Com Luca Ronconi o teatro era primeiro palavra

O encenador italiano, um dos “mestres” do século XX, morreu no sábado, em Milão. Desaparece um “visionário” que transformou a maneira de ver e ouvir o teatro e a ópera. Alguém para quem o teatro era "qualquer coisa de vital, de primário".

Foto
Luca Ronconi, aqui a trabalhar numa das suas produções, Celestina, é descrito como "um grande visionário" Piccolo Teatro de Milão

Olhando para o percurso deste italiano que nunca deixou de estar apaixonado pela literatura – sobretudo aquela que se fez a pensar no palco - é fácil perceber porquê. O seu interesse pelo texto, a sua predisposição para inovar, mesmo (ou sobretudo) quando trabalhava os clássicos, e o seu amor pelos actores tornaram-se evidentes, garantem críticos, directores de teatro e intérpretes, ao longo de uma carreira de mais de 50 anos em que assinou perto de 200 encenações, deixando marcas em sucessivas gerações.

Sergio Escobar, director do Piccolo Teatro de Milão, um dos principais palcos da criação teatral contemporânea na Europa, que o próprio Ronconi liderou, disse, emocionado, quando o diário La Repubblica o ouviu a propósito da morte do encenador: “Ele não queria morrer. Tinha na cabeça um saco de projectos, pensava no novo espectáculo de Maio […]. Não queria morrer.”

Ronconi deu entrada no hospital há já vários dias e, segundo a imprensa italiana, acabou por não resistir a complicações decorrentes de uma gripe. Estava já muito fraco, reconhece Escobar, mas trabalhou até ao fim. Algo natural para alguém que chegou a dizer que, se não tivesse o teatro, provavelmente não teria feito nada. “[Fazer teatro] não era um desejo, mas uma necessidade, a razão de ser da minha existência. Qualquer coisa de vital, de primário”, explicou o encenador nascido na Tunísia em 1933, citado pela a agência de notícias francesa AFP.

É uma enorme perda para o teatro – artística e humana -, escreve o diário italiano, porque Ronconi, um homem “tímido, reservado e genial”, pôs a sua imensa experiência ao serviço de um teatro que se propunha ser uma forma de ler o mundo numa altura em que parece faltar-lhe tanto sentido.

Riccardo Muti, que no sábado, dirigindo a sinfónica de Chicago, dedicou ao amigo o Requiem de Mozart, lembrou ao La Repubblica que Ronconi foi o encenador com quem mais trabalhou, desde que nos anos 1970 fizeram juntos em Florença o Orfeu e Eurídice (1762) do compositor alemão Christoph Willibald Gluck. “Tivemos um êxito gigantesco, a sua encenação revolucionou a maneira de entender o teatro de ópera”, disse Muti, uma das muitas figuras da cultura dentro e fora de Itália que se apressaram a lamentar a perda de Ronconi, que se apaixonou pelo teatro ainda criança e por influência da mãe.

O Orlando decisivo
Luca Ronconi acabou os estudos de teatro em 1953, formando-se na Academia de Arte Dramática de Roma, e foi como actor que começou a trabalhar. Alto e elegante, chamou a atenção de cineastas e encenadores como Orazio Costa e Michelangelo Antonioni, que chegaram a confiar-lhe papéis de protagonista. Embora nunca tenha deixado de se sentir ligado aos actores, foi do lado de fora do palco que fez carreira. Uma carreira que começa com dois textos de Carlo Goldoni, em 1963 (o espectáculo chamava-se La Buona Moglie), e que se projecta, sem retorno, no final da década com a histórica produção de Orlando Furioso, escrito por Ludovico Ariosto no início do século XVI – em França atraiu 40 mil espectadores em 15 dias, escrevia ontem a AFP –, uma encenação que mostra, para muitos, que Ronconi estava disposto a transformar, para sempre, o espaço do teatro clássico.

