Áurea vence o cancro a sorrir: "Vai doer mas vai passar"
Aos 38 anos, um cancro da mama virou-lhe a vida do avesso. Foi operada, fez quimioterapia, depois radioterapia. Mas nunca deixou de combater: "É preciso acreditar todos os dias que o dia seguinte virá." Um testemunho optimista no Dia Mundial da Luta Contra o Cancro.
Enfermeira no Hospital de São João, no Porto, Áurea, agora com 39 anos, emociona-se durante a entrevista por uma única vez. Quando fala daquele que considera o pior momento de todo o processo: "Contar aos meus pais foi o mais difícil de tudo." "Foi um dia ao jantar", recorda. "A minha mãe chorou, a minha irmã chorou, o meu pai engoliu tudo." Mas o cancro não é uma barreira na vida dela, não há um "antes de" e um "depois de". Foi uma fase. Ponto. E foi para partilhar esta maneira de conviver com a doença, nunca deixando de "acreditar" e de "lutar", que Áurea decidiu participar numa campanha fotográfica com doentes oncológicos, chamada Despir o Preconceito.
Por dia, morrem em Portugal 70 pessoas vítimas de tumores malignos, avançou no segundo semestre de 2014 o Instituto Nacional de Estatística, acrescentando que, apesar de este ser o número mais elevado de sempre, as perspectivas são de um aumento ainda mais significativo nos próximos anos. O cancro é a segunda causa de morte em Portugal, depois das doenças cerebro-cardiovasculares, e estima-se que, por ano, vitime 20 a 25 mil pessoas. Neste Dia Mundial da Luta Contra o Cancro, 4 de Fevereiro, fica aqui este testemunho, na primeira pessoa, escrito a partir de uma entrevista:
"Nunca pensei na morte. Para mim, estava fora de questão. E nunca tive medo. Sempre pensei em ir em frente, acontecesse o que acontecesse. Os outros, o medo deles, foi o que mais me incomodou. A minha mãe teve cancro da mama, o meu pai teve cancro da bexiga. Quem sofre é quem está do outro lado. Quando se está dentro pode-se lutar. A doença muda algumas coisas em nós, mas para mim não há um antes do cancro e um depois do cancro. O que mudou foi passar a viver mais para mim. E deixei de esperar o que quer que seja. Tudo o que vier é bom, mas não tenho expectativas. Não vejo isto como uma fase negativa da minha vida, vejo como uma fase. Ponto. Aconteceu-me a mim como podia ter acontecido a qualquer pessoa. Porque não eu? Há quem pergunte 'Porquê eu?' Mas porque não pensar ao contrário? Ao fim e ao cabo isto não pode ser nenhum castigo divino, porque, se fosse, não havia crianças doentes, não é? Sempre fui uma pessoa positiva e continuo a dizer que temos de ver o lado bom das coisas más — isso ajuda muito.
Há uma coisa muito engraçada nesta doença: a gente decora datas, são como se fossem aniversários. No dia 19 de Dezembro de 2012, estava em casa a decorar bolachas de Natal para os meus primitos e deu-me uma comichão na mama. Cocei e senti um nódulo. Tinha feito uma ecografia meses antes, mas, com a história anterior da minha mãe na cabeça, liguei logo a uma amiga minha do hospital para desabafar. Disse-lhe que queria ir no dia seguinte fazer uma biópsia. O facto de ser enfermeira e conhecer bem os processos facilita as coisas. Fui ao serviço de oncologia no São João e fiz a biópsia. Passei o Natal sem contar a ninguém e só recebi os resultados no dia 26 de Dezembro. Estava a trabalhar. A médica liga-me e diz: 'Áurea...' E eu respondi logo: 'Não precisas de dizer mais nada, eu já desço.' A médica deu-me a notícia e as lágrimas caíram-me pela cara abaixo. Foram uns minutos. Depois disse: 'O que vamos fazer?' Fui almoçar fora nesse dia, com uma amiga. Pensei e decidi logo que não queria ser operada no meu serviço, no meu hospital. Queria o meu momento, a minha privacidade. Contactei uma médica que tinha passado pelo São João e que dava consultas na Ordem da Trindade. Marcámos logo a cirurgia. Ela deu-me todas as opções e eu decidi. Fui sempre eu a decidir. Não quis fazer mastectomia. Tirei o tumor e fiz pesquisa do gânglio sentinela, para saber se tinha de fazer esvaziamento axilar. O meu maior medo era ter de o fazer. O braço fica muitas vezes com edema e era o direito, muito importante para o meu trabalho como enfermeira.
