São portugueses, são muçulmanos
É o segundo maior grupo religioso do mundo, com cerca de 1,6 mil milhões de seguidores estimados. Em Portugal, calcula-se que estejam uns 50 mil. Apesar de ainda ser uma religião minoritária, ser muçulmano não é sinónimo de imigrante.
Está sentada no banco à porta do espaço de oração reservado às mulheres na Mesquita de Lisboa, onde não é suposto os homens circularem. No interior, ouve-se o adhan, chamada para a oração. Hanifa, o seu nome de convertida, ficará de fora.
Em 2008, numa conversa entre amigos muçulmanos, falou-se do profeta Maomé e Hanifa ficou fascinada sobre um tema que desconhecia. Não sabia nada sobre o islão, foi investigar. Mais tarde, numa viagem a Marrocos, em Tânger, ouviu o adhan e sentiu “qualquer coisa”. “Arrepiei-me e a primeira coisa que me veio à cabeça foi: ‘Tenho de ir à mesquita’.”
Mas não sabia rezar. Chegada a Lisboa, foi aprender árabe. O interesse pelo islão cresceu, até que em finais de 2009 se converteu. Hoje, aos 48 anos, diz que não teve de fazer grandes mudanças na sua vida. “Sempre fui cristã, mas havia algumas crenças que não faziam sentido para mim”, explica. Por exemplo, “Jesus ser filho de Deus: como é que o criador de tudo necessitava de um filho, humano?”
O islão tornou-se, assim, o seu código de vida, a fé que “lhe serve”. Nasceu cristã, tornou-se muçulmana, “submissa à vontade de Deus em todas as situações”, com “capacidade de ver para além das evidências, aceitar o que nos surge na vida, o bom e o mau”.
Usa o hijab (o lenço que cobre a cabeça) na mesquita, onde lecciona aulas de Português, mas também na rua — só que nem sempre. O hijab não pode ser uma peça de vestuário, um acessório, diz, é uma conduta que a mulher aceita e exterioriza. Quando anda na rua de hijab ouve, por vezes, piadas — miúdos que fingem falar árabe. Às vezes ignora, outras incomoda-se. “As pessoas ainda não se habituaram à ideia de que existem muçulmanos portugueses. Pensam que são todos estrangeiros. Muitos comentários que vejo na Internet sobre notícias como os atentados no Charlie Hebdo são: ‘Deviam ir para a terra deles.’ Chocam-me pela ignorância. Até comentei: ‘Sou portuguesa, sou muçulmana, então para que terra é que eu vou?’ Os portugueses não se habituaram que o islão não é uma nacionalidade, é uma crença. Acham estranho como podemos ser muçulmanos num país maioritariamente católico. E desconhecem o islão: falam do Corão como um livro que incita à violência sem nunca terem lido.”
Calcula-se que existam 50 mil muçulmanos em Portugal. Há quem pense que o número tenha baixado por causa da crise, mas como não há dados oficiais não é possível saber com rigor. Estão maioritariamente concentrados na zona da grande Lisboa — Odivelas, Laranjeiro, Palmela, Barreiro… — mas há locais de culto no Porto e no Sul. O grosso é sunita (como no resto do mundo).
No século XX, vieram primeiro nos anos 1950 e 1960, e eram moçambicanos de origem indiana. A seguir ao 25 de Abril, juntou-se outra vaga migratória vinda sobretudo da Guiné-Bissau, seguida, nas décadas seguintes, de muçulmanos originários do Bangladesh, Senegal ou Marrocos, mas em número muito menor.
Abdool Magid Vakil diz que foi o segundo muçulmano a chegar a Portugal no século XX. É um dos fundadores da Comunidade Islâmica de Lisboa e um dos rostos muçulmanos portugueses mais conhecidos. Economista e gestor que exerceu cargos de chefia em vários bancos, entre eles o Banco de Portugal e mais tarde o Efisa, fez parte do pequeno grupo de estudantes universitários muçulmanos vindo de Moçambique para estudar para Portugal nos anos 1950 e 1960. Sentado no hall de um hotel lisboeta, lembra, porém, que “o fenómeno do islão é muito antigo em Portugal, já vem da Andaluzia — e depois a Inquisição fez com que parasse tudo”.
Na fundação da comunidade entraram também ismailitas (uma das correntes do xiismo), pois Vakil “não fazia distinção”. Aliás, na universidade partilhava o quarto com um ismailita, “ele fazia a oração à maneira dele e eu fazia à minha”. Era uma época em que em Portugal não havia ideia do que significava ser muçulmano. “Ouviam falar dos árabes, dos sarracenos e mouros e outros nomes. Havia muita ignorância mas não havia maldade. Eu era um bicho raro. Não bebia, não comia carne…”
Por outro lado, na sua família tinham medo que ele, ao vir para Portugal e ao casar-se com uma portuguesa, perdesse a prática da fé. A mulher acabaria, porém, por se converter. “Fui a primeira família muçulmana de origem indiana a estabelecer-se cá”, conta, lembrando a época em que não havia mesquita e se rezava em sua casa. Mais tarde, quando já havia uma comunidade, seria a cave da residência do embaixador do Egipto a servir de local de oração, depois fez-se uma mesquita provisória num edifício no Príncipe Real, até ser lançada a primeira pedra da Mesquita Central de Lisboa em 1979 (inaugurada em 1985).
