As maiorias absolutas “trazem a arrogância de braço dado”
Júlio Machado Vaz não quer ser deputado, mas decidiu participar activamente na campanha para as legislativas. E contribuir para uma solução de Governo de esquerda.
Até porque, defende: “Em países civilizados nunca é uma tragédia ter de governar com acordos, com coligações.” Ainda que admita que o secretário-geral dos socialistas, António Costa, possa escolher outra “noiva”, assume que quer que o PS ganhe as eleições. E espera que um Governo de esquerda em que a Candidatura Cidadã Tempo de Avançar venha a participar tenha uma preocupação prioritária com os cuidados primários de saúde e com a requalificação na Segurança Social.
Por que aderiu agora ao activismo político e decidiu colaborar em sessões públicas com a Candidatura Cidadã Tempo de Avançar?
Nos últimos 30 anos, na área da sexualidade e da toxicodependência, estive sempre a fazer política, mas não assim, em stricto sensu. Agora, em termos mais estruturais, fui sempre um independente de esquerda. Para mim, é importante distinguir entre independente e não filiado. Há pessoas muito respeitáveis que são não filiadas num determinado partido, mas estão sempre com esse partido. Eu já votei em todos os partidos à esquerda. Também já votei em branco. Já fui duas vezes mandatário do dr. Jorge Sampaio à presidência e estive envolvido na campanha do engenheiro António Guterres.
E agora? Por que está na Tempo de Avançar?
Tenho observado com muita preocupação o aumento da abstenção e do voto nulo e do voto em branco. Se para a abstenção há múltiplos factores, entre eles, pelo que tenho lido, há o factor de as pessoas estarem mortas, o voto branco e nulo parece-me sempre ter tanto de protesto como de apelo à modificação de práticas, a outras vias. Eu próprio, nas últimas quatro legislativas, votei duas vezes em branco. Votei PS, branco, PS, branco. E embora não tenha nenhuma prova disso, acho que muito do voto branco é à esquerda. Acho que há uma fatia grande de povo de esquerda que está num processo crescente de orfandade. Nesse sentido, só há dois caminhos: ou os partidos de esquerda funcionam de uma outra maneira ou se pensa em encontrar outras vias.
Vê essa diferença no Livre e na dinâmica eleitoral que este partido está a criar?
Nas europeias eu votei Livre, porque sempre acompanhei o trajecto do Rui Tavares e teria gostado que ele se mantivesse como deputado europeu. Depois as ideias base do movimento, que me foram apresentadas, são questões e preocupações que em grande parte eu partilho, assim como me agradou a metodologia seguida. E fiquei com vontade de participar. Por isso fui à sessão da Cooperativa Árvore [no Porto]. Acho que correu bem. Foi reconfortante ver tanta gente na Árvore, numa noite gélida. Houve muita conversa com a platéia, obviamente diferenças de opinião, mas houve muito a sensação de que se estavam a discutir ideias e de que havia um caminho a fazer. Agora a minha posição pessoal é de que há pessoas que estão iludidas com isto.
Por que razão considera que há pessoas iludidas?
Se as coisas continuarem a correr como eu gostaria que corressem, muito provavelmente - e eu acredito nisso - haverá um grupo parlamentar da Tempo de Avançar. Mas desejo vivamente que o PS ganhe as eleições. Em contrapartida, não vou ser hipócrita, não sou um fã das maiorias absolutas, seja para que partido for. Trazem a arrogância de braço dado, com demasiada frequência. E em países civilizados nunca é uma tragédia ter de governar com acordos, com coligações, etc. Mas o que acho é que há pessoas que estão muito convencidas de que, se o movimento for para a frente, haverá algum tipo de entendimento - porque há várias possibilidades - com o PS e a Tempo para Avançar. Independentemente dos resultados, o que eu acho é que, muito provavelmente, haverá noivas, muito mais apressadas e disponíveis, as quais o dr. António Costa, se o PS ganhar, poderá escolher. Mas a Tempo de Avançar deve ter um grupo parlamentar aberto a esse diálogo e a assumir o poder de alguma forma, não é necessário ser ministro. Mas se isso não significar, é evidente, abdicar de princípios só para arranjar um consenso. À partida, noutro espectro partidário, não me admiraria que houvesse gente, digamos assim, mais flexível.
Está disponível para participar nesse grupo parlamentar após as legislativas? Admite levar mais longe este seu envolvimento político e propor-se ou ser proposto a candidato a candidato nas primárias?
Eu tenho 65 anos e uma vida completamente organizada no Porto. Não acho que pudesse estar em Lisboa de uma forma como eu entendo que se deve estar para desempenhar funções. Eu nunca brinquei em termos profissionais no que à medicina e ao ensino universitário diz respeito, também não o faria na política. Em termos de obrigações profissionais, em termos da minha tribo, de toda a família, eu não tenho disponibilidade para ser político.
Quais são, na sua opinião, as prioridades de um futuro Governo que se venha a constituir apoiado pela Tempo de Avançar?
Como compreende, eu sou condicionado pelos meus próprios interesses e projectos profissionais. Como tantos outros, estou preocupadíssimo com o Serviço Nacional de Saúde, nomeadamente com os cuidados primários. É minha convicção - posso estar a ser pessimista, mas é minha convicção - que ou os cuidados de saúde primários são acautelados ou, rebentando os cuidados de saúde primários, o resto vai a seguir, porque são a primeira linha. Aliás, tivemos exemplos agora no Natal e no Ano Novo. É óbvio que fico satisfeito que se permita a contratação pelos hospitais, mas quer se queira quer não, se os cuidados de saúde não são acautelados, há problemas. Repare que, depois, a correr, também se foram aumentar os horários nos centros de saúde. Ora é aí que verdadeiramente se tem de investir para que as urgências dos hospitais não fiquem completamente ultrapassadas. Tivemos uma quantidade de mortes em urgência hospitalar que é completamente inaceitável. E também estou a ver com muita preocupação o que se está a passar na Segurança Social.
O que o preocupa em relação à Segurança Social?
Ainda a semana passada foi publicado um artigo de uma universitária que veio da Universidade Católica para a Faculdade de Psicologia sobre as condições em que se estava a trabalhar na Segurança Social, e isso ainda não incluía a razia a que se está a assistir com a requalificação, que me parece mais uma das palavras bonitas que hoje em dia se inventam.