Festival de Berlim: uma carta à liberdade de expressão no cinema
O realizador dissidente iraniano Jafar Panahi venceu o Urso de Ouro no festival de Berlim pelo road movie Taxi. Um triunfo em nome da liberdade de expressão e da arte do cinema em contar histórias. Os outros galardões enfatizaram o poder criativo do cinema actual da América Latina e dos actores britânicos.
Os peixes dourados fazem parte do ritual persa Nowruz que marca o início da Primavera, e mesmo se aparentemente Panahi não partilha da crença supersticiosa das duas mulheres que lhe pedem para voltar a deitar os peixes à água de uma determinada fonte, ele está suficientemente preocupado para regressar ao lugar e ver se tudo correu bem quando o filme se aproxima do fim.
O facto de Taxi ter ganho o Urso de Ouro no sábado à noite é mais do que uma declaração de intenções sobre a situação do cineasta que em 2010 foi preso e condenado a 20 anos sem poder viajar nem trabalhar, porque supostamente "fez filmes críticos contra o regime". Constituiu também um reconhecimento do poder do cinema em manifestar-se contra todas as tentações de o silenciar, mantendo-se visível apesar das condições adversas.
“O filme de Jafar Panahi está cheio de amor pela sua arte, a sua comunidade, o seu país e o seu público”, justificou assim o realizador americano Darren Aronofsky a decisão do júri. “Em vez de permitir que o seu espírito fosse esmagado, desistindo e entregando-se à raiva e frustração, criou uma carta de amor ao cinema.”
Terceiro da série de “filmes escondidos” que Panahi iniciou com This Is Not A Film e continuou com Behind The Curtain (que foi premiado com o Urso de Prata para melhor argumento em 2013), Taxi foi novamente transportado de forma secreta para fora de Teerão até ao festival de Berlim.
O filme, que habilmente tece exemplares histórias humanas, tendo como pano de fundo um sistema cego e repressivo, atinge o clímax quando surge no ecrã Hana Saeidi, sobrinha do realizador, que Panahi vai buscar à escola para trabalhar no próprio filme. Quando ela começa a recitar o livro de regras que a professora lhe deu – “as mulheres devem usar véu sempre”, “Os Bons nunca usam gravatas”, “os Maus não devem ter nomes muçulmanos" – vai tomando consciência do absurdo de tais restrições.
Não há palavra para "Deus", uma mulher da tribo Kawesqar explica no filme de Patricio Guzmán El Botón de Nácar, e continua: "Polícia?". Depois do seu fantástico Nostalgia de la Luz, Guzmán recebeu o Urso de Prata para melhor argumento. No seu filme, ele mostra a beleza do Chile, das populações nativas e da ditadura.
As limitações e restrições à liberdade estiveram aliás presentes, de diversas formas, na competição deste ano do festival, dando uma impressão favorável da selecção global, que foi muito criticada em anos anteriores, especialmente desde que Dieter Kosslick foi nomeado director artístico em 2001.
Na cerimónia final, Kosslick brincou, aliás, dizendo que o prolongamento do seu vínculo ao festival por mais cinco anos, o obriga a “mostrar apenas bons filmes a partir de agora”, numa alusão ao alvoroço provocado, sobretudo na Alemanha, pela notícia do seu novo contrato, já que não existiu concurso público. “De qualquer maneira, só consigo ler as críticas favoráveis da imprensa”, disse Kosslick, “as negativas envio-as para Thierry Fremaux em Cannes”.
Toda a polémica, no entanto, já tinha perdido força, à medida que se foram conhecendo os filmes que Berlim acabou por exibir. Muito merecido, foi, aliás, o destaque dado no palmarés a Pablo Larraín, premiado com o Grande Prémio do Júri, pelo seu olhar sombrio e implacável sobre a Igreja Católica e as crenças religiosas, no formidável El Club, no qual observa também as dinâmicas da repressão. Quatro padres e uma freira, todos eles excomungados pelo Vaticano, vivem numa pequena aldeia litoral do Chile, mergulhados em orações de arrependimento e corridas de cães, até que um suicídio leva as coisas a descontrolarem-se. “Todos os dias muitas pessoas são mortas em nome da religião”, disse Larraín no discurso de agradecimento. “Gostaria que um dia isso terminasse.”
Não só esses dois grandes filmes políticos conquistaram o júri – e o festival – como acabaram por dar força à agenda característica da Berlinale. “O mundo continua a girar em torno do planeta Berlinale”, disse Kosslick. “Mas acho que é necessário ter os pés bem assentes na terra.”