“Sou membro do European Muslim Network, um think tank baseado em Bruxelas, presidido pelo professor Tariq Ramadan. Uma vez numa reunião pública disse que em Portugal nunca houve problemas com os muçulmanos. Houve uma senhora que levantou o dedo e disse: ‘Parece que vive no paraíso.’ E é. Somos muito permeáveis. Há curiosidade — as pessoas querem saber porque fazemos assim ou assado. Mas não são xenófobas.”
O recente episódio de vandalização da mesquita, em que alguém escreveu 1143 a graffiti a seguir aos atentados ao Charlie Hebdo, leu-o como “algo inofensivo”. Os jihadistas portugueses são “filhos de imigrantes” convertidos e “são uma excepção”: “A verdadeira jihad é dominar a minha alma tirando a maldade”, explica.
Vakil não acha que os muçulmanos sejam invisíveis em Portugal, acha apenas que são discretos.
Em 1991, a socióloga alemã Nina Clara Tiesler veio estudar minorias religiosas em Portugal — nessa altura, diziam-lhe que os muçulmanos eram um “não fenómeno”. Investigadora do Instituto de Ciências Sociais e docente na Universidade Leibniz de Hanôver (Alemanha), contextualiza: a elite muçulmana que veio das ex-colónias, sobretudo de Moçambique, nos anos 1950, à qual Vakil pertence, constituiu o tecido principal da primeira vaga de imigração muçulmana e continua a ter um papel-chave no destino da comunidade islâmica. São aquilo a que chama a intelligentsia da migração. “Estas figuras conseguiram um caminho muito suave do processo de integração dos muçulmanos”, diz ao telefone.
Numa das suas teses, Muçulmanos na Margem: A Nova Presença Islâmica em Portugal (2000), defendeu que havia uma invisibilidade dos muçulmanos em Portugal, comparativamente ao resto da Europa. Depois disso, continuou a sua investigação em Portugal e continua a afirmar que, apesar de algumas coisas terem mudado, outras ficaram na mesma, mantendo-se alguma invisibilidade. “Na esfera pública portuguesa, não há muita discussão sobre pontos nevrálgicos que acontecem entre maiorias não-muçulmanas e minorias muçulmanas noutros países, como a educação islâmica ou a construção de minaretes, por exemplo.”
A socióloga explica-o com o facto de em Portugal a nova presença islâmica ser reduzida e com o facto de no quotidiano não ser muito fácil de identificar: não há o hábito de usar o hijab e as mulheres muçulmanas africanas, maioritariamente vindas da Guiné-Bissau, confundem-se com outras mulheres africanas. Para Nina, não há grandes diferenças, fenotipicamente, entre os muçulmanos de origem indiana e o povo português, “muito misturado”. Além disso, a questão da pobreza não está associada a minorias religiosas como em França e na Alemanha — em Portugal, apesar de afectar alguns muçulmanos, abrange outras fatias da população.
Porém, “para quem tem os olhos abertos”, os muçulmanos já ganharam visibilidade, pois são “dedicados aos programas de ajuda humanitária”, como a recolha de sangue ou o banco alimentar, ou a sopa para todos na mesquita. “Quando o Governo oficialmente não podia receber o Dalai Lama, eles receberam — Dalai Lama foi à mesquita que se tornou um lugar de reunião dos presidentes de comunidades religiosas. Tanto os sunitas, como os ismailitas da Fundação Aga Khan (com o seu importante programa de ajuda social Capacidade) estão nestes terrenos que não são políticos, porque para a emancipação religiosa temos os protestantes — o que noutros países acontece com os muçulmanos. Então os muçulmanos ganham visibilidade com coisas positivas. Eles já eram portugueses antes de virem de Moçambique para Portugal, por exemplo, e quando voltaram eram retornados, não imigrantes.”
A geração seguinte integrou-se pacificamente — ou, se quisermos, invisivelmente. Nina Tiesler lembra um estudo que fez com dados até 2006 que concluiu não existirem diferenças notáveis relativamente aos hábitos e cultura do quotidiano entre jovens muçulmanos portugueses e jovens portugueses não muçulmanos com o mesmo background socioeconómico: “São até mais portugueses do que alguns portugueses.”
Vem da oração de sexta-feira na Mesquita Central de Lisboa, usa um chapéu e túnica brancos. Muhamad Traore, 26 anos, designa-se como “afro-português” — nasceu em Portugal, os pais são da Guiné. É futebolista em Oeiras, está a treinar para ser profissional. O sonho é “jogar no grande Sporting”.
Sendo um dos cinco filhos de Fuad, assistente do xeque Munir, imã da mesquita, cresceu num ambiente religioso. A maior parte do seu tempo passa-o entre não muçulmanos: amigos de infância, amigos dos treinos. Se está com eles às horas de reza, num café, tem de se levantar e “correr para ir à mesquita”. Quando treina em horários incompatíveis com a oração, torna-se mais difícil cumprir.
“Nem todos os jovens seguem a 100% . O meu irmão é professor no colégio de Palmela, o meu pai lá em casa aperta comigo, dá conselhos: ‘Não te esqueças de que és muçulmano, podes estar com os teus amigos, mas quando é para rezar não te esqueças, tenta dar bom exemplo aos teus amigos.”
Como muitos muçulmanos, Muhamad estudou no único colégio islâmico em Portugal, em Palmela (estava em época de exames e não tinha ninguém disponível para nos receber). Sente que a imagem do islão foi afectada com acontecimentos como o 11 de Setembro ou os ataques ao Charlie Hebdo. “As pessoas que me conhecem nunca me disseram nada, sempre me trataram bem, mas quem não é meu amigo, quando vê muçulmanos, tem aquela imagem negativa que vê na televisão. Digo sempre: ‘Não somos todos iguais, eles têm uma cultura diferente da nossa’.”
