Americanos têm mais medo das vacinas do que das doenças
Surto de sarampo nos EUA revela dimensão do fenómeno dos pais que preferem não vacinar os seus filhos para os proteger de riscos de saúde que não estão provados, como o autismo.
O surto começou com uma nota quase ligeira: os primeiros casos surgiram em Dezembro, na Disneylândia. Houve funcionários e visitantes doentes. Mas o que levou ao ressurgimento de uma doença que os Estados Unidos esperavam ter dado por erradicada no seu território em 2000 – os casos que foram surgindo nos últimos anos tinham a ver com viagens ou visitantes estrangeiros – não é uma história que se possa desenhar em traços claros e fluidos como os de Walt Disney.
O que gerou esta epidemia de sarampo foi a resistência de muitos pais a vacinar os seus filhos – ou pelo menos a dar-lhes todas as vacinas no calendário previsto, que se tem tornado cada vez mais preenchido nos últimos anos. Hoje muitos pais receiam mais os efeitos secundários do que as doenças potencialmente mortais contra as quais as vacinas obrigatórias imunizam. Foi em nome da saúde e da escolha de uma vida saudável que estes pais escolheram não imunizar os seus filhos.
O sarampo está longe de ser uma doença sem consequências: matava 2,6 milhões de pessoas em todo o mundo antes de 1982, quando a vacinação começou a ser aplicada universalmente – muito devido às suas complicações, que incluem meningites mortais – segundo o Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças.
É causada por um dos vírus mais contagiosos do mundo: uma pessoa com sarampo pode transmitir a infecção a outras 12 a 18 pessoas. Para ter um termo de comparação: alguém que esteja com gripe, que se transmite muito facilmente, poderá passar a doença no máximo a quatro outras pessoas, através das partículas do vírus expelidas quando tosse, por exemplo. O vírus do sarampo espalha-se da mesma forma, mas é muito resistente. Pode sobreviver na atmosfera de uma sala durante duas horas à espera de ser inalado pela próxima vítima.
Para contrariar tamanha eficácia, a melhor arma de que dispomos é a vacina: a do sarampo é muito eficaz, embora não completamente (cerca de 95%). No entanto, torna-se muito potente se for aplicada a toda a população, pois quando há uma grande cobertura de uma vacina numa determinada população, começa a funcionar a chamada imunidade de grupo ou efeito rebanho, que permite que, mesmo os indivíduos que não foram vacinados, ou nos quais a resposta imunitária não é tão forte, beneficiem do efeito protector das vacinas.
No caso da vacina do sarampo, para haver essa imunidade de grupo, cerca de 92% da população tem de estar vacinada. Mas isso começa a não acontecer em alguns locais dos Estados Unidos, criando condições para o desenvolvimento de surtos locais, embora o nível geral de imunização no país continue a estar entre os mais elevados do mundo.
Ricos e preocupados
Marin County, na zona norte da baía de São Francisco, é um dos locais onde se têm concentrado mais as atenções. Boas casas, colégios privados, estúdios de ioga, desportos radicais, habitantes preocupados com o ambiente e liberais, no sentido americano do termo, que se preocupam com o que comem e preferem produtos de agricultura biológica, que conduzem carros eléctricos – tudo isto são sinónimos desta região rica da Califórnia. Mas aqui surgem muitas famílias, e por vezes comunidades inteiras, que desconfiam da toxicidade das vacinas.
A Califórnia tem a maioria dos casos de sarampo e Marin County é o condado que regista a maioria das “isenções por convicção pessoal” , que permitem aos pais colocar os seus filhos na escola sem terem todas as vacinas exigidas por lei com base nas suas filiações religiosas ou filosóficas.
Por trás destes pedidos de isenção está uma desconfiança dos pais. “Baseiam-se na ideia de que as vacinas são perigosas, ou têm riscos, o que simplesmente não é verdade”, comentou ao jornal Los Angeles Times James Cherry, especialista em sarampo da Universidade da Califórnia.
As vacinas são partículas enfraquecidas, ou até mesmo mortas de um microorganismo, das suas toxinas ou das suas proteínas de superfície, nunca o agente patogénico completo, necessário para causar doença. Tudo o que se pretende é ensinar às células do sistema imunitário a lutar contra um inimigo que traga aquele lenço na lapela, se algum dia o vier a encontrar. Mas a desinformação sobre as vacinas abunda.
A maior preocupação dos pais é a de que as vacinas, no caso a dose tripla de sarampo, rubéola e papeira administrada às crianças por volta dos 12 meses, esteja relacionada com o autismo. Um estudo de 1998 pareceu fundamentar este receio, e alimentava uma suspeita anterior, a de que um conservante à base de mercúrio que era usado nas vacinas (e que entretanto deixou de ser usado) pudesse também estar relacionado com o autismo – um espectro de doenças do desenvolvimento que normalmente começa a ser diagnosticado mais ou menos pela mesma idade em que é dada esta vacina tripla.
