Polícias de Cascais em tribunal acusados de montarem rede de tráfico e corrupção

Entre os 28 arguidos de um julgamento que deverá começar esta terça-feira em Lisboa estão 13 polícias, acusados de vários crimes: extorsão ou coacção agravada, tráfico de droga e de influências e vários outros, praticados pelo menos entre 2006 e os primeiros meses de 2011. Alguns advogados pediram nulidade da prova produzida e dizem que “a maioria dos crimes vai cair”. Entre os polícias suspensos, alguns já retomaram funções na PSP.

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Entre os polícias suspensos, alguns já retomaram funções na PSP Daniel Rocha

Os agentes “Costinha” e Filipe Magee Machado, também acusado de vários crimes (enquanto autor, co-autor ou instigador) são os dois principais arguidos de um processo que envolve 27 pessoas e uma empresa, a Security Class, criada, segundo a acusação, como empresa fachada para actividades ilícitas de segurança privada na zona de Cascais. Os dois supostos cabecilhas cumpriram um ano de prisão preventiva, foram libertados e impedidos de exercer as suas funções.

Costinha, à semelhança do que conseguiram outros agentes, regressou no início do mês ao seu trabalho na esquadra de Cascais. Alguns dos outros polícias arguidos continuam suspensos, a aguardar a decisão do Tribunal Administrativo ou da Relação, depois de contestada a ordem de suspensão dada pela PSP. O julgamento está previsto para começar esta terça-feira em Lisboa (e não no Tribunal de Cascais) por decisão do Tribunal da Relação.

Um chefe, dois comissários, um subcomissário estão entre os treze efectivos da PSP no banco dos réus; os restantes são agentes. Estão acusados de montarem um esquema (envolvendo outras pessoas) através do qual apreendiam dinheiro e droga a traficantes, com a ajuda de consumidores que eram informadores. O despacho de pronúncia da juíza do Tribunal de Instrução Criminal (TIC) de Lisboa, consultado pelo PÚBLICO, tem data de 30 de Abril de 2013.

Cocaína a troco de denúncias
Os arguidos apreendiam dinheiro e droga a traficantes e “apenas entregavam à ordem do processo uma parte do dinheiro e do estupefaciente apreendidos”, ficando o restante para si ou entregando-o “a terceiros como pagamento pela sua ajuda na descoberta ou intercepção de traficantes”, lê-se na acusação.

A defesa acredita que “a maior parte dos crimes vai cair” e que pelo menos algumas escutas – que constituem uma importante parte da prova – vão ser consideradas nulas. Alegam que um subcomissário, que era suspeito e agora é testemunha, foi usado como “infiltrado” e instigador dos crimes dos colegas.

Alguns dos agentes ou responsáveis da PSP visados são pessoas de “grande valor na criminalidade organizada”, dizem dois advogados ouvidos pelo PÚBLICO. No caso de Costinha, por exemplo, a sua função era investigar e isso justificaria as ligações ao mundo da droga, registadas em escutas telefónicas, e o tipo de contactos frequentes que o agente fazia, com recurso a instruções e a nomes em código.

Os arguidos não se limitavam ao concelho de Cascais, agindo em todo o território da área metropolitana de Lisboa, desenvolvendo actividades em Queluz, Oeiras e Costa da Caparica. Oito arguidos respondem pelo crime de associação criminosa.

Na descrição feita na acusação, os principais suspeitos acediam à base de dados da polícia para usar informações a troco das quais proferiam ameaças ou exigiam dinheiro; criaram uma actividade paralela à da polícia e desenvolviam serviços de segurança privada a pessoas ou empresas, serviços ou favores a troco de dinheiro ou influência.

Forçada a abortar
Em Setembro de 2010, o subcomissário José Luís Mendes Canilho foi contactado por um conhecido seu a pedir-lhe um serviço urgente em nome do irmão: o homem, casado, engravidara uma cidadã brasileira com quem se envolvera, e queria que ela abortasse para não comprometer o seu casamento. A jovem foi instada pelo subcomissário a ir à esquadra e informada de que se tal não acontecesse a iriam buscar a casa.