Odivelas é uma das áreas de Lisboa onde há mais muçulmanos, e mesmo ali é raro usar “esta roupa”. Repara que quando as mulheres que usam o hijab passam as pessoas olham duas vezes. Tenta não ligar. Quando aparece assim vestido, os amigos dizem a brincar: “Ah taliban.” Mas é “tudo na base da brincadeira”, conta, a sorrir. Ele gosta de se vestir assim para se identificar como muçulmano. Mas gosta também de entrar nas igrejas e aprender sobre outras religiões. “Vivi cinco anos em Londres, lidei muito bem com judeus. A religião muçulmana é muito simples. Diz que o direito do homem é o mesmo que o direito da mulher. Até estava a comentar com um amigo que me perguntava porque é que na minha religião o homem era mais do que a mulher. Disse: ‘Não, o que um homem faz a mulher também’.” A separação física entre homens e mulheres na mesquita não é discriminação, acontece e “ainda bem” porque o olhar humano “não tem educação”: “A hora da oração é sagrada e temos de estar concentrados.”
Em Londres, uma cidade “livre”, entra-se num banco e vê-se uma pessoa “vestida como eu” e “é o gerente de um banco” — como pode ter tatuagens e ter essa posição, lembra. “É um país onde respeitam muito as pessoas. Aqui nunca vi, não sei porquê, não sei se algum muçulmano chegou sequer a ir vestido assim a uma entrevista de emprego…” De vez em quando sai à noite, mas “ocasionalmente” — não beber álcool não lhe custa. A namorada não é muçulmana, mas ele gostaria que ela se convertesse — “vamos ver”, comenta, a sorrir. Mas já cozinha para ele de acordo com os preceitos muçulmanos: nada de carne de porco nem de carne que não é halal.
O Talho Halal da Margem Sul, no Laranjeiro, fecha ao domingo e à segunda-feira, dia em que combinámos a entrevista. O dono, Adil Karim, abre-nos a porta. Passamos a montra frigorífica, em direcção à zona de pagamentos/escritório. Com chapéu branco e túnica acastanhada, Adil Karim convida-nos a sentar. Atrás de si está pendurado um quadro com um versículo do Corão, em árabe: “Ele é aquele que aceita o perdão por parte do seu servo e perdoa todos os pecados.”
Fornece outros talhos pequenos e tem clientes muçulmanos e não muçulmanos. Para os muçulmanos, a alimentação é muito importante, explica, e todos os aspectos que têm que ver com a carne, desde a pessoa que está à frente do negócio àquele que faz o abate, têm de ser respeitados. “Halal significa permitido. Como é que uma carne é considerada halal? A pessoa que vai fazer o abate tem de ser muçulmana, existe uma reza na altura da degola — não é permitido comer um animal sem levar o nome de Deus — e tem de saber como degolar para evitar a dor e o sofrimento. O objectivo da degola é que todo o sangue seja extraído do animal. Temos a crença de que se todo o sangue for retirado o animal fica apto a ser consumido e dificilmente haverá vestígios de doença. A própria carne é mais saudável.”
Adil Karim, 35 anos, veio de Moçambique com os pais para a zona do Laranjeiro, ainda criança. Já tinham alguma família e chegaram com a perspectiva de melhorar as condições de vida. Na escola achavam o seu nome diferente, mas não se sentiu discriminado apesar de ter ouvido algumas palavras mais incorrectas às quais nunca quis ligar — no geral, os portugueses são acolhedores, diz. Logo após o 11 de Setembro aconteceu andar na rua e ser chamado “taliban” ou “Bin Laden”, mas ele encarou-o “na desportiva”. “Se acontecesse numa instituição, por parte de alguém que ocupa um cargo importante, poderia considerá-lo discriminação. Na rua, acho que é mais ignorância.”
Fez o seu curso no colégio islâmico de Palmela e terminou-o em Inglaterra. “Na religião muçulmana, não há nenhum ser digno de ser adorado a não ser Deus e o profeta Maomé é servo e mensageiro de Deus — olhando para o exemplo de vida dele, tentamos seguir os seus passos a nível de vestuário, de conduta.” Por isso acha importante vestir-se com a roupa tradicional. Se trabalhasse num banco, seria mais difícil. “Temos de respeitar a entidade empregadora, devemos seguir e cumprir com o que está estipulado. Viemos para cá, somos imigrantes, temos de nos adaptar às leis e regras do país.”
Comparando com comunidades muçulmanas noutros países, como em França, onde são “mais fogosas”, a portuguesa é discreta: “A maior parte vem com a raiz portuguesa e adaptou-se bem.”
O xeque David Munir não pára. Na manhã de uma quarta-feira recebe um grupo de pessoas nos seus 60-70 anos. Ainda não acabou o tour ao local de culto e já tem um grupo de crianças a querer entrar. Munir desdobra-se, desliga o telemóvel que toca e toca, responde às perguntas do grupo mais velho tentando separar o que são práticas que têm mais que ver com a cultura local do que com a religião. “Muita coisa que é feita no mundo islâmico não tem nada que ver com a religião. Por favor”, diz. “Se um muçulmano quiser deixar de ser muçulmano, ele deixa. Islão significa submissão voluntária a Deus. Há outro versículo que diz que não se pode obrigar ninguém a ser muçulmano.” E continua: “Em alguns países árabes, se um muçulmano deixar de ser muçulmano, é complicado? É. Mas eu vivo em Portugal. Estamos a falar do islão. Por exemplo: mutilação genital feminina. Há quem associe ao islão. Não tem nada a ver. Suicidar, matar pessoas inocentes: é proibido”, enumera, com vigor.
