Um quotidiano de tortura e medo, escrito a partir de uma cela de Guantánamo

Mohamedou Ould Slahi foi detido na Mauritânia, em Novembro de 2001, e nunca mais foi libertado. Em 2005, escreveu um diário na prisão norte-americana de Cuba que só agora os seus advogados conseguiram ver publicado.

Um dos irmãos de Mohamedou, Yahdih, e a sua advogada Nancy Hollander, com o livro da mão
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Um dos irmãos de Mohamedou, Yahdih, e a sua advogada Nancy Hollander, com o livro da mão Ben Stansall/AFP
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Ainda há 122 detidos na prisão de Guantánamo, que o Presidente Barack Obama prometeu encerrar quando foi eleito MLADEN ANTONOV/AFP

Slahi foi detido na Mauritânia, em Novembro de 2001. Já tinha sido interrogado no passado – quando tinha 20 anos, em 1991, partiu para o Afeganistão e combateu ao lado do que era já a Al-Qaeda, que acabara de derrotar os soviéticos. Passou por lá duas vezes e desistiu, diz que mal disparou uma arma.

Entretanto, vivia na Alemanha, onde chegou em 1988, com uma bolsa de estudo. Licenciado em Engenharia, tinha trabalho e casou. Passou pelo Canadá e, em 2000, regressou à Mauritânia, para perto da mãe (o pai morreu quando tinha 13 anos) e dos onze irmãos. Depois de Nova Iorque e Washington, diz que foi por vontade própria à polícia e que nada o ligava aos atentados. Nunca mais voltou. Uma semana depois, chegava à Jordânia, já nas mãos da CIA. Em Julho no ano seguinte, foi transferido para Bagram, no Afeganistão; um mês depois, aterrava em Guantánamo e passava a ser o detido 760.<_o3a_p>

No manuscrito, editado com 2500 cortes visíveis, as partes censuradas (nomes, expressões, partes de frases ou páginas inteiras), Slahi lembra como foi completamente despido e obrigado a entrar num avião. “Um membro da equipa pôs-me uma fralda. Foi nessa altura que eu tive a certeza que o avião ia para os EUA. Então comecei a convencer-me de que tudo ia ficar bem.”<_o3a_p>

Não foi o que aconteceu. O diário, escrito em inglês, descreve espancamentos, humilhações, ameaças de morte contra ele e a sua mãe, sessões de tortura permanentes. Segundo a investigação do Comité das Forças Armadas do Senado, divulgada em Dezembro, o regime de interrogatório preparado para Slahi em 2003 incluía privação de sono, luzes de flash ou ameaças com cães. <_o3a_p>

São desse período os interrogatórios de 20 horas, com pés e mãos acorrentados, em celas geladas. “Levanta-te, cabrão’, gritaram os dois, quase ao mesmo tempo. Voltaram a fazer-me as mesmas perguntas sem parar depois de me obrigaram a permanecer de pé, mas não valia a pena. Eu disse-lhes milhões de vezes: ‘Sempre que me torturarem não vou dizer nem uma palavra’”, escreve Slahi. <_o3a_p>

Piorou, depois da aprovação, pelo então secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, de um novo plano com “com técnicas de interrogatório adicionais”. Um dia, em Agosto de 2003, Slahi passou horas a ser espancado por diferentes grupos de interrogadores, acorrentado e com um saco na cabeça. “Pensei que ia ser executado”, escreve. “Um deles bateu-me com tanta força que a minha respiração quase parou e eu estava a sufocar”, descreve.<_o3a_p>

Arrastado para um barco, foi obrigado a beber água do mar e espancado. Transportado para novo barco, puseram-lhe outro saco na cabeça e uma espécie de blusão. Slahi ouvia vozes em inglês e árabe. Alguém “estava a fornecer a equipa árabe com materiais de tortura” para as horas seguintes. “A ordem era a seguinte: eles enchiam o ar entre as minhas roupas com cubos de gelo do pescoço até aos tornozelos e, sempre que o gelo derretia, punham novos cubos. De vez em quando, um dos guardas batia-me, quase sempre na cara.”

Mentiras e alucinações
A partir de certa altura, em vez de dizer a verdade, Slahi começou a responder “sim” a tudo o que lhe era perguntado, admitindo tudo, incluindo um plano de atentado contra a torre CN de Toronto. “Comecei a alucinar e a ouvir vozes. Ouvi a minha família numa conversa normal, leituras do Corão. Ouvi música do meu país. Depois os guardas usavam estas alucinações e começaram a inventar vozes que me chegavam pelos canos, encorajando-me a tentar fugir.” <_o3a_p>

Slahi, hoje com 44 anos, nunca foi acusado e os próprios procuradores de Guantánamo consideraram que as suas confissões, obtidas sob tortura, não tinham valor. O jornal britânico Guardian, que tem divulgado excertos do Diário de Guantánamo, publicado esta semana em vários países, nota como Slahi nunca parece ter perdido completamente a noção da realidade e chega a conseguir encontrar ironia na sua situação. <_o3a_p>

Numa audiência, já depois de ter acabado o diário, perguntam-lhe para onde gostaria de ir. “Canadá”, responde. No fim, o presidente do painel explica-lhe que a sua recomendação será transmitida ao “responsável civil designado”. “Não estou muito chateado, mas é extraordinário que a minha vida vá ficar nas mãos de alguém chamado ‘civil designado’”, responde. O Guardian nota que há uma palavra ausente do diário – desespero –, mas conta 28 vezes a palavra “medo” e 23 “assustado” ou “aterrorizado”.<_o3a_p>

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