“Foi recebida por José Luís Mendes Canilho, no seu gabinete”, lê-se no despacho de pronúncia, que descreve um interrogatório “em tom agressivo e intimidatório” em que lhe foi dada ordem de abortar, e dito que se não o fizesse, “a mandava prender e extraditar para o Brasil”. A mulher, em situação ilegal em Portugal, teve um ataque de pânico e de choro, garantiu que iria abortar e nunca mais contactar o amante. Três dias depois, sofreu um aborto espontâneo.

Nesse mesmo ano, em Novembro, uma mulher, residente em Cascais, contratou por mil euros os serviços de dois agentes para seguirem os passos do marido e da amante. A informação e fotografias recolhidas serviriam para ter ganho de causa no processo de divórcio litigioso.

Os mesmos ou outros agentes prestavam serviços de segurança privada ilegal a altos quadros de Cascais, através da Security Class, cuja criação “se reveste de indícios claros de ilegalidade”, lê-se no despacho de pronúncia. Além disso, acrescenta, a empresa recorria a indivíduos “que tinham averbado nos seus certificados de registo criminal crimes que os impediam” de exercer a actividade de segurança pessoal, de acordo com a lei.

Ao tráfico de droga, com episódios descritos de consumidores usados para prender os traficantes, há também relato de pessoas que se dirigiram à polícia para apresentar queixa e acabavam por ser aliciados para esquemas de tráfico em troca de serviços prestados a título pessoal – e mais expedito – pelos agentes.

Em Janeiro de 2011, um casal dirigiu-se à esquadra de Cascais e expôs a situação de conflito que existia entre ela e o ex-companheiro por episódios passados de violência doméstica. Os factos ficaram narrados no auto de notícia. Um dos agentes da esquadra sabia, além disso, que o ex-companheiro da queixosa não a deixava ver o filho de ambos; ofereceu-se para resolver a situação em troca de um serviço que envolvia o transporte de cocaína. A droga seria depois utilizada para comprometer o pai da criança.

O casal aceitou entrar no esquema – foi uma vez ao Bairro do Fim do Mundo em Cascais e, outra vez, ao Bairro da Outurela em Lisboa. Ao terceiro serviço, à Costa da Caparica, e por recearem ser detidos, desistiram. A essa recusa, seguiram-se mensagens ameaçadoras dirigidas a ambos. Em Abril de 2011, também com ameaças, agentes da PSP ajudaram um proprietário a expulsar do seu apartamento os inquilinos – um casal de toxicodependentes com pagamento de rendas em atraso.

Controlo de bares de alterne
No despacho de pronúncia, a criação da empresa Security Class é apontada como uma forma de três arguidos – Costinha, um vigilante e um empresário – “controlarem” discotecas ou bares de alterne de Cascais e Estoril, como o La Rocca, Bar da Tina, Espaço ou Golden Eye, e aí desenvolverem "actividades ilícitas". O grupo assumia “o controlo das mulheres que trabalham naqueles estabelecimentos, estabelecendo contactos com o estrangeiro” para as trazerem para Portugal e “assim as poderem colocar nos seus estabelecimentos nocturnos”.
 

Polícias, vítimas e alvos de ameaças e extorsões estarão entre as dezenas de testemunhas de acusação esperadas ao longo de várias semanas – ou meses – que deverá durar o julgamento. Entre elas, uma testemunha, o subcomissário José Assunção, é vista pela defesa como “decisiva”. Alguns advogados alegam que o subcomissário foi usado como agente provocador de crimes dos seus colegas, coagido pelos responsáveis da investigação, que lhe entregaram um telefone limpo (fora de escuta) para comunicar com os outros suspeitos, ao mesmo tempo que ele próprio, sendo suspeito, tinha um telefone sob escuta. Se se provar que ele agiu como agente provocador, haverá nulidade dos crimes provados por via das escutas do seu telefone, dizem.

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