"Parem com os vossos insultos ao nosso profeta"

Al-Qaeda reivindica autoria do ataque ao Charlie Hebdo e promete mais violência. Caricatura do profeta Maomé faz a capa da nova edição do jornal satírico francês, que volta a ser alvo de ameaças.

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A mensagem do comandante da Al-Qaeda, Nasr al-Ansi, transmitida no Iémen REUTERS/Khaled Abdullah

As palavras de al-Ansi vão ao encontro dos alertas do Governo francês, que nos últimos dias tem vindo a repetir que a ameaça terrorista não foi exterminada depois dos atentados de Paris e que novos ataques poderão estar iminentes. A noção do risco disparou com a reacção irada à primeira edição do Charlie Hebdo após o ataque à redacção, que vitimou 12 pessoas, entre as quais nove dos seus jornalistas: fiel à sua tradição, a capa é uma imagem do profeta Maomé, a segurar um cartaz com o slogan “Je Suis Charlie” que mobilizou milhões de manifestantes solidários com as vítimas do terror. A manchete diz simplesmente “Está tudo perdoado”.

Num comunicado distribuído em simultâneo com a publicação do vídeo, a Al-Qaeda na Península Arábica explica que foi Ayman Al-Zawahri , que sucedeu a Osama Bin Laden como dirigente máximo do grupo terrorista, quem deu a ordem para o ataque ao Charlie Hebdo. “Aquele que escolheu o alvo, desenhou o plano e financiou a operação foi o líder da organização”, diz o documento, cujo cabeçalho tem o logotipo da editora Al Malahen, usada pela Al-Qaeda.

Segundo o vídeo e o comunicado, o clérigo norte-americano Anwar al-Awlaki, que se juntou à Al-Qaeda no Iémen e foi morto pelo Exército dos Estados Unidos num ataque com drones em Setembro de 2011, terá tido um papel fundamental na radicalização dos dois irmãos Kouachi que levaram a cabo o ataque em Paris – e que são descritos como “heróis do islão”. A informação levanta questões incómodas para as autoridades francesas: a ser verdade, os irmãos formaram uma célula “adormecida” durante três anos, e que passou desapercebida quando foi chamada à acção.

A suposta influência póstuma de al-Awlaki merece mesmo um destaque especial nas mensagens da Al-Qaeda, que se refere a ele como uma “ameaça para o Ocidente, tanto em vida como depois do seu martírio”. De novo, a informação é relevante, por demonstrar não só a capacidade de mobilização que a organização terrorista ainda mantém, mas também a evolução táctica e logística nos seus processos de recrutamento, comunicação e execução de ataques – encetados por “lobos solitários” ou por células reduzidas, numa pequena escala mas com grande repercussão.

A operação foi executada para “vingar o profeta”, perante a “insistência” do Charlie Hebdo em publicar caricaturas de Maomé, confirma o comunicado. Em França, muitos madrugaram esta quarta-feira para fazer fila nas bancas de jornal e garantir uma cópia da edição histórica do jornal – que na maior parte dos locais esgotou em poucos minutos. Graças às redes sociais, a primeira página já era conhecida desde a véspera: numa tentativa de aplacar as reacções à representação da imagem do profeta (que os muçulmanos entendem como uma blasfémia e um insulto), o Conselho Islâmico de França fez um apelo à calma, que claramente não surtiu efeito, uma vez que novas ameaças de morte foram dirigidas aos seus profissionais

Em vários pontos do mundo, a nova edição do Charlie Hebdo foi objecto de crítica, condenação e censura oficial, por parte de organizações islâmicas e seculares. O Governo do Irão, através do ministério dos Negócios Estrangeiros, classificou a capa do jornal como um “insulto” que magoa e viola os sentimentos de todos os muçulmanos e "pode relançar o ciclo vicioso do terrorismo". Num longo comunicado em nome da União Mundial de Imãs Muçulmanos, no Qatar, o clérigo egípcio Youssef al-Qaradaoui (eminência parda da Irmandade Muçulmana), considerou “pouco razoável, desavisado e ilógico publicar desenhos ou filmes a ofender o profeta e atacar o islão”.

A rádio al-Bayane, associada ao Estado Islâmico, foi um pouco mais longe e classificou a publicação da caricatura de Maomé como “extremamente estúpida”. “O que este jornal ateu pretende é explorar os acontecimentos para obter benefícios materiais com a venda de um número insultuoso do nosso profeta”, especulou. A prestigiada universidade e mesquita Al-Azhar, no Egipto, também emitiu um comunicado aconselhando os muçulmanos a “ignorar esta frivolidade odiosa”, numa referência aos “desenhos que não respeitam nenhuma moral ou norma da civilização” do Charlie Hebdo, que assim procura “atiçar o ódio”.

Concorrência ou cooperação?
A Al-Qaeda não costuma demorar uma semana para reivindicar a autoria de acções terroristas de impacto mundial – a demora poderá ter sido planeada para coincidir com a nova edição do Charlie Hebdo. A autenticidade dos documentos hoje divulgados não foi ainda oficialmente confirmada pelas agências de espionagem internacionais, mas a maioria dos especialistas em terrorismo não punha em causa a sua credibilidade. As informações já conhecidas apontam para a radicalização de Saïd e Chérif Kouachi no Iémen, para onde comprovadamente viajaram e onde terão realizado o treino de combate. Nos seus contactos com os media depois do ataque, os Kouachi disseram que foram preparados e financiados por Anwar al-Awlaki.

No entanto, a organização terrorista do Iémen não assumiu a responsabilidade pelos actos de Amedy Coulibaly, o terrorista que matou uma agente da polícia na rua, um dia depois do ataque ao Charlie Hebdo, e sequestrou o supermercado kosher Hyper Cacher na Porte de Vincennes, no dia seguinte, matando quatro reféns, todos judeus. Coulibaly, que se identificou como um combatente do Estado Islâmico, é descrito como um “irmão mujahid” (combatente da guerra santa), mas as suas acções são reputadas como uma “coincidência”.

Os analistas dividem-se na interpretação destas declarações. Alguns referem-se à demarcação como um sinal da rivalidade entre os dois grupos jihadistas e da sua “competição” pelo protagonismo e proeminência dentro dos movimentos islamistas. Outros entendem, porém, que mais do que concorrência, os ataques de Paris revelam uma colaboração entre as duas organizações – um argumento que evoca como “prova” a amizade de Amedy Coulibaly e Chérif Kouachi, que se conheceram na prisão, ou as palavras de al-Ansi, que se referiu aos acontecimentos de Paris como “um ponto de viragem na história do confronto com o Ocidente”.

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