Os pilares do islão são cinco: declaração da crença num Deus único, as cinco orações diárias, o jejum no Ramadão, a caridade e a peregrinação a Meca pelo menos uma vez.
A vida de xeque Munir passa-se neste espaço perto de Praça de Espanha, local de convergência das várias comunidades muçulmanas. A oração de sexta-feira é o resultado visual disso mesmo: mulheres com vestes coloridas e lenços sumptuosos contrastam com as mais discretas que usam o hijab em cores mais escuras.
Vive no quarto andar da mesquita, onde é o imã há 30 anos. Vinha por seis meses, ficou até hoje. No escritório está uma bicicleta, na qual tenta andar sempre que possível, há livros e uma estante com aviões de miniatura pelos quais tem um fascínio. É fim do dia, e a sua mulher, com hijab, dá sinal discreto à porta, a filha entra para falar ao pai mas vai logo embora. “Beijinho”, pede Munir, perguntando se a escola correu bem. O xeque tem três filhas e um filho. Mas a vida privada é a vida privada. Começa a cair o sol, hora da penúltima oração do dia.
“O islão é uma das religiões da Europa, não é só o judaísmo e o cristianismo. É muito importante os muçulmanos e não muçulmanos sentirem isto”, diz. “Para algumas pessoas em Portugal, o islão é a religião do imigrante — e não é. Nem o cristianismo, nem o judaísmo nasceram na Europa, vieram do Oriente, e o islão também. Claro que há muito mais cristãos do que muçulmanos na Europa. Mas ser muçulmano não significa que se é uma ameaça. Não podemos esquecer que os muçulmanos que vivem na Europa são europeus.”
No islão não há uma hierarquia mundial, como com os católicos. Cada país tem um líder e o xeque Munir é-o em Portugal. Acompanha de perto a comunidade há três décadas e caracteriza-a pela sua integração. “Os muçulmanos das ex-colónias podiam ter ido para um país islâmico mas vieram para Portugal porque já havia uma integração com os portugueses em Moçambique e na Guiné. As nossas equipas de futebol eram as do continente — Sporting, Benfica.” Outra das características é existir uma interligação entre as cerca de 40 mesquitas e locais de culto espalhados pelo país, o que faz com que se conheçam bem. “Qualquer pessoa que solicite fazer um sermão eu certifico que não é um radical”, conta. Depois, se existe um problema que exige a comunidade falar, “tentamos ter uma só voz, em vez de cada um dar a sua opinião”. Compara-o ao conselho de ministros onde existe um porta-voz. “Somos poucos, conhecemo-nos uns aos outros, temos essa vantagem. No resto da Europa, há cidades em que cada mesquita começa o Ramadão em dias diferentes, aqui não.”
O impacto dos acontecimentos como o 11 de Setembro e os ataques ao Charlie Hebdo sente-se, é óbvio. “É muito complicado explicar que não tem nada que ver com o islão porque as pessoas ouvem que Alá foi vingado, etc. De um lado, tentamos esclarecer as pessoas sobre o islão, do outro condenar os atentados, uma das primeiras coisas que fizemos. Mas também tentamos reflectir na necessidade de a liberdade de expressão ter de ser respeitada.”
David Munir viu os lugares de culto espalharem-se em Portugal ao longo dos anos. Praticar o islão hoje é mais fácil para os seus seguidores. Nota também maior interesse. “Mesmo da parte dos muçulmanos há necessidade de aprofundar um pouco mais, há mais diálogo, mais debates. O que era longínquo tornou-se curto.”
Sexta-feira, dia sagrado para os muçulmanos. Arif Hossain, 28 anos, está atrás do balcão de uma das dezenas de mercearias que abriram recentemente perto do Martim Moniz e vendem de pão a especiarias. Vive em Portugal há um ano e seis meses. Natural do Bangladesh, esteve primeiro em Londres, em 2010, e depois Espanha. “O nosso país está cheio e tem alguns problemas políticos. O Governo não é bom. Não há liberdade. Não posso dizer o que é bom e o que é mau, como aqui. Eu gosto da lei e da liberdade europeias”, explica, num inglês não muito avançado.
Sabe o básico de português, mas não o suficiente para manter uma conversa fluente. Mistura espanhol, português, inglês para elogiar Portugal. “Espanha e Portugal têm a mesma cultura. É bom.”
Há seis meses que trabalha nesta mercearia, cujo dono também é do Bangladesh. A família toda ficou lá. Entra um cliente e pede para pagar duas alfaces, ele responde em português. Muçulmano ou não, o que interessa é o coração das pessoas, diz-nos. Há bons e maus em todas as religiões.
Hoje em dia é difícil rezar na mesquita porque trabalha o dia todo. As orações durante o dia podem ser compensadas depois, o islão permite-o. Mas seria fácil encontrar uma na zona, por exemplo, a uns 500 metros da sua loja, na Rua do Benformoso. É um espaço que, de fora, ninguém diria ser local de culto: a porta é como qualquer outra da rua. Na divisão da entrada, os homens lavam os pés, as mãos, a cara. Está, de resto, projectada a construção de uma nova mesquita nesta zona, ao abrigo de um protocolo entre a Câmara Municipal de Lisboa e o Centro Islâmico do Bangladesh, dirigido por Rana Taslim Uddin (que estava ausente do país).
