Num ano foram detectados 43 casos de mutilação genital em Portugal

Aconteceram há muito. Dizem respeito a mulheres, sobretudo da Guiné-Bissau, da Guiné-Conacri e do Senegal, submetidas à excisão quando eram pequenas.

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Por força dos fluxos migratórios, admite-se que a mutilação genital também possa ocorrer em Portugal FINBARR O’REILLY/REUTERS

A excisão é uma prática enraizada em 28 países africanos. Por força dos fluxos migratórios, foi levada para o Médio Oriente, a Ásia, a América, a Austrália e a Europa, incluindo França, Itália, Holanda, Reino Unido e Portugal, onde é encarada como uma violação de direitos humanos baseada no género.

Portugal figura na lista por nele residirem pessoas oriundas de países com forte tradição de excisão genital, como a Guiné-Bissau, o Senegal, o Egipto, a Gâmbia, a Nigéria ou a Serra Leoa. Presume-se que se pratique, embora em grande secretismo, dentro do território nacional. E há notícia de crianças levadas ao país de origem durante as férias para aí serem sujeitas ao “corte”.

O registo na plataforma de dados de saúde começou a ser feito há precisamente um ano, no âmbito de um conjunto de medidas destinadas a erradicar a mutilação genital feminina. Meia centena de médicos, enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais fizeram uma formação organizada pela Direcção-geral da Saúde (DGS) em parceria com a Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG), a Associação para o Planeamento da Família e a Escola Superior de Enfermagem de Lisboa. Ficaram mais preparados para descobrir estes casos e  lidar com eles, afiança Lisa Vicente, Chefe de Divisão de Saúde Sexual, Reprodutiva, Infantil e Juvenil da DGS.

Segundo explicou Lisa Vicente, “os 43 casos [registados neste primeiro ano] foram detectados no âmbito da saúde reprodutiva”. Há mulheres mais velhas e mulheres mais jovens, mas quase todas têm 20/30 anos e foram submetidas à excisão quando eram pequenas. Vieram quase todas da Guiné-Bissau, da Guiné-Conacri e do Senegal e moram na área metropolitana de Lisboa.

Não é uma realidade homogénea dentro das comunidades. Depende muito do grupo étnico, da localização geográfica e da condição socioeconómica, mas a mutilação genital tende a ser praticada em meninas com idades compreendidas entre os quatro e os doze anos. Há indícios de que, para ludibriar as autoridades, as famílias sujeitam as crianças cada vez mais cedo a este ritual.

Até 2013, deram entrada nos tribunais portugueses três casos. O primeiro foi arquivado por ter prescrito; o segundo ocorreu fora do país com cidadãos estrangeiros – e considerou-se que os factos não constituíram uma ofensa à integridade física grave; o terceiro diz respeito a uma criança sujeita a mutilação pela avó paterna, que entretanto morreu, pelo que o processo também foi arquivado.

“O que tem vindo a ser feito é no sentido de uma maior articulação entre cuidados de saúde, Ministério Público e comissões de protecção de crianças e jovens (CPCJ)”, explicou a médica. “Isto tem dado resultados na área Almada/Seixal, no Hospital Garcia de Orta, e na área Amadora/Sintra, nos agrupamentos de centros de saúde dependentes do Hospital Fernando da Fonseca”, esclareceu. “Na maternidade Alfredo da Costa também têm sido encontrados alguns casos”.

Não só médicos e enfermeiros estão mais preparados para detectar mulheres submetidas a tal prática como têm orientação para tentar perceber se existe risco de elas fazerem o mesmo às filhas ou sobrinhas que possam ter. Havendo risco, a informação segue para as comissões de protecção de crianças e jovens. 

Em Junho do ano passado, a Comissão Nacional de Protecção de Crianças e Jovens enviou a todas as comissões um documento sobre esta prática ancestral nalgumas zonas de África. Pede-se que partilhem informações com “unidades de saúde, creches, jardins-de-infância e escolas, Polícia, Organizações Não Governamentais e associações e grupos informais de imigrantes”. “Se existirem indicadores consistentes da possibilidade de ocorrência da prática de MGF, a CPCJ deve agir de imediato e em simultâneo comunicar ao Ministério Público”, dita o documento.

“Isto são factores protectores importantes”, comenta Lisa Vicente. Na sua opinião, mais importante do que punir os infractores é mesmo evitar que mais meninas sejam sujeitas a estas práticas ancestrais africanas, presentes em diversas etnias animistas, muçulmanas e cristãs. Para chegar às crianças e jovens em risco, acha importante alterar até a linguagem usada. Parece-lhe que os profissionais têm de usar as palavras “corte” ou “tradição” ou “fanado” em vez de mutilação ou excisão. “Também não chamamos mutilado a um coxo”, exemplifica. 

Os 50 profissionais que receberam formação específica ficaram de fazer projectos nos respectivos locais de trabalho. Esta sexta-feira, Lisa Vicente faz o balanço dessas iniciativas na sessão evocativa do Dia Internacional da Tolerância Zero à Mutilação Sexual Feminina, que será aberta pela secretária de Estado dos Assuntos Parlamentares e da Igualdade, Teresa Morais, às 15h, no Hospital de S. Francisco Xavier, em Lisboa.

Há um ano, entrava em vigor o III Programa de Acção para a Prevenção e Eliminação da Mutilação Genital Feminina 2014-2017. Com 12 novas medidas, de um total de 42, o novo programa integra o V Plano Nacional de Prevenção e Combate à Violência Doméstica e de Género.

O programa “está em plena execução que corre a bom ritmo, de acordo com a calendarização fixada”, informou o seu gabinete, por email. “O Grupo de Trabalho que tem a cabo a sua implementação tem reunido regularmente e em Março será apresentado à Assembleia da República o primeiro relatório intercalar”, adiantou ainda a mesma fonte.

Prevê-se o envolvimento das comunidades originárias de países com tais práticas, chamando associações de imigrantes para acções de prevenção e estabelecendo contactos com líderes religiosos e outros interlocutores privilegiados, que possam condenar este costume. O imã da mesquita de Lisboa já o fez.

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