Sara Carinhas, uma actriz feita, uma encenadora a revelar-se

Ao mesmo tempo que apresenta a um público mais vasto a sua primeira encenação no São Luiz, As Ondas, ocupa o palco do D. Maria II como Roxanne, a mulher que é alvo de toda a poesia de Cyrano de Bergerac. Tanto a dirigir como a interpretar, as suas histórias no teatro contam-se com a voz e com o corpo.

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Sara Carinhas volta a a usar o seu corpo de actriz em Cyrano de Bergerac, com que regressa ao Teatro Nacional D. Maria II FILIPE FERREIRA
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Sara Carinhas volta a a usar o seu corpo de actriz em Cyrano de Bergerac, com que regressa ao Teatro Nacional D. Maria II FILIPE FERREIRA
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Sara Carinhas volta a a usar o seu corpo de actriz em Cyrano de Bergerac, com que regressa ao Teatro Nacional D. Maria II FILIPE FERREIRA

Embora contasse apenas 26 anos, a verdade é que há muito que a actriz vinha sendo empurrada – por mãos alheias mas também pelas suas – nesse sentido. Gradualmente, foi percebendo que era nesse lugar do teatro que mais tinha desejo de se encontrar, dando-se conta de não estar completamente feliz no seu percurso de actriz. “Assim que senti que tinha conseguido fazer As Ondas foi como se todo um mundo se abrisse”, confessa ao Ípsilon. “Neste momento, era o que mais queria fazer. E mesmo até afastar-me, em termos de saúde mental também, do trabalho como actriz. Diria que podia mudar já, podia passar a ser encenadora e não ia ficar com amargura de não estar em palco ou não aparecer.”

E, no entanto, não é bem isso que vai acontecer. Quando As Ondas iniciar a sua reposição no Teatro São Luiz, em Lisboa, de 15 a 24 de Janeiro, validando com um outro grau de oficialização a passagem de Carinhas para o lugar de invisibilidade no palco, a actriz estará afinal bem visível, em cena durante quase dois meses, enquanto Roxanne, o objecto de amor de Cyrano de Bergerac, no Teatro Nacional D. Maria II. Estará em dois lugares simultâneos, da mesma maneira que o elenco da sua criação a partir do romance homónimo de Virginia Woolf acaba de celebrar a chegada de 2015 no festival chileno Santiago a Mil, enquanto Sara, devido à estreia de Cyrano, não pôde ir além da despedida no aeroporto. Mas, num certo sentido, esta é uma extensão daquilo que lhe é pedido enquanto encenadora – confiar nas suas escolhas e deixá-las seguir caminho.

As Ondas começou por ser um espectáculo pensado para os Primeiros Sintomas, para uma dimensão íntima e fazendo uso do corredor negro de acesso à sala, para onde as cinco personagens se recolhem para evidenciarem o avanço do tempo. Era também uma maneira controlada de Sara Carinhas se testar na direcção de um espectáculo, desde a selecção criteriosa dos actores com quem foi langorosamente construindo o tom da peça e de se expor pela primeira vez nessa posição, sem grandes alaridos. Mas acabou por se justificar sobretudo pela delicadeza e bela fragilidade retiradas do livro de Woolf. “Agora é muito bonita esta aposta de alguém de fora que acha que deveria ser vista por mais gente e dentro de um teatro em que, apesar de tudo, não sendo na sala principal, continua a ser um pouco alternativo. Mas dá uma espécie de carimbo de aval que é muito importante para mim”, diz. Mais ainda depois de Sara ter confirmado que é “muito mais feliz daquele lado”.

Essa felicidade, admite, provém em parte do “mergulho total” em que afirma ver-se implicada ao conceber um projecto teatral de raiz. “Há actores que também mergulham numa peça, que não pensam noutra coisa. Eu sou um pouco menos obsessiva enquanto actriz do que quando estou a criar algo que está sempre comigo. Como actriz, há sempre um trabalho de casa, mas para mim é acima de tudo estar no momento com os colegas e algo a que se chega pela repetição, pela repetição, pela repetição. Encenar e criar é uma coisa mais abrangente. E se estou a encenar, quando saio de um ensaio, quando vou para a rua, continua a ser sobre aquilo – a vida e as outras coisas todas.”

Ainda assim, embora Sara Carinhas faça uma cisão entre os seus dois mundos teatrais, As Ondas faz-se, em toda a sua extensão, de uma linguagem que já lhe reconhecemos como actriz: o corpo não é tratado como mero reprodutor eficaz de palavras e acções. “Como actriz também gosto quando não se está a dormir, não se funciona só do pescoço para cima. Queria, por isso, construir no próprio corpo não exactamente um desenho coreográfico, mas que fosse não-realista, em que isso do ritmo, do silêncio, de parar, de gritar, de correr fizesse parte do resto”. Carinhas, atente-se, é filha da coreógrafa Olga Roriz e do encenador Nuno Carinhas, transportando esses dois legados em cada movimento de palco. Basta, aliás, pensar nos seus trabalhos recentes com Daniel Gorjão, a partir de Sophia de Mello Breyner (O Olhar Inabitado das Manhãs), e com Luís Castro, numa soberba interpretação de A Farsa, a partir de Raul Brandão, para que se perceba a forma como Sara utiliza o corpo plasticamente para contar uma história. Em ambas as peças, tal como em As Ondas, a carga poética era também uma evidência.

O embalo

Não é acidental que tenha sido um texto literário e não uma peça de Ibsen, Beckett ou Tchékhov – “Isso chegará um dia”, garante – a vencer as hesitações de Sara Carinhas na encenação. Tendo-se estreado no teatro em 2003, e sido dirigida por Cristina Carvalhal, Beatriz Batarda, Ricardo Pais, Nuno Cardoso ou Nuno Carinhas, e Alberto Seixas Santos, Manoel de Oliveira ou Rui Simões (no cinema), As Ondas era uma peça solta do seu passado que a fascinava tanto pelo poder convocador da escrita de Woolf quanto pela sua dificuldade em descodificar-lhe o sentido. Sara tinha lido a obra em muito nova e só lhe voltou a pegar já depois de a eleger como objecto de trabalho para a sua primeira encenação. Escolheu a partir de uma sensação transportada durante anos. E usou, por isso, o teatro como ferramenta para a descoberta, para a interpretação e para a construção de sentido.

Depois, montou um texto inspirado, entre outras fontes, por um prefácio de Marguerite Yourcenar em que a escritora francesa chamava ao livro de Woolf “uma orquestração de vozes”. As Ondas de Carinhas tem o embalo de um poema, de uma canção. E o embalo é de tal maneira impositivo que a actriz e encenadora não vai deixar a escritora em paz. Já em Maio, numa colaboração com o coreógrafo Victor Hugo Pontes, entregar-se-á a uma versão muito livre de Orlando, no Centro Cultural de Belém. “Serei intérprete e criadora, mas nunca acredito nisso de estarmos sozinhos a fazer tudo”, reafirma. “O Victor Hugo vem sublinhar essa minha necessidade do corpo. Será também uma maneira de levar as minhas questões de actriz para outro lado, para um sítio de outra linguagem. E agora já não tenho medo de convidar pessoas para fazerem comigo.” Afortunadamente, os medos parecem agora ser presa fácil para a sua vontade.

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