O antropólogo José Mapril tem estudado os muçulmanos do Bangladesh e nota que esta comunidade sofreu uma grande transformação desde 2011. “Falamos de uma migração que chegou no final dos anos 1980, sedimentou-se ao longo dos 1990, constituíram família, investiram em negócios, na educação da família, e começaram a passar dificuldades.”
Vários têm imigrado para outros países europeus e neste momento estão “a assistir a uma reconfiguração total da população do Bangladesh”. “Muitos dos interlocutores que entrevistei e tenho acompanhado investiram numa visibilidade da sua muçulmanidade: construíram uma mesquita no Martim Moniz, organizaram orações na praça do Martim Moniz nas duas celebrações do calendário islâmico anual onde rezavam 3 mil a 4 mil pessoas. Nos últimos anos, este cenário de visibilidade deixou de ser prioridade — a questão de ser muçulmano continua a ser muito importante na transmissão para as gerações mais novas, mas não tem a expressão pública que teve no passado.”
De qualquer forma, analisa: “Os muçulmanos em Portugal sempre tiveram uma grande diversidade religiosa, de rituais, de classes — são de empresários a operários da construção civil. A migração do Bangladesh complexificou este quadro porque trouxe outras pessoas com outras origens e outras lógicas, que partilham uma espécie comum de muçulmanidade, mas têm os seus espaços autónomos.”
Na sala de Shoeb Hasham, 32 anos, e de Sara Faruk, 23, há um enorme aquário com peixes a competir com o ecrã de televisão. Zayna, a filha de um ano, chama a atenção dos pais com quem conversamos no dia em que fazem “quatro anos de noivado”. Estão casados há três. Sara tem uma túnica preta com bordados dourados e um lenço a cobrir a cabeça no qual vai mexendo regularmente para o endireitar. “Shoeb, ela está farta de brincar com isso, é ‘bué da’ perigoso”, diz ao marido, pedindo-lhe que tire uma coisa da mão da filha.Namoraram seis meses até se casarem — e não foi bem namorar, explica Sara. “Conhecemo-nos primeiro. Tentamos perceber como é o rapaz, a família, depois é que começa uma aproximação maior.” Shoeb já tinha reparado em Sara na mesquita e “chegou a ela” através do Facebook. “Falávamos pelo Facebook, uma relação mais distante”, completa ela. “Entretanto, falou com o meu primo para tentar conhecer e mostrar que era uma coisa séria. O meu primo falou com os meus pais e eu pensei melhor, vi que era uma pessoa séria. Aceitei conhecê-lo.”
A 7 de Outubro de 2011 casaram-se. Shoeb é comerciante, trabalha com artigos bordados que vende para outras lojas numa empresa da sua família, Sara cursou gestão no Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, por enquanto está em casa até a filha ir para a escola. Gostaria de um dia exercer a profissão, até porque desde nova se habitou a ajudar na gestão dos lares de terceira idade do pai, moçambicano. Sara nasceu em Londres, Shoeb em Moçambique. “Rezo mais em casa, as mulheres não têm obrigação de ir à mesquita, os homens é que sim”, explica Sara, que chegou a estudar dois anos no colégio islâmico de Palmela, onde se aprende “tudo”, do Corão a História.
Têm amigos que não são muçulmanos, a mistura é pacífica. Há mais curiosidade, fazem-lhes perguntas para perceber o que é o islão e ficarem a saber que aquilo que aparece na televisão — os ataques terroristas — são feitos por um grupo, não por todos os muçulmanos. “Quando é um americano, por exemplo, que mata não sei quantas pessoas, diz-se que tinha problemas psicológicos. Como somos minoria, as pessoas acabam por culpar o grupo todo, e o verdadeiro islão não é isso, é paz”, comenta Shoeb.
Em Portugal, os muçulmanos não sofrem tanto essa colagem, dizem, nem são vítimas da hostilidade que acontece em países como a Alemanha, onde há marchas contra muçulmanos. Os portugueses “são muito empáticos”, considera Sara, que lembra os tempos da escola em que tinha a chave de uma sala para poder fazer as orações. “Ser muçulmano é um modo de vida, é a minha identidade”, explica. Shoeb completa: “O islão ensina tudo, desde comer a ir à casa de banho, a vestir, a forma de beber água, a resolver problemas — se não for pelo Corão, é pelos ensinamentos do profeta.”
Mais tarde, Shoeb envia-nos uma mensagem onde acrescenta: “Existe um dito do profeta que diz que não é um bom muçulmano aquele que dorme de barriga cheia enquanto o seu vizinho passa fome. Este dito não especifica se o vizinho é muçulmano ou cristão ou judeu, apenas demonstra a importância da empatia e solidariedade. A nível financeiro, posso referir os juros: para um muçulmano, são proibidos. Infelizmente um muçulmano que vive fora de um país islâmico tem de se sujeitar a esses termos. Portugal vai pagar à troika mais 50% do valor devido em juros. Sendo a troika uma instituição de ajuda, a meu ver o valor que é cobrado a Portugal não é uma ajuda mas sim um negócio.”
Sara tem um lenço na cabeça, mas “ainda” não usa o hijab. Ainda, porque quer vir a usá-lo. É esse o objectivo. “No islão, a mulher é considerada preciosa. O cabelo é a beleza da mulher, por isso Deus diz para nos cobrirmos e proteger-nos a nós próprias. Sei que devia usar, mas ainda não uso. Usei durante um ano, quando estava no 11.º ano, mas ia começar a faculdade e fiquei com um bocadinho de medo. Não sei porque ainda não chegou o dia em que acordo e digo que vou passar a usar, mas quero chegar lá.”
