambos os casos continuam a ser contratados pela administração central.
A assinatura formal destes projectos-piloto entre o Governo e os municípios acontecerá imediatamente a seguir à sua aprovação pelas respectivas assembleias municipais. O processo de transferência de competências no sector da educação, onde, de resto, há mais experiência, está bastante avançado, mas os projectos-pilotos da cultura podem ficar fechados em breve e em Abril haverá contratualização.
Ao todo serão cinco contratos e, neste caso, a transferência resume-se praticamente a museus, que deixam a esfera do Estado para passarem para os municípios.
No que diz respeito à saúde, o processo está um pouco mais atrasado. O Governo está em fase da elaboração dos contratos-pilotos e da sua contratualização. Ao que o PÚBLICO apurou, o Governo vai celebrar um projecto-piloto com uma comunidade intermunicipal da zona centro.
Relativamente à delegação de competência no plano da segurança social, o Governo garante que já há projectos a funcionar, alguns dos quais já vinham de trás.
A Câmara de Cascais, liderada pelo social Carlos Carreiras, é um dos municípios que assinou o acordo de delegação de competências na educação, saúde, segurança social e cultura, integrando o grupo de projectos-piloto proposto pelo Governo, embora o modelo definido não seja aquele que ambicionava