Essa capacidade de reinvenção, mas sobretudo a sua fidelidade a um “teatro da palavra”, é o que leva o director do Festival de Teatro de Almada, Rodrigo Francisco, a classificar Luca Ronconi como “um dos encenadores do século XX”, que continuou a trabalhar com a mesma “frescura” e “entrega” pelo século seguinte.

“Ronconi fazia um teatro em vias de extinção – aquele que tem um amor profundo à literatura, ao texto”, diz ao PÚBLICO o director do festival, que contava trazê-lo a Portugal este ano, numa secção dedicada aos mestres da arte teatral. Seria um regresso para Ronconi, que ali apresentou vários espectáculos como encenador ou director do Piccolo Teatro de Milão (Arlequim Servidor de Dois Amos, Os Dias Felizes  ou Os Dois Gémeos de Veneza).

“O seu era um teatro de grande coragem, de denúncia. Ronconi, como por exemplo Matthias Langhoff, só estava interessado em espectáculos que fossem capazes de interpretar o mundo, o que já vai rareando.”

Rodrigo Francisco conheceu-o e recorda-o, já muito fragilizado pela doença (fazia hemodiálise há já vários anos), com uma “aura do mestre que sente que ainda lhe falta fazer muita coisa”: “Fui ver Celestina, uma das suas últimas produções, depois de o encontrar muito debilitado, e fiquei completamente surpreso. Aquele parecia o trabalho de um jovem de 20 anos com muita vontade de viver, cheio de energia e de sensualidade.”

O encenador Nuno Carinhas tem uma relação mais distanciada com a obra e a figura, mas isso não o impede de admitir a “imensa perda” que o teatro contemporâneo acaba de sofrer. Reconhece na sua obra uma “depuração imagética muito grande”, que nunca “soterrava o texto”. “O Mário Feliciano [encenador português, 1951-1995], que foi aluno do Ronconi, veio profundamente influenciado por ele. Por aquele teatro que dava a ver e a ouvir a palavra na melhor tradição do novo teatro italiano que tinha começado com o [Giorgio] Strehler e o Piccolo.”

Luca Ronconi dirigiu vários teatros em Itália até ser nomeado para liderar o prestigiado Piccolo de Milão, para muitos o mais importante teatro do país. Isto aconteceu em 1999, dois anos depois da morte do fundador, precisamente Strehler, de quem, aliás, era um fiel seguidor, um discípulo. É deste mestre que lhe vem, em parte, o amor à literatura e aos grandes autores que o leva a trabalhar textos de William Shakespeare, Pier Paolo Pasolini, Heinrich von Kleist, Anton Tchekov, Calderón de la Barca, August Strindberg, Henrik Ibsen, Karl Kraus, ou a adaptar romances como Os Irmãos Karamazov, de Fiódor Dostoiévski, e Lolita, de Vladimir Nabokov. Isto a par dos já referidos “clássicos”, como Oresteia, de Ésquilo, Utopia, de Aristófanes, e As Bacantes, de Eurípides, sublinha o crítico Roger Salas nas páginas do diário espanhol El País.

Infatigável, dizem os que com ele se cruzaram, Ronconi trabalhou ainda muitíssimo para a ópera, criando produções para grandes palcos europeus, como o Teatro La Fenice, em Veneza, a Ópera de Berlim e o Teatro alla Scala, de Milão. No currículo há encenações de Wagner, Rossini, Mozart, Verdi, Berlioz e Monteverdi, mas também Janácek e Britten.

No teatro, como na ópera, era sempre o mesmo, dizia, defendendo que a arte da encenação não se podia ensinar: “Parte de uma disponibilidade pessoal, de uma capacidade de entrar em diálogo com um texto, um espaço, os actores e um público.” Assim, sem mais, nem menos.

Texto alterado às 20h07 para substituir artigo da agência Lusa por um do PÚBLICO

Sugerir correcção
Comentar