Shoeb gostava que a mulher tivesse hijab porque faz parte da religião e é “uma forma de ela se cobrir mais”. A mãe de Sara, a sogra, a cunhada, a sobrinha “que é mais nova”, usam hijab e ela vê hoje mais gente na rua a ter essa prática.
Dilsaz Ashraf Satar Kara, professora de Inglês há quase 20 anos num externato católico na zona de Olivais Norte, Lisboa, é uma das muçulmanas que passaram a usar hijab em Portugal.
Veio de Inglaterra quando tinha 19 anos. Nasceu no Malawi, colónia britânica em África. A vida não era fácil no Malawi mas o seu pai sempre fez tudo para dar educação aos filhos, “seja rapariga, seja rapaz”. Casou com um muçulmano de Moçambique, de quem teve três filhas. Os familiares estão em Londres, incluindo mãe e irmãos, e o inglês é a língua na qual prefere expressar-se. Encontramo-la numa gelataria na zona da Expo.
Dilsaz comenta, sobre Londres, que é um lugar “muito fácil porque a comunidade é grande, maior”. Vem com o hijab, mas nem sempre o usou. Só o faz desde o 11 de Setembro, depois do choque com a morte de um familiar em Londres. Pensava muitas vezes na forma como poderia mostrar que era muçulmana. No funeral, ao ver outras mulheres com um “vestuário mais sério”, pensou que se calhar isso mesmo lhe poderia servir como forma de expressar a sua identidade.
Encontrou, de facto, a solução. Ainda estava em Londres quando, ao telefone, comunicou ao marido a decisão. “Ele disse que era uma responsabilidade mas se era o que queria estava à vontade.” Quando chegou a Portugal, já trazia a cabeça tapada. As colegas tiveram um choque, mas depois de uma conversa com a directora do colégio, que aceitou pacificamente a sua opção, Dilsaz ficou descansada. “Tive muita sorte. Ter abertura no meu trabalho era muito importante.”
Diz-se curiosa, tendo estudado outras religiões. Acredita que o islão pode dar paz. “Há muitas pessoas que misturam a cultura com religião. Vêem uma senhora com o hijab e podem pensar que é fanática, do grupo da maldade.” O hijab é algo que faz parte do islão e usá-lo é “um tipo de protecção de todas as maldades”, define. Sente-se mais segura ao andar na rua com ele. “Nunca ninguém me impôs o hijab. É um acto em que podemos dizer a nós próprios que queremos aproximar-nos de Deus. Dá muita tranquilidade.” Dilsaz confessa que ficaria mais incomodada se a obrigassem a tirar o hijab do que se a obrigassem a tirar os sapatos.
As três filhas usam hijab mas nunca as tentou convencer: foi decisão própria.
Mariama Baldé, alta e grande, tem 11 anos que aparentam pelo menos 16. Traz um gorro e cachecol rosa. Diz na ponta da língua em árabe o nome das cinco orações que um muçulmano, ela incluída, tem de rezar. Explica também as muitas diferenças entre muçulmanos e cristãos: não pode comer carne de porco, por exemplo, e as meninas, depois de terem a menstruação, passam a ter de usar o lenço e roupas compridas. “Não podemos usar estas calças justas”, aponta para as de ganga que agora tem vestidas. Ela ainda pode. “Sou mais nova”, explica.Mariama é uma das filhas de Manso Baldé, presidente da Associação dos Muçulmanos guineenses há 16 anos. É na associação, uma cave perto da Almirante Reis que funciona também como lugar de culto, que os encontramos. Na sala de espera há revistas, como nos consultórios médicos. Há-de aparecer um irmão mais novo de seis anos que anda a aprender o Corão e árabe no colégio de Palmela, para onde vai de carrinha às 7h30. “Todo o muçulmano tem de saber de cor uma parte do Corão.” Manso Baldé, 57 anos, é psicólogo e muçulmano há 22. Ajuda as famílias que têm problemas. “Refugiamo-nos mais no conselho do sábio do que mandar os problemas para o tribunal.” Objectivo: que a família não se espalhe, que os filhos respeitem os pais.
“A religião muçulmana é para aumentar, não é para baixar. Temos uns 4 mil e tal associados”, contextualiza Manso Baldé. “Toda a religião muçulmana é pacífica. É uma religião de paz, não quer confusões. As pessoas é que confundem a religião com a vida mundana do dia-a-dia. Não há nenhuma religião que incentive a fazer maldade.”
As relações entre as diversas comunidades muçulmanas é boa, descreve. “Ainda hoje na oração das 16h estávamos a comentar que graças a Deus estamos num país não muçulmano e fazemos a religião que queremos.”
Garante que a filha Aissatu usa o hijab por opção, não a obrigou. Mas nota, sim, que há mais mulheres a usá-lo em Portugal. Interpreta-o com a influência dos contactos nas redes sociais. “Não é por causa dos pais.”