Depois da operação há um tempo de espera pelos resultados, para ver se a 'quimio' é precisa ou não. Já sabia que tinha de fazer radioterapia, mas quimioterapia tinha de esperar. O resultado era muito borderline, tinham dúvidas se era preciso fazer ou não quimioterapia. A única hipótese que tinha era fazer um exame chamado 'mammaprint', que se faz a toda a gente nos EUA, mas cá não. Claro que se pensa que pode não haver necessidade de fazer 'quimio', mas também se pensa que são 3700 euros por um exame. Decidi pagar — era o dinheiro que andava a juntar para fazer a minha viagem de sonho, a Buenos Aires. Foi tudo para Amesterdão, onde fazem esse exame. O resultado veio e concluiu que tinha de fazer 'quimio' e mais sessões do que aquelas que teria feito sem saber dos resultados. Foi a parte mais dolorosa de todas em termos físicos. Quando tento explicar o que senti, digo às pessoas que, se estivesse em cima da ponte naquele momento, eu atirava-me. Isto é no sentido metafórico, atenção. Eu nunca pensei nisso, nem sequer pensei algum dia na morte. Nunca. Cada pessoa reage de uma maneira. Para mim a 'quimio' foi indescritível... Mas pensava sempre 'vai doer mas vai passar', 'vai doer mas vai passar'. A gente tem de acreditar em algo e eu sempre acreditei que ia correr bem. Em termos físicos abalei, mas em termos psicológicos não.
À terceira semana de 'quimio' caiu-me logo o cabelo. Mas essa questão nunca me incomodou. Eu tinha um cabelo muito comprido e adorava o meu cabelo. Nunca gostei de cabelos curtos. Mas sabia que não havia volta a dar. Então rapei, assim sem meios cortes. Comprei uma peruca, mas já tinha decidido optar pelos lenços. Com as pestanas e as sobrancelhas foi diferente. A nossa expressão muda muito e isso custava-me. Mas fui fazendo uma colecção de pestanas postiças e pintava sobrancelhas. Não saía de casa sem me maquilhar. Crie a minha forma de lidar com a doença. Fui ao psicólogo uma só vez, as minhas amigas achavam que eu estava a reagir bem demais. O psicólogo disse que realmente fazia uma gestão das minhas necessidades muito boa. Eu afastei amigas próximas no primeiro impacto, sabia que não era bom para mim. Tinha de as consolar, às vezes. Desliguei muitos telefonemas. Sei que as pessoas choravam sem ser à minha beira. Afastei-me disso tudo.
O mais difícil de tudo foi contar aos meus pais. Foi um dia ao jantar. A minha mãe chorou, a minha irmã chorou, o meu pai engoliu tudo. A família foi muito importante. Os amigos também. Tinha 38 anos quando isto aconteceu, Na altura falaram-me da possibilidade de fazer preservação de ovócitos, porque não tinha filhos ainda. Ponderei durante um tempo, mas eu tinha um tumor hormonal e ia injectar-me de hormonas. Depois, quando acabasse o tratamento, ia ser mãe aos 43, 44, 45. Podia estar a querer ter um filho à custa da minha saúde. Pensei que, se a questão se pusesse mais tarde, eu teria outras alternativas para ser mãe, e decidi não o fazer. Há que aceitar.
Participei numa campanha, em 2013, o Despir o Preconceito, porque acho que ele ainda existe e muito. As pessoas ainda têm muito a coisa do "coitadinha". Não fazem por mal, mas os portugueses são muito melodramáticos e põem muito pessimismo nas coisas. Decidi participar nessa campanha para tentar combater essas ideias. Muita gente começou a acrescentar-me no Facebook e a fazer-me perguntas. Era quase um consultório. O que digo sempre a quem está a passar por isto é 'acreditem e lutem'. É preciso acreditar todos os dias, que o seguinte virá. E depois, muito importante, nunca nos desvalorizarmos. Mesmo a nível físico. Continuo a dizer que tenho saudades minhas, é verdade. Tenho saudades do que conseguia fazer antes da doença. Ainda não recuperei toda a força dos braços, já parti colecções inteiras de louça, no meu trabalho tenho limitações. Ainda tenho de tomar uma pastilha todos os dias e vou a imensas consultas. Mas, mais uma vez, é viver dia-a-dia. Um dia de cada vez, sempre. Aos poucos chegarei lá." Veja mais em p3.publico.pt