Radicalizados em casa pela Internet, de França a caminho da Síria

Fizeram cortes. Repudiaram costumes e família. Substituíram a sua visão do mundo pela dos sectários. Assim é parte da mão-de-obra dos radicais islâmicos.

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A dissolução da origem dos denominados “combatentes estrangeiros” é feita através do caos, dos mortos e da crueldade”, afirma o relatório Reuters
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Imagem retirada de um vídeo colocado na Internet há já dez anos pela Al-Qaeda da Península Arábica DR
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Com uma bandeira do Estado Islâmico em fundo, Nasr al-Ansi, comandante da Al-Qaeda da Península Arábica, usou a Internet para reivindicar o ataque ao Charlie Hebdo em Paris Reuters

“Os jovens captados por este discurso viviam como indivíduos globalizados, mas não se sentiam parte integrante de nenhuma cultura e de nenhum espaço cultural”, refere o relatório A metamorfose operada nos jovens pelos novos discursos terroristas, de Novembro do ano passado, do Centro de Prevenção contra as Derivas Sectárias ligadas ao Islão (CPDSI). Um organismo criado em Maio de 2014, animado pela antropóloga Dounia Bouzar, ex-membro do Conselho Francês do Culto Muçulmano, por Christophe Caupenne, durante 13 anos chefe da equipa de negociadores do RAID, corpo de elite da polícia antiterrorista gaulesa, e pelo pedagogo Sulayman Valsan.

Os autores trabalharam sobre os relatos dos pais dos radicalizados e os seus perfis no Facebook. O estudo abre a porta para uma nova realidade, tão inquietante quanto surpreendente. Em causa ficam os estereótipos da adesão a práticas violentas e a organizações como o autoproclamado Estado Islâmico (EI), única e essencialmente baseada no desemprego, na marginalização social e na guetização suburbana de segundas gerações da emigração.

Das 160 famílias de nacionalidade francesa que recorreram ao CPDSI, 80% eram ateias e só 16% eram de classes populares a braços com o desemprego. A maioria (63%) dos jovens considerados pelo estudo tem entre 15 e 21 anos, e são raros os casos de doutrinamento acima dos 30 anos. Apenas uma ínfima parte destes adolescentes, cinco em cada cem, cometeram actos de pequena delinquência. Mas já em 40% dos casos sofreram episódios de depressão. E a quase totalidade deles – 98 em cem – chegaram ao contacto com o discurso radical através de Internet.

“Quando um discurso religioso conduz o individuo à ruptura – social e familiar – a ponto de ele se privar dos seus direitos mais fundamentais, podemos falar de efeito sectário”, afirmam os autores do estudo. Ou seja: a forma como os jovens foram captados, as etapas do seu trajecto de radicalização e o corte pessoal e social operado nas suas vidas são em tudo idênticos aos processos de envolvimento com as seitas.

Ao longo de 91 páginas, este percurso é detalhado. As fases da metamorfose são sistematizadas num processo de sucessivas rupturas dos jovens. Com os antigos amigos, com as actividades de tempos livres e com a escola. Depois, com a família. “Para que a primazia do grupo radical seja completa, a autoridade do grupo deve substituir a autoridade dos pais”, constatam os autores do relatório.

Para o corte familiar são usados todos os expedientes, contrariando-se gestos, costumes e símbolos sociais numa escalada em direcção à alegada e inevitável ruptura, que leva os jovens a considerar a impossibilidade de viver com os pais. A alimentação é um recurso fácil. Nas suas comunicações por Internet, numa fase de doutrinamento primário, são abundantes as referências àquilo que Bouziar, Caupenne e Valsan designam “conspiração do porco”: a presença de elementos porcinos em gelatinas leva à elaboração de uma lista de alimentos e seus derivados proibidos. A oposição ao álcool não se fica, apenas, pela sua ingestão, mas também inclui a utilização de perfumes e desodorizantes, de acordo com os relatos dos pais.

Pouco a pouco, cresce o isolamento do jovem. “O doutrinado deixa de ter qualquer ligação com a sua antiga visão do Mundo que foi substituída pelas ideias do grupo sectário, para alguns este grupo é uma organização que regula a sua desorganização interna, o que os apazigua”, sintetiza o estudo.