Não só nunca se encontraram provas de que o conservante timerosal não fosse seguro como o estudo que relacionava a vacina do sarampo com o autismo foi descredibilizado em 2010, revelando-se que existiam fraudes na sua realização. O médico britânico que o dirigia, Andrew Wakefield, foi expulso da profissão.
O movimento ganhou grande impulso nos EUA em 2007,quando a ex-modelo da Playboy, actriz e apresentadora de talkshows Jenny McCarthy iniciou a sua cruzada para promover tratamentos alternativos para o autismo, afirmando que as vacinas tinham provocado o autismo ao seu filho.
Os seus efeitos, no entanto, são duradouros. “Se falar com a maioria dos meus pacientes, e olhe que são pessoas bem informadas, eles vão dizer-lhes que conhecem alguém, directa ou indirectamente, que sentiu que o seu filho não tem sido o mesmo desde que foi vacinado”, comentou a pediatra Lauren Feder, de Los Angeles, cujo consultório é popular com pais que desconfiam da vacinação, numa reportagem da Hollywood Reporter.
O receio perdura talvez porque a detecção dos casos de desordens do espectro autista é 20 a 30 vezes superior do que era na década de 1970, segundo as últimas estimativas do Centro de Controlo e Prevenção das Doenças dos Estados Unidos: em cada 68 crianças, uma é afectada por este tipo de doença. “Esta é uma realidade epidemiológica incontestável”, disse ao Le Monde o neurobiólogo Yehezkel Ben Ari.
Mas as vacinas não estão entre os suspeitos da origem deste aumento da doença. “Entre as causas possíveis estão o aumento do número de cesarianas feitas por conveniência ou a poluição difusa, como os pesticidas no ambiente, que são tema de numerosos trabalhos de investigação”, disse Yehezkel Ben Ari ao jornal francês.
O resultado desta conjugação de receios e campanhas de alto reconhecimento nos media é que pelo menos 2,5% das crianças que entram no sistema público da pré-escola na Califórnia não têm todas as vacinas, segundo os dados oficiais. Isto acontece sobretudo nas zonas mais ricas, como Orange County, onde fica a Disneylândia, ou a costa de Malibu até San Luis Obispo, por exemplo, diz o Washington Post.
O calendário
Mas o retrato destes americanos que escolhem não vacinar os seus filhos – não porque não tenham meios para isso, mas porque desconfiam de um avanço da medicina – complica-se ainda mais.
É preciso dizer que a ansiedade em relação às vacinas não é uma preocupação dos liberais americanos – há estudos a demonstrar que esta política de saúde goza de amplo apoio tanto à direita como à esquerda, e também de cépticos em todos os campos políticos. Isso não impediu que potenciais candidatos de direita às próximas eleições presidenciais americanas, como o senador Rand Paul e o governador Chris Christie, entrassem na polémica, tentando mostrar-se simpáticos com os pais que se afligem com que lhes parece uma overdose de vacinas.
Alguns pais dizem não ser completamente antivacinação. Ficam ansiosos com tanto químico, numa época em que raras serão as pessoas que se lembram de como será ter sarampo sem ser vacinado, por exemplo, e esquecendo que os bebés nascem sem anticorpos para estas doenças que, antes da vacinação em massa, matava na infância. Por isso não cumprem o calendário de vacinação, tomam umas vacinas e não outras, ou fazem a primeira dose mas não o reforço.
Mas esse comportamento faz arrepiar o statu quo médico. “Não defendemos o espaçamento do calendário de vacinação, porque isto deixa as crianças vulneráveis. O calendário foi estabelecido tal como é porque foi testado em milhares de crianças. Se começar a fazer o seu próprio calendário, está por sua conta e risco”, explica Deborah Lehman, especialista em doenças infecciosas em pediatria no Centro Médico Cedars-Sinai, citada pelo Hollywood Reporter.
Outros pais, como Crystal McDonald, têm as suas ideias mais demarcadas. A sua filha de 16 anos foi uma das 66 estudantes não vacinadas enviadas para casa durante duas semanas pela sua escola secundária na Califórnia, por causa do surto de sarampo. Ela pesquisou e informou-se sobre o assunto junto de uma organização antivacinação, contam os repórteres do New York Times, e decidiu que não havia de vacinar os seus quatro filhos. Nem agora, que a sua filha, preocupada com as notas, sugeriu que podia simplesmente tomar a vacina. “Não há motivo nenhum para isso. Prefiro que percas o ano do que sejas vacinada.”