Manso Baldé telefona a Aissatu, 17 anos, que aparece pouco depois. O lenço tem pequenos bordados e uma túnica igualmente bordada. Está muito bem maquilhada. Estuda no Liceu Camões e quer seguir Direito Islâmico. A sua mãe usa o hijab, ela sabia a partir de que altura deveria usar. “No Corão está explicado que nós, quando saímos de casa, devemos tapar os cabelos, o corpo, não colocar roupas transparentes ou apertadas. Usar hijab não é sinal de opressão ou prisão, quer dizer que a mulher pode ter um papel na sociedade e que usando o hijab eleva o seu estado moral: estando assim tapadas não somos alvo de símbolo sexual.” Uma mulher andar na rua vestida de forma provocante é incorrecto? “Acho que se desvalorizam a elas próprias. Porque o corpo é nosso e não é preciso que todo o mundo o veja. O homem cobiça muito a mulher quando está menos vestida. Esses olhares estranhos são maldosos, e elas são olhadas com cobiça e desejo. Mas não julgo.”
E ela, por ser pouco comum usar hijab em Portugal, é olhada com estranheza? Ao princípio houve quem questionasse a opção, mas nunca se sentiu discriminada. Gostaria de ver mais mulheres com hijab em Portugal: basta ver o que se passa em Londres, que conhece bem, onde há uma comunidade enorme que mostra “com bastante força o islão”, e onde há também imensas lojas onde comprar roupa. “Usar o hijab é um sinal de crença e obediência a Deus. As pessoas quando olham para mim sabem logo que eu sou muçulmana e isso é importante porque como muçulmana devo mostrar o que sou e transmitir a verdadeira imagem da religião. Se andar com sapatos altos, minissaia, dou má imagem da religião.”
Apesar de dizer que é obrigatório, o Corão não impõe o uso do hijab. Cabe à mulher decidir fazê-lo. O mesmo se passa com a barba dos homens. Matéria de vastas discussões e controvérsia, é um símbolo que muda de acordo com o contexto — o uso do hijab numa faculdade em Paris por uma aluna que participa numa luta de afirmação (porque é proibido nos espaços institucionais) não tem o mesmo significado que o seu uso na Arábia Saudita, onde é imposto, nem o mesmo que em Portugal, onde é menos vulgar, ou em Londres, onde é comum. Se para alguns pode ser visto como opressão masculina, também há quem defenda que não o é menos do que usar roupas provocantes.
A antropóloga ismailita Faranaz Keshavjee lembra um episódio recente nos transportes públicos de Londres, quando estava a observar umas jovens com o hijab: a forma como o usavam e como se maquilhavam estava longe de apresentar a discrição e recolhimentos usados como justificação para o seu uso.
Para a antropóloga, não se trata de concordar ou de discordar do uso, mas nota dois problemas: “O primeiro é que o véu serve, entre muitas outras coisas, para a mulher se posicionar perante Deus e a sociedade de forma modesta, humilde e discreta. Não entendo como em muitos casos, salvo algumas excepções, estas mulheres usam lenços sofisticados e de grife (tipo Channel, Louis Vuitton, etc.) e usam maquilhagem carregada onde a sua suposta invisibilidade se torna ainda mais visível comparativamente a outras mulheres que não usam o véu. Segundo, parece que existe uma sobreposição de valores reinventados de um islão imaginado e retirado, provavelmente à letra, do Corão, que se mistura com o de ser mulher no mundo moderno.”
Aos seus olhos, o uso do hijab aparece como uma espécie de revivalismo islâmico — e fenómenos idênticos acontecem no universo masculino (barbas, túnicas, boné). Isto é algo que tem notado nos últimos anos por causa de acontecimentos como o 11 de Setembro e que passa por “um vincar mais acentuado do que é ser-se muçulmano”.
E ser muçulmano é, também, em Portugal muitas coisas. Ser ismailita é diferente de ser sunita. Como no resto do mundo, também em Portugal os ismailitas são uma minoria (cá serão cerca de oito mil). Os sunitas representam mais de 80% dos muçulmanos (designam Abu Bakr como o herdeiro de Maomé e primeiro califa).
Porém, por ser uma minoria e ter um líder espiritual vivo, o príncipe Aga Khan IV, a comunidade ismailita “às vezes é vista por outras comunidades muçulmanas como não sendo muçulmana sequer”, diz Faranaz Keshavjee. Em Portugal, a convivência “é muito salutar, já vem assim de Moçambique”. “Portugal e os portugueses aceitaram muito bem a coexistência e isso facilita a convivência entre todas as comunidades, acabamos por estar mais perto da identidade nacional e depois temos uma fé que praticamos.”
Na mesquita, juntam-se, para a oração, sunitas e ismailitas, mas os sunitas ou não muçulmanos não podem estar no espaço de oração dos ismailitas, pois para isso é preciso “aceitar que Ali e o seu representante, o príncipe Aga Khan, são o imã do tempo e eles é que têm a autoridade máxima da adaptação do texto sagrado à sua realidade contemporânea”. Não o aceitando, “não é possível fazer oração em congregação”. Os ismailitas estão, no entanto, à vontade numa mesquita porque “o princípio de aceitar que Deus é um só, Maomé é o último dos profetas e que o Corão é o livro sagrado é a linha que nos une a todos”.
A comunidade ismailita portuguesa é próspera, do ponto de vista demográfico é miscigenada, é organizada, “trabalha muito bem dentro das instituições internas e faz um trabalho notável de contributo para a sociedade portuguesa”, descreve. “Toda a cultura de diáspora é muito interiorizada, se for preciso, os ismailitas emigram em busca de melhores condições de vida.”
