“Sim, sou Charlie”, disse Houellebecq

O Canal + emitiu finalmente a entrevista com o escritor francês, que tinha vindo a adiar. Emocionado, Houellebecq lamentou a perda de um amigo e garantiu que o seu último romance não é islamofóbico.

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Michel Houellebecq durante a entrevista ao Canal+ DR

Michel Houellebecq falara com o francês Canal+, um dia depois do ataque ao Charlie Hebdo, que coincidira com a chegada às livrarias do seu polémico romance Soumission, em que imagina a França em 2022 presidida por um muçulmano. O canal televisivo, no entanto, decidiu adiar a emissão, segundo a AFP, respeitando as directivas do Conselho Superior do Audiovisual francês, que pedira a todos os media que agissem “com o maior discernimento”, no sentido de garantir a segurança das suas equipas e de permitir que as autoridades cumprissem a sua missão.

“Sim, sou Charlie. Esta é a primeira vez na minha vida em que alguém que amava é assassinado”, disse o escritor durante a entrevista, com a voz embargada, referindo-se ao amigo e fundador do semanário satírico, o economista Bernard Maris.

No dia do atentado, aliás, um cartoon de Houellebecq fazia a primeira página do Charlie Hebdo, tendo o lançamento de Soumission como pretexto (o romance sairá em Portugal no primeiro semestre deste ano, na Alfaguara). Na mesma edição do semanário, o escritor aparecia em inúmeras caricaturas, tendo uma delas o seguinte texto: "Escândalo! Alá criou Houellebecq à sua imagem!"

Bernard Maris assina um dos textos deste dossier Houellebecq, um artigo que o autor de A Possibilidade de uma Ilha e de O Mapa e o Território diz não ter ainda lido por falta de “coragem”. Tudo porque, quando a edição de 7 de Janeiro lhe chegou às mãos, já sabia que o cronista tinha sido uma das vítimas mortais do atentado, explicou ao jornalista do Canal+ Antoine de Caunes, que conduziu a entrevista de 12 minutos para o programa Le Grand Journal.

“Ele era gentil…”, disse, parecendo fazer um esforço para não chorar, roendo as unhas e com paragens longas entre as frases. Maris estava a escrever um livro sobre França, um volume que estava já atrasado, e ainda assim “perdeu tempo” a escrever sobre Soumission, contou Houellebecq, admitindo que, se fosse ao contrário, provavelmente não teria para com o amigo a mesma cortesia.

Maris classificava-o como um lúcido analista do ultraliberalismo, algo que o autor considerava verdadeiramente surpreendente, tendo em conta a qualidade das análises do economista, que sobre ele chegou a escrever Houellebecq Économiste (também da Flammarion).

Liberdade sem limites
Como não poderia deixar de ser, a entrevista do Canal + incidiu, sobretudo, na coincidência do ataque ao Charlie Hebdo com o lançamento do novo romance daquele que é seguramente um dos intelectuais franceses mais controversos da actualidade. Antoine de Caunes quis saber, por exemplo, onde se cruzam o semanário satírico e Houellebecq, claramente um agente provocador na literatura. Em resposta, o escritor trocou a palavra “provocação” por “liberdade”: “Falamos mais de liberdade do que de provocação. É disso que se trata. […] A liberdade é muitas vezes provocadora. Não há liberdade sem uma dose de provocação.”

Reconhecendo que se vive em França um período “hipersensível”, de grande “crispação”, em que “as pessoas perdem a calma”, Houellebecq afirmou e reafirmou que Soumission é uma ficção e que nada impede que, ainda assim, tenha personagens reais. “Se não pudermos escrever ficção neste país, faremos o quê?”, perguntou. "Espero que as pessoas compreendam que uma ficção é uma ficção."

Garantindo que Soumission não é um romance islamofóbico, e que até o leitor mais desatento chega a essa conclusão, o escritor admitiu que não sente responsabilidades acrescidas por trabalhar o tema do islão num clima de grande instabilidade económica e social. “Não há limites à liberdade de expressão. Zero limites”, sublinhou. E quando o jornalista do Canal+ insistiu – “Nem mesmo quando [os seus livros] têm um eco forte na realidade?” -, respondeu, seguro: “Mesmo assim. Não há limites.”

Valls e Le Pen
E é a defesa da mesma liberdade de expressão que o leva a dizer que não pode impedir as pessoas de reagirem, quando Antoine de Caunes lhe pede que comente as declarações do primeiro-ministro francês, Manuel Valls, e da líder da extrema-direita, Marine Le Pen, sobre Soumission. O primeiro disse, logo no dia a seguir ao ataque, que “França não é Michel Houellebecq”; a segunda que se trata de uma ficção que poderá vir a tornar-se realidade.

Irónico, o escritor começou por admitir estar surpreendido que Valls tenha tido tempo de ler Soumission, e que, aos seus olhos, é o julgamento dos “pares” que mais lhe interessa: “Manuel Valls pode dizer o que lhe apetecer. (…) Quando ele escrever um romance, falaremos. [Até lá], cada um no seu lugar.”

Quanto à extrema-direita, o escritor disse apenas que não acredita num aproveitamento do seu romance pela Frente Nacional de Marine Le Pen: “Ela que tente. Vamos ver se acontece.”

A terminar a entrevista, Houellebecq admitiu não saber ainda o que iria fazer após o ataque ao Charlie Hebdo.

Até aqui, todas as acções de promoção do novo romance foram suspensas e, dizia-se, o escritor teria procurado refúgio no campo ou até mesmo fora do país. Mas esta terça-feira soube-se que no começo da próxima semana, a 19 de Janeiro, estará em Colónia, na Alemanha, para uma leitura pública de Soumission. A segurança do teatro onde está prevista a sessão será reforçada, garantiu a porta-voz da DuMont, a editora alemã do autor francês.

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