Somos todos Charlie, mas não queremos mesmo sê-lo
Há órgãos de informação que se recusam a publicar as caricaturas do jornal satírico francês. Outros estão a rasurá-los. Autocensura?
O debate sobre a autocensura está aceso desde que dois (ou três?) terroristas irromperam na sede do Charlie Hebdo e mataram 12 pessoas, dentro e fora do edifício do semanário, em Paris. Os media devem insistir em cartoons que sabem que muitos consideram ofensivos? E, se decidirem não o fazer, estão a demonstrar sensibilidade ou a sucumbir ao medo? A resposta não é igual para todos. Nos EUA, onde a controvérsia está mais acesa, são várias as soluções.
O New York Times, um jornal de referência a nível global, optou por manter a posição de sempre a este respeito: “Não publicar imagens ou outro material que tenham a intenção deliberada de ofender sensibilidades religiosas.” “Após cuidadosa reflexão, os editores do Times decidiram que descrever os cartoons em causa daria informação suficiente aos leitores para estes perceberem a história”, disse uma porta-voz do diário, Eileen Murphy.
O editor executivo do Washington Post, Martin Baron, afirma nas páginas do próprio jornal que conteúdo que “é incisiva, deliberada ou desnecessariamente ofensivo para membros de grupos religiosos” deve ser evitado. Contudo, o editor de opinião do Post julgou necessária, para contexto, a publicação da caricatura que motivou o primeiro ataque ao Charlie Hebdo, em 2011 – e teve autonomia para o fazer na página do editorial desta quinta-feira. “Penso que ver esta capa vai ajudar os leitores a compreenderem do que se trata”, disse Fred Hiatt.
Outros títulos com menos impacto internacional, como o Boston Globe ou o Philadelphia Inquirer, também se recusam a publicar as caricaturas que fizeram com que a redacção do Charlie Hebdo ficasse sob protecção policial nos últimos quatro anos. “Não publicaremos os cartoons sob nenhuma circunstância. A ideia de insultar gratuitamente dezenas de milhões de muçulmanos, em vez de descrever algo por palavras, faz com que esta não seja uma decisão difícil de tomar”, sublinhou o editor do Philadelphia Inquirer, Bill Marimow, à Reuters.
Por sua vez, a Reuters e a Associated Press, duas das maiores agências noticiosas do mundo, tomaram decisão idêntica e não estão a distribuir as imagens com as representações polémicas de Maomé. A agência France Presse, por outro lado, pôs em linha fotografias que incluem os cartoons considerados insultuosos. No entanto, nem sempre as imagens da AFP estão a ser publicadas como foram originalmente distribuídas: alguns órgãos de comunicação estão a cortar ou a rasurar as imagens de modo a retirar ou a esconder as caricaturas.
São os casos do New York Daily News e do britânico Telegraph. Este último foi muito criticado pelos leitores europeus, menos habituados a este pudor do que os norte-americanos. Também no Reino Unido o Financial Times enfureceu os leitores com um artigo de opinião de um dos seus editores. “A França é a terra de Voltaire, mas a insensatez editorial tem prevalecido demasiadas vezes no Charlie Hebdo”, decidiu escrever Tony Barber, logo após o ataque. A reacção exaltada que provocou, pela falta de absoluta solidariedade para com os camaradas parisienses, levou o jornalista a reescrever o texto.
Na Europa, a maioria dos jornais de grande circulação publicaram as caricaturas (incluindo o PÚBLICO). Nos EUA, contam-se pelos dedos e são sobretudo publicações online: The Huffington Post, Buzzfeed, The Daily Beast, Mashable, Slate, Bloomberg. O USA Today, depois de algum tempo renitente, acabou por publicar. O Wall Street Journal fez o mesmo que o Washington Post: fez sair um único cartoon na página do editorial.
Nas televisões, a CBS, a ABC, a NBC, a CNBC e a MSNBC assumiram um posicionamento conservador. A CNN começou por difundir imagens pixelizadas e a Fox chegou a mostrar um cartoon, mas ambas deram um passo atrás e passaram a descrever verbalmente as imagens. Num memorando interno revelado pelo Politico, a CNN admite emitir imagens das caricaturas (em manifestações, por exemplo), desde que em planos abertos e muito afastados.
No Facebook e no Twitter, uma rede muito frequentada por jornalistas, são longos os debates em torno deste assunto. O facto de um órgão de informação não publicar as caricaturas colide com a defesa intransigente da liberdade de imprensa? Não há consenso, mas a Repórteres Sem Fronteiras lançou mesmo assim um apelo aos media: demonstrem “profunda solidariedade” com o Charlie Hebdo e publiquem as caricaturas.
O presidente da CNN Worldwide, Jeff Zucker, contrapõe: “Jornalisticamente, todos os meus instintos me dizem que as queremos e que as devemos usar (…), mas, como gestores, proteger e cuidar da segurança dos nossos funcionários em todo o mundo é agora mais importante.” Em que situação de risco estariam, por exemplo, os jornalistas de delegações no Médio Oriente destes órgãos de informação? É difícil responder. E do que Zucker está a falar é de medo. Sem rodeios.
“Je ne suis pas Charlie. Eu não sou o Charlie, não sou corajoso o suficiente”, corrobora Robert Shrimsley, em Londres. “Para ser o Charlie é preciso estar pronto para desafiar ameaças de morte e ataques bombistas verdadeiros”, escreve o colunista do Financial Times. Shrimsley não deixa margem para equívocos: “O resto de nós que, como eu, se senta em segurança num escritório na Europa ocidental – ou aqueles que noutras profissões nunca ponderaram correr o tipo de risco que aqueles jornalistas franceses corriam diariamente – não somos Charlie. Estamos apenas contentes que alguém tenha tido a coragem de o ser.”
Prova cabal dos efeitos do terror é o Jyllands-Posten, o jornal que em 2005 provocou violentos protestos de muçulmanos por ter publicado 12 caricaturas de Maomé: foi o único jornal da Dinamarca que não reproduziu qualquer cartoon do Charlie Hebdo nestes dias. “Reafirmo o meu direito como editor de publicar qualquer tipo de desenhos novamente em qualquer altura. Mas ele [o direito] não existe”, lamentou Jorn Mikkelsen. “A verdade é que para nós seria completamente irresponsável publicar novos ou antigos desenhos do profeta agora. (…) Muitos não o querem admitir. Eu, sim – embora relutante. O Jyllands-Posten tem uma responsabilidade para consigo próprio e para com os seus funcionários.”