O festival, que conseguiu aumentar a venda de bilhetes batendo um novo recorde este ano, às vezes luta para encontrar o equilíbrio certo entre os contratos que atraem as estrelas e o cinema de qualidade, aumentando as secções e correndo o risco de diluir o seu programa. Mas pelo menos um júri como o deste ano foi capaz de estabelecer bem as suas prioridades
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Assim, conseguiu ultrapassar as regras estabelecidas para os prémios e deu dois Ursos de Prata em ex aequo: pela melhor contribuição artística em cinematografia, Evgenie Privin e Sergey Mikhalchuk foram distinguidos pelo seu trabalho sobre o poema distópico de Alexey German, Under Electric Clouds, um conto em sete episódios passado numa Rússia em 2017, quando já não é claro onde começa a Natureza e acaba a civilização. O filme é uma co-produção russo-ucraniana e, nos tempos que correm, um grito artístico pela razão. Igualmente premiado pelo melhor trabalho de câmara foi Sturla Brandth Grøvlen pelo filme de Sebastian Schipper, Victoria, uma saída à noite com um grupo de jovens alemães, que foi filmado num único take de 140 minutos.
Não menos interessante foi Radu Judes, com Aferim, um preto e branco Oriente-Ocidente sobre a história da população romani na Roménia e os mecanismos de escravidão até à actualidade. Com o Urso de Prata para melhor realizador, Radu Judes partilhou o reconhecimento com a realizadora polaca Malgorzata Szumows, cujo filme de conjunto Body, com humor e ao mesmo tempo negro, aborda questões de género e relativas ao corpo na relação entre um pai e a sua filha anorética. Ambos tentam ultrapassar a morte da mãe há seis meses e são ajudados (ou o contrário) por uma terapeuta com uma abordagem gestáltica que vive com um cão grand danois deprimido.
De uma maneira um pouco inquietante, este ano foram mortos alguns animais nos filmes do festival, embora os momentos mais impressionantes pertençam à besta humana. Em Ixcanul de Jayro Bustamante, por exemplo, vê-se uma vaca a morrer que Maria e a sua mãe (fortes representações de María Mercedes Coraoy e María Telón) encontram no caminho para casa vindas da plantação de café, naquele que constituiu um dos momentos mais memoráveis do festival.
O filme da Guatemala recebeu o prémio Alfred Bauer, que Bustamante gostaria de transformar em dentes de ouro para toda a equipa, brincou em Berlim quando subiu ao palco para agradecer o prémio. Ixcanul representa as tentativas de Maria de se libertar de um mundo de tradições, mas ao tomar as decisões erradas continua presa e derrotada. O filme é um estudo inteligente sobre a população Maia que vive na Guatemala de uma forma marginal. Foi uma cobra, a propósito, que mordeu a vaca, um intruso no paraíso que afinal não o era. Mais tarde, claro, Maria também é mordida.
Um intruso do passado é algo que tem de enfrentar o casal há muito casado no excelente filme de Andrew Haighs, 45 Years. Charlotte Rampling e Tom Courtenay receberam ambos o prémios de melhores actores pela sua boa prestação como Kate e Geoff Mercer num filme que desmantela um casamento de 45 anos numa semana, depois de o corpo de uma antiga namorada de Geoff ser encontrado no Alpes suíços, e de repente todas as memórias de uma vida (talvez melhor?) que podia ter acontecido começam a introduzir-se.
Quando recebeu o prémio, Courtenay, 77 anos, disse que tinha esperado 30 anos para receber um urso da Berlinale, depois do “meu amigo Albert Finney que ganhou em 1985”. Rampling revelou que um dos maiores desafios do filme tinha sido a falta de jeito de Courtenay para dançar. Foram feitos 20 takes de uma cena de dança fundamental. “Mas os meus olhos ficavam húmidos todas as vezes, por isso devemos ter feito alguma coisa certa”, disse o actor.
Houve um momento colectivo de emoção quando, mesmo no final do festival, a iraniana Hana Saeidi aceitou o Urso de Ouro em nome do tio. Ela levantou o braço, com a estátua na mão, num gesto de victória, e depois desatou a chorar. Pode não ter exactamente a noção da realidade, mas talvez tenha pressentido as dificuldades e limitações dos realizadores no Irão - e noutros lugares. Um dia talvez continue o legado do tio. Tal fé no futuro é-nos permitido.