Consagrado o corte com as suas referências, o processo de doutrinamento sobe um patamar. “A partir da rejeição do mundo real é-lhes injectada a ideia de que apenas um confronto total e final poderá mudar as coisas”, conclui esta investigação. As formas de propaganda – os vídeos – não são método casual. “São destinados a um público jovem, habituado a imagens que são um universo familiar para eles, de que conhecem os códigos”, observa-se no trabalho do CPDSI. E a violência dos jogos comerciais já os imunizou para o repúdio.

Diversas são as motivações dos jovens destas 160 famílias. Do ideal cavalheiresco de mudança, oferecendo o seu envolvimento até ao sacrifício, à causa humanitária insuflada às raparigas confrontadas com os horrores da guerra na Síria e o cortejo de privações sofridas pelos refugiados. Segundo os relatos dos pais, elas quando chegam ao terreno sentem-se decepcionadas. Mas o regresso é difícil.

Novo nome árabe desresponsabiliza
Há também casos de jovens cujos serviços foram recusados nas Forças Armadas e que decidem fazer a “sua guerra”. Há ainda aqueles que procuram uma identidade e têm um desejo de pertença. E, finalmente, os adeptos de condutas de risco – álcool, drogas, condução temerária –, para quem o “confronto total e final” é um convite aliciante. As suas fotos posteriores de Kalashnikov em punho vão do indisfarçável narcisismo à retórica de uma estudada mise en scéne, passando por uma terrível operacionalidade efectiva.

Jovens oriundos da classe média imbuídos de um sentimento niilista, depreciando os valores tradicionais, são parte da mão-de-obra dos radicais. “Nesta fase de arranque, o povo dos extremistas é cosmopolita, originário de vários países, mas a dissolução da origem é feita através do caos, dos mortos e da crueldade”, referem os estudiosos franceses. O que implica mais passos. A mudança de nome, a arabização da sua identidade, não é apenas um rito iniciático. Elimina a culpabilidade.

“O cimento do grupo é feito pela transgressão e pela ultrapassagem das fronteiras morais”, acentua o relatório. O que permite tudo: a desumanização do adversário e a violência sem reparo; a obediência cega às ordens. Quando há dúvidas, lá está a polícia criada pelo EI para vigiar o comportamento dos denominados “combatentes estrangeiros”, mais de cinco mil dos quais oriundos da Europa.

Factor religioso secundarizado
Em todo este processo, o factor religioso aparece secundarizado. “A passagem pela mesquita não é automática, alguns foram para a Síria sem qualquer prática religiosa. Noutros casos, os radicais passam pela mesquita para se “converter o jovem” e reforçar o "alibi religioso do seu doutrinamento”, descreve o relatório.

“Frequentar uma mesquita tem o propósito de aumentar a confusão que os radicais pretendem para se fazerem passar como simples muçulmanos ortodoxos, assim os terroristas podem reivindicar a liberdade de consciência garantida pelas sociedades democráticas e laicas”, alerta. Só nesta fase, muitas vezes antes da partida, o doutrinado conhece fisicamente quem esteve, ou quem ele julga que esteve, do outro lado de Internet.

“O aspecto virtual foi durante muito tempo utilizado para propor aos jovens o seu envolvimento numa comunidade de substituição virtual”, afirmam Dounia Bouzar, Christophe Caupenne e Sulayman Valsan: “Só recentemente, depois da pretensa instalação do califado de Abu Bakr Al-Baghdadi que o território proposto se tornou real e concreto, o território situado nos poços de petróleo da Síria e do Iraque, onde o EI espetou a sua bandeira.”

Está então garantido o efeito rápido e letal, que vai da radicalização à acção. “Querem moldar os convertidos aos seus interesses, conhecem os seus pontos fracos e exploram-nos. Aproveitam o desconhecimento do Corão, o modelo passa a ser quem doutrina, não há fé mas mimetismo”, afirma, ao PÚBLICO, o xeque David Munir, imã da Mesquita Central de Lisboa. “É muito importante que as pessoas antes de se converterem conheçam o Islão, para não serem enganadas”, adverte.

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