A geração que nasceu cá tem licenciaturas, muitos tiraram mestrados ou estão a fazer doutoramentos no estrangeiro, continua. “É uma população que investe muito na área da educação — estou a incluir as mulheres, porque o mesmo que se espera de um filho espera-se de uma filha. Aliás, coloca-se a ênfase na educação secular da mulher, fora do âmbito da cultura de casa, porque desde o tempo do avô do actual líder espiritual que existem missivas no sentido de que, se os pais tiverem poucas oportunidades de dar educação aos filhos e precisarem de escolher, optem por dar educação às raparigas porque são elas que vão ser os canais de transmissão dos valores e de tudo o que está associado à literacia.”
Faranaz Keshavjee tem, porém, críticas sobre o papel da mulher na comunidade, nomeadamente quanto à ausência nos papéis de liderança, mas também as tem sobre o contexto português em geral — “não vejo mulheres na política, em cargos de liderança e de topo”. “Ao mesmo tempo, este posicionamento acaba por ser legitimado pela sociedade em que vivemos: ‘É o que se passa lá fora, portanto não é preciso fazer ajustes’.”
E a invisibilidade continua a ser um traço da comunidade muçulmana portuguesa? Faranaz Keshavjee lembra que, por um lado, nos grandes momentos nacionais os representantes das comunidades muçulmanas estão presentes, portanto existe visibilidade; por outro, “quando falamos do grosso da população, não creio que saibam o que é o islão”. É verdade que há muitas visitas de escolas à mesquita central ou ao Centro Ismaili e à Sinagoga, mas ninguém ensina a filosofia dos muçulmanos e dos judeus, o seu contributo para a História: “Esta lacuna é grave; há 20 anos que falo desta necessidade.”
De qualquer forma, dentro do contexto europeu, Portugal “é um case study”. “É importante mostrar como somos um exemplo para o resto da Europa por causa dessa convivência harmoniosa das comunidades, aceitação da diferença, vontade de conhecer. Tudo o que acontece na Europa e no mundo acaba por nos afectar, e nesse sentido tenho visto islamofobia. Preocupa-me que se ponham todos no mesmo saco quando se fala de grupos totalitaristas e extremistas. Se não se criarem medidas na nossa sociedade para que possamos fazer valer esta convivência saudável e pacífica e cultivar a boa informação vamos começar a olhar para o vizinho do lado e pensar, como já vi escrito: ‘não sei se o meu vizinho do lado não traz uma bomba com ele’.”
Hasina Saiyad, 60 anos, é vice-presidente da Comunidade Islâmica há uns três ou quatro anos - não se lembra bem. A direcção pensou nela porque não havia mulheres naquele cargo e por conhecer o seu trabalho na comissão social da mesquita como sub-coordenadora do zakat, a esmola obrigatória para os muçulmanos (2,5% do seu rendimento anual para ajudar os carenciados), conta.
O trabalho na comissão social da mesquita é das coisas que mais gosta de fazer, “é muito gratificante sentir que se está a ajudar as pessoas”, diz-nos, entre um golo no chá na sala da sua casa em Oeiras, num prédio junto à marginal. Hasina saiu de Moçambique antes da independência, em Janeiro de 1975. Primeiro foi para a Índia, onde ficou três anos, com quatro dos 12 irmãos. Em 1978 vieram para Portugal, porque se sentiam portugueses: “Andei na Mocidade Portuguesa, os meus irmãos fizeram a tropa, era natural”, conta.
Instalaram-se em Oeiras, no Alto da Barra. Hasina, então a estudar Matemática, acabaria por fazer um curso de análise e programação, algo raro na altura, ainda para mais sendo mulher, e fez depois o bacharelato de informática. É consultora numa multinacional da área de automóveis há 20 anos. “As pessoas ficavam a olhar para mim: ‘não comes carne de porco porquê?”
Com familiares em Inglaterra, Hasina acha que os muçulmanos em Portugal estão mais bem integrados. “Lá vivem nos mesmos bairros, não se dão com ingleses. Aqui não: os amigos dos meus filhos são cristãos, a minha melhor amiga de infância é católica. O que caracteriza os muçulmanos portugueses é a sua integração e o viver em harmonia”.
Nunca usou o hijab. “Não é tão importante assim. O comportamento, a caridade, a compaixão são muito mais importantes do que usar o hijab”.
Não acha, porém, que seja sinal de opressão sobre a mulher, nem que exista machismo, até porque a religião muçulmana trata os homens e mulheres de forma igual, defende. “A mulher teve sempre o direito ao voto e toda a liberdade. No Corão a mulher é igual ao homem. A primeira esposa do profeta Maomé era comerciante. Acho que as pessoas tendem a confundir cultura com religião. Os casos de machismo existem em qualquer cultura, porque se há-de falar da religião muçulmana?”
Toda a gente que a conhece sabe que é muçulmana. Ela sente orgulho em sê-lo. Acha que essa, é, aliás, uma característica comum aos muçulmanos. “A religião muçulmana é uma coisa tão simples e natural… Se por acaso deixar de fazer as cinco orações do dia não deixo de ser muçulmana, não há ninguém que me excomungue, só se eu disser: já não sou muçulmana.”
De volta à Almirante Reis, Manso Baldé diz-nos algo parecido quando lhe perguntamos se deixar de acreditar em Deus, de ser muçulmano, seria possível para algum dos seus filhos. “Não, isso não. Um muçulmano sabe que Deus existe, um muçulmano não duvida. Há muçulmanos que podem beber álcool, ou isso — é um problema entre eles. Podem falhar, porque Deus criou o ser humano para falhar, podem pecar e pedir perdão. Mas é muito difícil um muçulmano deixar de ser muçulmano. Não conheço nenhum.”